Um quarto dos poemas é
imitação literária,
outro quarto é ainda imitação mas já irónica e colérica,
outro quarto é das labaredas da inquisição à volta,
outro quarto, o quarto, o que falta, é por causa da
magnificência do mundo
o quinto quarto absurdo é o das quatro patas cortadas,
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
como se fosse tão frio que cortasse até ao osso,
o imo do próprio nome assim metido na pedra,
tanto que ninguém sabia de quem era,
porque ficou todo dentro e não se via de fora:
nem o suor nem o sangue nem o sopro
Herberto
Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio
& Alvim, 2013; Poemas Completos,
Porto: Porto Editora, 2014)
Poema dito por Fernando Alves (TSF-Rádio Notícias, maio de 2013)
“[…]
apesar de ser «dos poetas mais lidos e assimilados, porquanto a marca da sua
presença aparece nas mais variadas obras dos autores mais variados, e com uma
assiduidade que chega a tornar-se maçadora» (Maria Estela Guedes), Herberto Helder «não tem
antes nem depois, apesar de muitos o tentarem imitar» (Joana Emídio Marques);
«Não há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal
poder de atração e gerado tantos epígonos. E nenhum mais absolutamente
impossível de imitar com proveito» (Luís Miguel Queirós); «Nos grandes poetas,
ela [a imitação] tende para o impossível, ou então é insuportavelmente trôpega.
(…) Essa impossibilidade de imitar valiosamente aquilo que mais apeteceria
imitar é quase um sinal indubitável da soberana realidade de uma poesia» (Paulo
Tunhas).
Sobre tudo isto, Herberto Helder
disse, com um requinte, uma subtileza e uma precisão descritiva (e digo-o sem
exagero nem ironia) que não está ao alcance de todas as inteligências: «Quanto
mais contrabandeado, melhor se verá nele a força natural da singularidade»
(prefácio aUma Faca nos Dentes).
Levanto à vista
o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbedas
E estou tão leve
porque não tenho nenhum segredo
e tão oculto
porque daqui a nada
já posso dizer tudo.
Daqui a uma pouca ciência
saberei pensar que algum pouco depois
estarei morto
e só de o pensar
já nem respiro
já quase
em nada toco
Já só vejo no fundo das mãos
daquilo que fica escrito
Que escrevi coisa nenhuma do mundo
até ao esquecimento e movendo-me com as unhas
movo os nomes inúmeros
para dizer que mal nasci
logo me deram por morto.
E não fui tido nem havido
na razão do episódio de um rosto
ter passado por um espelho e ter desaparecido.
Portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos
Vejo a água a mover-se contra si mesma
tão marítima e acho até que é bonito
cada qual morre do quanto alcança e não alcança
e ninguém compreende
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa a água fácil
sem retorno
porque nada tem retorno
e tudo é dificílimo
não só o máximo, mas também o mínimo.
Herberto
Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio
& Alvim, 2013; Poemas
Completos, Porto: Porto Editora, 2014) Poema dito por Fernando Alves (transmitido na TSF-Rádio Notícias, em maio de 2013)
Dando-se o caso de se tratar de um poema, o que é que nele é poesia?
Publicado a 20/03/2017
What exactly makes a poem … a poem? Poets themselves have struggled with this question, often using metaphors to approximate a definition. Is a poem a little machine? A firework? An echo? A dream? Melissa Kovacs shares three recognizable characteristics of most poetry. Lesson by Melissa Kovacs, animation by Ace & Son Moving Picture Co., LLC.
Pedem-me que lhe escreva,
como se o amigo tivesse começado por enviar-me poemas seus, solicitando a minha
opinião. Pedem-me também que o considere o jovem poeta ideal, aquele que imaginamos
o certo para escutar-nos. Pedem-me enfim — embora isso não seja dito — que eu
me suponha o Rilke escrevendo a um jovem que não seja o medíocre a quem ele
dizia tão belas coisas. Creio que é pedir demasiado.
De um modo geral, os poetas
de reputação firmada, ou que se julgam ou são julgados tais (ninguém tem a sua
reputação firmada em literatura, nem depois de séculos de ninguém nos ler e de
todos repetirem que somos génios, a não ser que isso importe aos interesses ou
desinteresses de alguns professores e críticos), costumam receber poemas ou
poetas jovens que solicitam opinião. O poeta "velho" toma tal facto
como uma vénia, um reconhecimento, que ele teme perder, por parte da juventude.
Mas o que o poeta jovem na verdade procura não é bem uma opinião de alguém mais
experiente (qual o poeta jovem que, no fundo, se não sente superior a qualquer
mesmo admirado poeta "velho"?), mas sim uma oportunidade de entrar,
pela mão de alguém, naquele mundo maravilhoso dos poetas vivos, da poesia
pessoalmente, etc., que ele descobrirá ser um sórdido e torpe mundo,
inteiramente igual, se não pior (porque se sustenta de uma importância que
realmente não tem), àquele, tão comum e familiar, que, nas suas frustrações
juvenis, o poeta jovem julga que detesta. Instintivamente, ele sabe que, se não
pedir a bênção de alguém, dificilmente fará sem amarguras o seu caminho. Porque
a vida literária é uma maçonaria como qualquer outra, onde é escusado
imaginar-se que alguém entra forçando as portas. Tudo, na vida, funciona por
camarilhas que oferecem a seus membros a tranquilidade de se imaginarem
importantes ou, mais ainda, a ilusão de que estão vivos.
Se um conselho,ab initio, se pode e deve dar
a um jovem poeta, é o de que perca a inocência juvenil, se venda, se prostitua
(o próprio corpo, se necessário for, porque às vezes lho cobiçarão), se dedique
à adulação da mediocridade triunfante, ouça respeitosamente as opiniões dos
críticos mais influentes porque mais cretinos, e receba em troca a paz triunfal
dos sucessos mundanos e literários. Se, depois disto, puder continuar a ser o
poeta que havia nele ou que ele sonhava que seria, é um outro caso — mas, por
esse segredo, poderá estar certo que ninguém perguntará. Forçar as portas, com
um livro, dois livros, uma crítica, duas, muitas, dirigidas contra a infecta
pesporrência dos estabelecidos; pedir justiça, em vez de amabilidade; exigir
inteligência, em lugar de um comércio de retribuições; procurar a camaradagem
limpa, e não aceitar os gestos dúbios; enfim, tudo o que diz respeito à dignidade
humana e da poesia, em vez da complacência com tudo e todos — não rende. Nem em
vida, nem na morte. Porque as histórias literárias, com raras excepções arquivo
de tudo o que a mediocridade alguma vez disse sem ter lido, guardarão
longamente, em benefício da posteridade, todo o veneno que os contemporâneos
lançaram sobre aquele que, por pretender ser uma pessoa, e um poeta, lhes
ameaçava, só por isso, a segurança. Ao jovem poeta, é preciso dizer-se que
desconfie do grande poeta vivo que receba consagração geral. Se a recebe, é
porque algo está podre naquele reino da Dinamarca.
Quanto aos seus poemas, meu
caro poeta, como V. é um poeta inexistente, cujos poemas são imaginários, e
como eu não acredito na Poesia, com maiúscula, preexistente aos poemas em que
ela exista, que lhe direi? Eu não faço ideia alguma da espécie de poeta que o
meu amigo é. Cultiva as imagens e as metáforas, no seu anseio juvenil de seguir
uma das modas, e de parecer que diz coisas extremamente profundas, sem na
verdade dizer nada? Ou prefere as palavras despedaçadas, uma letra para cada
canto, ou os graciosos joguinhos do pata, peta, pita, pota, etc? Isso também se
usa muito, e granjeia grande prestígio. Acaso faz ou não faz sonetos, pelo
melhor modelo (que é o que funda a tradição parnasiana, um pouco erótica, para
a masturbação em família, com os ornamentos do mais safado mas sempre brilhante
gongorismo)? Ou está preocupado com os destinos do mundo ou os da pátria, e
confunde-os com aquela inacabável tradição que manda os poetas imitar os
Nerudas & C.a? Ou a sua poesia é extremamente vaga e diáfana,
confortavelmente distante de qualquer afirmação excessiva, neste duvidoso
mundo? Ou, pelo contrário, é amplamente discursiva, transbordante de riqueza
(termo este muito usado pelos críticos em petição de matéria substantiva)? Como
vê, meu amigo, não posso mais que aventar hipóteses, segundo as linhagens mais
ilustres do momento. Oh, mas esquecia-me de outra: acaso será herdeiro do
surrealismo, com alguma tintura de beatniks e de psiquedélicos da Califórnia e
arredores, e compraz-se em insultar o mundo, insinuando perversões horríveis, e
despejando sobre ele os palavrões sagrados, por extenso? Não? Não?! Então, meu
caro amigo, das duas uma: ou a sua poesia é um regresso aos velhos padrões arcádico-românticos,
e sem dúvida terá êxito ainda nos salões de uma profunda província, ou, na
verdade, o senhor é um poeta. E, sendo poeta, é-o de tal modo, que a sua poesia
não pode ser reconhecida, nem o senhor tem o direito de esperar que ela o seja.
Daqui a vinte ou trinta anos, quando estiver alquebrado, exausto, esgotado,
descrente da poesia a que sacrificou a sua vida e a de quantos tiveram a
desgraça de depender de si, talvez então comecem a reconhecer que o senhor
existe. Claro que muito a contragosto, muito de má vontade, com muita
reticência… Eles, meu caro, serão sempre os génios; o senhor será também um
génio, um génio imenso, um génio enorme, mas um géniomas, um génio adversativo. E
pode ter a certeza de que assim ficará nas histórias literárias: sempre com ummastanto maior, quanto pior seja o génio
que não possam negar-lhe.
A poesia, querido amigo,
não é o que pensa, não. Ela não lhe pode trazer, se verdadeira for, essa
satisfação que transparece da sua tão trémula confiança em si mesmo. Isso, se
me permite que lhe diga, é uma ilusão da sua juventude. A poesia não é essa
alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás
desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor
que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam na sua
cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não
a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão
em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será
egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser
fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de
horror, penetrar lá onde supõe que o "si mesmo" está para lhe fazer
companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe,
ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também ele o
senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como
abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma
abstracção do que o senhor viveu ou não. Medite um pouco no significado
terrível deste ou não, e nunca mais escreva versos ou prosa poética, ou lá que
é que escreve para se julgar poeta.
Se for um poeta de verdade,
meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser. Porque a
única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas;
ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões
de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era
o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos,
arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo
resto da vida? Se é, meu caro amigo, então não mande os seus versos a ninguém,
não peça opiniões que ninguém pode dar-lhe, não espere conselhos de uma
experiência que é pessoal e intransmissível, não solicite uma atenção que não
haverá quem lha conceda. A menos que, para fim de festa, pretenda tirar, para
seu uso, a contraprova de que a humanidade como humanidade, os povos como
povos, as nações como nações, as classes como classes, os grupos como grupos
são sempre colecções mais ou menos numerosas de infames bestas. Ou a
contraprova de que, individualmente, ninguém vale para além do orgasmo, ou do
olhar de simpatia, ou do gesto de ternura. Ainda quando sejam poetas, meu caro,
ainda quando o sejam.
Não lhe estou dizendo que
não publique os versos, uma vez que tenha ânimo e força para aguentar-se no
equilíbrio instável entre a condição de prostituta e a condição de monstro. Na
verdade, se a tentação que sente é irresistível de escrevê-los, se não procura
a fama ou o proveito, se a dor de escrevê-los só se cura com a dor maior de
escrever outros, se se sente vazio e triste quando eles estão escritos, e sofre
de sentir-se vazio quando vai escrevê-los, e não sabe nunca o que vai escrever,
e acha horrível tudo o que escreveu mas não é capaz de destruí-lo, então
publique-os, publique-os sempre. E mande-os a toda a gente. Toda. Mas não peça
opiniões ou conselhos a ninguém. Deixe que eles todos fiquem amarrados, para
sempre, à culpa de o não terem lido, de o não terem sentido, de o não terem
admirado. Dê-lhes, se a glória tiver de ser sua, o castigo da sua glória,
implacavelmente. No fim das contas, lá onde nas trevas os dentes lhe rangem
furiosamente, que isto lhe sirva de alguma consolação: todos eles passarão,
como os ratos passam. Mas alguma coisa não passará, por mais que na morte, no
silêncio, na paz dos túmulos ou das histórias literárias, se desfaçam em
tranquila cinza: essa culpa que, dentro de alguns anos, será tudo o que se
recordará deles todos tão poetas, tão aplaudidos, tão queridos das damas e/ou
dos efebos, e tão estudados, tão bibliografados, tão comemorados, tão tudo o
que lhe terão recusado entre dois abraços e dois sorrisos. Outros ratos virão —
mas a culpa fica. Bem sei, meu caro, que não adianta muito, sobretudo se a
gente não acredita na imortalidade, ou mesmo que acredite. Consola porém alguma
coisa. E dá coragem à gente até ao poema seguinte. É quanto basta. Ou tem de
bastar, porque não há mais nada.
Sempre seu (que o manda
para o Inferno que é nossa província)
Jorge de Sena
*
Datada de 29 de agosto de 1966, esta 'carta' foi enviada
ao poeta Walmir Ayala (1933-1991), para uma antologia temática que permanece
inédita (Cartas aos jovens
poetas brasileiros).
O texto foi publicado pela primeira vez noJL-Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa, a 10 de novembro de 1981, p. 5
ACorrespondênciaentre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de
Sena (3. ed, Lisboa, Guerra & Paz, 2010) nos traz alguns dados sobre o
texto, a seguir transcritos.
De Lisboa, a 27 de junho de 1966, escreve
Sophia:"Do
Brasil vim com a incumbência de reunir colaboração portuguesa para o volume
organizado pelo Walmir Ayala. O Walmir Ayala vai incluir "uma carta a um
jovem poeta" que a Cecília Meireles deixou inédita. Encarecidamente lhe
peço para este volume a "sua carta a um jovem poeta". Creio que é a
primeira vez que no Brasil se publica um livro escrito simultaneamente por
portugueses e brasileiros. A ideia parece-me óptima."(p.99)
Do Wisconsin, a 30 de agosto de 1966, responde Sena:"Só agora me foi possível compor a carta que me
é solicitada pelo seu convite e do Walmir Ayala. Aqui lha mando — é uma coisa
muito amarga e muito rude, mas por certo temperará o conjunto. Espero que lhe
agrade como sincera coisa minha"(p.102).
A felicidade sentava-se todos os
dias no peitoril da janela.
Tinha feições de menino
inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor por ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo
pelas faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério
no seu próprio nome.
Jorge de Sena, 13-04-1941
(Perseguição, Lisboa, Cadernos de Poesia, 1942)
A discussão do poema foi engraçadíssima.
Em primeiro lugar as miúdas da turma, em especial Rute Elétrica, discordaram de que a
felicidade fosse um menino. Antes uma menina e o negócio estava arrumado. A
Carla Corações disse que podia ser um menino, se tivesse olhos verdes, uma moto
fabulosa e de preferência que andasse na Universidade Católica como o seu primo
Bernardo. Aí, o Telegoela disse que Bernardo era nome de cão e a Rute Elétrica,
para defender a sua amiga Carla, deu-lhe com o “dossier” na cabeça. A Maria Só
disse que o autor era um grande machista e o João Boião propôs que se lhe
escrevesse uma carta, a pedir que mudasse a palavra menino para rapaz, ou homenzinho.
Aí, a Maria Bonita disse que nem rapaz nem rapazinho, nem menino nem menina.
Para ela, a felicidade era uma mulher de vestido até aos pés e com muitas jóias
e um namorado rico. O Pedro Poças disse que não e que o avô dele achava que a
felicidade não é deste mundo, por isso a felicidade devia ser uma história de
mortos, boa para um filme de terror ou coisa assim. O Tó Provetas disse: a
felicidade é um substantivo feminino, não pode ser menino.
Se um dia alguém Perguntar por mim Diz que vivi Para te amar
Antes de ti Só existi Cansado e sem nada p’ra dar Meu bem Ouve as minhas preces Peço que regresses Que me voltes a querer
Eu sei Que não se ama sozinho Talvez devagarinho Possas voltar a aprender
Se o teu coração Não quiser ceder Não sentir paixão Não quiser sofrer
Sem fazer planos Do que virá depois O meu coração Pode amar pelos dois
Luísa Sobral
Salvador Sobral - Amar Pelos Dois (Thought of You by Ryan Woodward)
"Luísa Sobral embrulhou emoção q.b. numa balada de piano-bar com bom fumo. As notas certas, os intervalos certos. o tempo exato para que o espaço que vai dos graves aos agudos deixasse todos à espera do verso seguinte. Como se faz num argumento bem feito para conquistar audiências em quantidade, “Amar pelos Dois” deixa o ouvinte pendurado, à espera da boa desgraça romântica que a letra vai confessar a seguir, e depois, e depois."
Rita Cipriano e Tiago Pereira http://observador.pt/2017/05/14/salvador-e-luisa-a-sobralvisao-ganhou-por-todos/
Salvador Sobral e Luísa Sobral cantam "Amar pelos dois":
Tributo à prestação portuguesa no Festival da Canção Eurovisão 2017:
Español
English
Si un día alguien
te pregunta por mí,
dile que viví
para amarte.
Antes de ti,
solo existía cansado
y sin nada que ofrecer.
Mi amor,
escucha mis oraciones.
Te pido que regreses,
que me vuelvas a querer.
Sé que no se ama
en soledad,
quizás puedas volver a quererme
poquito a poco.
Si tu corazón no quiere ceder,
no quiere enamorarse,
no quiere sufrir,
sin planificar lo que vendrá después,
mi corazón
puede amar por los dos.
If someday someone
Asks about me
Tell them I lived
To love you
Before you
I only existed
Tired and with nothing to give
My love
Hear my prayers
I ask you to come back
To want me again
I know
It takes two to love
Maybe slowly
You can learn again
If your heart
Doesn't want to give in
Doesn't feel the passion
Doesn't want to suffer
Without making plans
For what will come next
My heart
Can love for the both of us
Français
Deutsch
Si un jour quelqu'un
Me demande
Dîtes que j'ai vécu
Pour t'aimer
Avant toi
Je n'ai qu'existé
Fatigué et sans rien à donner
Chérie
Entends mes prières
Je demande que tu reviennes
Que tu me veuilles à nouveau
Je sais
Que l'on ne peut aimer seul
Peut-être lentement
Tu apprendras de nouveau
Si ton coeur
Ne veux pas ceder
Ne veux pas sentir la passion
Ne veux pas souffrir
Sans faire de plans
Que viendrait-il ensuite
Mon coeur
Peut aimer pour deux
Wenn eines
Tages jemand
nach mir fragt
sag ihm, ich lebte
dich zu lieben
vor dir
existierte nur ich allein
müde und ohne alles
Schatz
höre mein Gebet
ich bitte dich, komm zurück
sag dass du mich liebst
ich weiß,
dass du dich nicht allein lieben kannst
vielleicht kannst du langsam
alles wieder lernen
wenn dein Herz
nicht zu mir will
keine Leidenschaft fühlt
nicht mehr leiden will
ohne Pläne
was als nächstes geschieht
dann kann mein Herz
lieben für zwei
Quem não gosta - mesmo que o negue até ao limite - de uma boa canção de amor? De que falamos quando falamos de uma “boa” canção de “amor” e, já agora, dos critérios que a colocam num patamar em que é apreciada e partilhada por uma maioria, que com ela se identifica e sonha?
Uma boa canção de amor tem um toque de virtude e encanto, não raras vezes associado a doses de altruísmo, abnegação e sacrifício sem precedentes. Há maior prova de amor do que dar sem pedir nem esperar reciprocidade, como nas relações ideais, ou suficientemente boas, entre pais e filhos? Ou dar sem olhar a meios, com grandeza e heroísmo, à semelhança do que sucede nas histórias de amor romântico?
Há uma inegável poesia em tudo isto. Um cheirinho a Florbela Espanca nessa atitude de “ser mendigo e dar como quem seja rei do reino de aquém e de além dor”. Mas, será isto amor? E porque é que amar assim tem, quase sempre, a ingratidão como certa por parte do outro?
AMAR DEMAIS
Chama-se a isto amar demais. Não sou eu que o digo, é uma senhora americana que cunhou a expressão, em 1985, quando publicou Mulheres Que Amam Demais. Dois anos mais tarde, o livro de auto-ajuda converteu-se num bestseller à escala mundial e a californiana, hoje com 71 anos, viu a sua obra ser traduzida em 30 línguas e com mais de três milhões de cópias vendidas.
Quando o livro foi publicado em Portugal, questionei a designação, já que o amor não se mede em quilos, nem noutra unidade do género, sendo por isso um tanto ou quanto impreciso considerar que é demais ou de menos. Por outro lado, sendo cada humano dotado de uma cabeça e um coração, não deixa de soar um tanto ou quanto invasiva a ideia de pensar ou de amar por dois. Ou por três, e por aí fora. A menos que se seja ingénuo, masoquista ou mártir. Amar demais refere-se a um síndroma, a uma espécie de doença a que se convencionou chamar codependência. Trata-se de alguém que alimenta a dependência de outro para satisfazer carências próprias, ainda que nem sempre tenha consciência disso. Se tivesse, não ficaria atrelada a um relacionamento assente numa assimetria que só pode correr mal e acabar pior.
CODEPENDER É SOFRER
Amar por terceiros é uma adição, um vício. Codependência não é interdependência (que implica paridade e reciprocidade). Quando uma das partes precisa da outra para exercer sobre ela alguma forma de controlo, ainda que mascarada de dedicação, é o princípio do fim. E porquê? Porque é negar o que o outro sente, diz ou dá a entender. É acreditar que querer é poder e que quando um quer, o outro não precisa de concordar para algo acontecer e permanecer. É uma forma de omnipotência, uma ilusão insustentável a médio prazo, que acabará por desfazer-se com estrondo, quando a parte que deixa de ter voz decide tomar medidas drásticas e bater com a porta, de forma a não deixar margem para dúvidas.
A partir desse momento, é a neura total, o abatimento, o vazio insuportável. No pico da depressão, surge a oportunidade para questionar tudo, uma e outra vez, e compreender o que não estava certo desde o início: fazer tudo, literalmente tudo, por alguém, e viver exclusivamente em função desse alguém, como a única forma de não sentir-se abandonado. Ou abandonada, já que este tipo de situação parece ser mais comum no sexo feminino. Não foi por acaso que serviu de tema de eleição para o filme Ele Não Está Assim Tão Interessado, dos argumentistas de O Sexo e a Cidade, Greg Behrendt e Liz Tuccillo, lançado em 2009: se a norma for interpretar os sinais emitidos pelo sexo oposto, nas cenas de sedução, como um “sim”, ou se “dourar a pílula” é um modo de vida, tal dá azo a situações caricatas, que levam a rir para não chorar.
LIBERDADE SEM MEDO
Amar demais - ou amar por terceiros - pode parecer uma prova de amor infinita, mas esconder um profundo desespero. Quando essa atitude é manifestamente “em excesso” face a alguém, ela pode revelar precisamente o oposto: o amar-se “em débito”, o não ser capaz de gostar suficientemente de si e de respeitar as suas próprias necessidades, fazendo impossíveis em nome de um imaginário bem maior.
Como sair do ciclo vicioso, do padrão repetitivo que, quase sempre, é aprendido na infância, com aqueles de quem se depende completamente para poder sobreviver? Quantas vezes é preciso reviver, noutros relacionamentos, o mesmo medo - terror, até - do abandono, para se perceber que o amor genuíno não se compra nem se impõe e, menos ainda, se sobrepõe ao de um semelhante? A codependência afetiva supera-se, mas pode implicar ajuda profissional, sob a forma de psicoterapia ou outra, em que a pessoa se sinta segura e se permita ensaiar outras maneiras de relacionar-se, consigo em primeiro lugar. Sem medo de ficar sozinha, sem receio de ser rejeitada por ser como é, ou sentir que a sua auto estima ou valor pessoal só depende daquilo que dá, e que é a moeda de troca para ser acolhida, aceite ou simplesmente tolerada pelo outro.
Clara Soares (jornalista e psicóloga)
http://visao.sapo.pt/opiniao/psicologia-quotidiana-clara-soares/2017-05-30-Porque-nao-e-bom-amar-pelos-dois
As fases do amor são uma:
a primeira, a primeira, a primeira.
Nada no amor vai além da primeira fase
‑ a voltagem do encontro ‑
com nenhum futuro além da primeira fase.
Arruma-se a casa, limpa-se a fuligem
do passado, todos os sóis são convocados
para a hora sem volta da primeira fase:
é ali onde o amor marca o encontro
da emboscada com o acaso.
É neste momento da primeira fase
que o tempo se alarga, e morre-se de amor
no eterno da primeira fase. Tudo, tudo é
tudo é convocado: o hálito com suas
aragens, o incêndio do corpo
exaurindo as margens, a chama do sopro
com suas linguagens. E não há conjeturas
sobre os limites da primeira fase, a não ser
o horror do fim, o abismo do fim que reside
no infinito da primeira fase.
Paulinho
Assunção, Novos poemas
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
O amor tem cinco fases. Mas a maioria das pessoas fica
estagnada na terceira
Depois de 40 anos de pesquisa clínica, o famoso
psicólogo Jed Diamond concluiu que a maioria das pessoas encontra, de facto, a
sua ‘cara-metade’. Mas, para que o relacionamento funcione é preciso superar
cinco fases inevitáveis da vida a dois. O problema é que, como o psicólogo
aferiu, a maioria das pessoas fica-se pela terceira fase e termina a relação.
De acordo com Jed Diamond e como
explica no seu siteMenAlivepara conseguir um amor verdadeiro e
duradouro é preciso passar por estas fases:
1.
Paixão.
Fase em que se sente extasiado pelas hormonas da
felicidade, em que projeta todas as suas expectativas no parceiro e em que não
consegue ver nenhum defeito nessa pessoa.
2.
Início oficial da relação.
Quando se começa uma união estável ou se dá o
casamento o amor torna-se mais forte. Começam a viver juntos, a conhecer-se
melhor e a influenciar os aspetos da vida do outro. É um momento de união e de
alegria.
3.
Desilusão.
Este é o momento em que todas as esperanças são
destruídas. Parece que os sentimentos estão a desaparecer, a outra pessoa
torna-se demasiado previsível e o seu comportamento começa a irritá-lo. Quer
fazer afastar-se durante um tempo ou mesmo pôr fim à relação. E é aqui que
muitas pessoas dão o amor como morto e deixam de se esforçar por uma relação
que parece já não lhes trazer felicidade há muito.
4.
Superação da crise ecriação
do amor verdadeiroe
duradouro.
Se conseguir ultrapassar a terceira fase com segurança
chega esta em que as ilusões que estava a projetar no seu parceiro desaparecem
e começa a ver a pessoa que está à sua frente e não a imagem que criou dela. Se
a aceitar como ela é e compreender os seus pequenos defeitos conseguirão ajudar
um ao outro e passar para a fase do amor verdadeiro e criar uma parceria real.
5.Utilizar
o poder de ambos para mudar o mundo.
Sabendo que conseguiram ultrapassar todas as vossas
diferenças e mal-entendidos e de que encontraram uma ligação profunda e forte
entre vocês, sentem que têm força para mudar o que quer que seja, são uma
equipa imbatível. Mais do que viver juntos, vivem juntos por um propósito e
trabalham e pensam como um só.
Nas
últimas décadas, com o surgimento de técnicas como a tomografia computadorizada
por emissão de pósitrons e a ressonância magnética funcional, os
neurocientistas começaram a investigar assuntos como o amor, a atração e a
monogamia; áreas que até então tinham prevalência de estudos psicológicos e
sociológicos. Desta forma, eles foram à busca de respostas para perguntas como
o porquê nos apaixonamos e o porquê escolhemos uma pessoa específica.
Psicólogos definiram três
diferentes fases para um relacionamento amoroso: 1) paixão/romantismo, 2) amor
passional e 3) companheirismo; além do rompimento, que pode ocorrer durante
esse percurso, sendo que cada uma apresenta suas próprias características (Figura
1).
Figura 1: Esquema ilustrando as fases do amor e suas respectivas durações: 1) paixão/romantismo, 2) amor passional e 3) companheirismo. O rompimento, que pode ocorrer durante esse percurso, também está representado, sendo mais comum que ocorra entre as fases 2 (amor passional) e 3 (companheirismo).
A primeira fase, relativamente
curta (aproximadamente 6 meses), apresenta grandes variações hormonais de
oxitocina e vasopressina que são importantes hormônios que regulam áreas do
sistema de recompensa do cérebro (Figura 2), complexa rede de neurônios que é
ativada quando fazemos atividades que causam prazer.
Figura 2: Localização das principais áreas envolvidas no relacionamento amoroso: núcleo Accumbens; núcleo pálido ventral e área tegmental ventral.
Boer e colaboradores1,
da Universidade de Groningen, na Holanda, publicaram em 2012 um artigo de
revisão bastante interessante sobre as perspectivas neurobiológicas atuais do
amor e afeição.
Os autores relatam diversos
estudos realizados com o objetivo de elucidar a base neurobiológica da
monogamia, a maioria deles comparando duas diferentes espécies de ratazanas
(monogâmicas e promíscuas), em que estas áreas e regiões adjacentes
demonstraram alterações em sua ativação durante a fase inicial do amor
(romântica). Estas áreas estão intimamente ligadas à dopamina, outro importante
neurotransmissor para o sistema de recompensa.
A relação entre a dopamina e a
monogamia foi demonstrada no encéfalo destes animais em que, após infusão
moderada deste hormônio no núcleoAccumbensda
espécie promíscua, elas passaram a apresentar comportamento monogâmico. É como
se seu companheiro ou companheira que é muito assanhado(a) passasse a ser a
pessoal mais fiel à você!
Além do sistema de recompensa
cerebral, foram observadas alterações na atividade de regiões corticais que se
associam às experiências emocionais, principalmente o medo, sentimento que
diminui quando estamos próximos às pessoas amadas; as experiências negativas e
de julgamento, observado na incapacidade de julgarmos honestamente o caráter de
quem amamos; e de percepção sobre a evolução dos sentimentos e intenções da outra
pessoa.
A segunda fase, a fase passional,
compreende até o primeiro ano de relacionamento.Nesta fase, a oxitocina e a
vasopressina estão envolvidas na formação de um relacionamento sólido. Estas
alterações geram os sentimentos de segurança, calma e equilíbrio.
Em 2013, Scheele e colaboradores2
avaliaram a ação da administração intranasal de oxitocina (OXT) no sistema de
recompensa dopaminérgico, através da apresentação da foto da parceira em
comparação com a de outras mulheres exemplificadas adiante.
Foram selecionados 40
participantes do sexo masculino, adultos, não fumantes que estavam em um
relacionamento amoroso heterossexual por mais de 6 meses, solteiros e sem
filhos que, portanto, estavam vivenciando a segunda fase do amor, o amor
passional.
Foram realizados dois estudos, um
de Descoberta (DSC) e um de Replicação (RPL) (Figura 3), cada um com 20
sujeitos. Trinta minutos antes de começar o teste, estes foram aleatoriamente
selecionados para receberem OXT intranasal ou Placebo (PLC).
No DSC, foram apresentadas a foto
da parceira, de uma mulher desconhecida (com igual grau de beleza) e a figura
de uma casa como controle, pois esta não é considerada um estímulo facial.
Já no RPL, a figura da casa foi
substituída pela foto de uma mulher familiar que conhecia o participante há, no
mínimo, 30 meses.
Figura 3: Exemplificação da realização dos estudos, contendo o tipo de estudo (verde), imagens utilizadas (azul) e substância utilizada (laranja).
Ambos os
estudos utilizaram a Ressonância Magnética Funcional (RMf) para visualizar o
contraste de ativação cerebral quando cada uma das fotos foram apresentadas,
além de ser avaliado o grau de atratividade e recompensa para cada foto.
O efeito da OXT foi evidenciado
quando houve o aumento de ativação pela visualização da parceira e decréscimo
de ativação pela visualização da foto da mulher desconhecida no núcleoAccumbens(NAcc) e na Área Tegmental Ventral
(ATV), o que intensificou o sentimento de recompensa pela parceira quando a
foto foi apresentada. Isto aumentou a ativação da área de recompensa, sendo
ainda o ATV recentemente sugerido como área de ação da oxitocina para salientar
os estímulos socialmente relevantes.
A ativação da ATV sofreu
decréscimo, em ambos os estudos RPL e DSC, após o tratamento com OXT, o que
pode contribuir para os relacionamentos duradouros, pois demais mulheres se
tornam menos atrativas, porém não foram realizados estudos comportamentais para
validação desta hipótese.
Quando comparado à casa, figura
neutra, com a parceira no tratamento com placebo (PLC), notou-se ausência de
forte resposta neural, pois a casa não é uma figura tão recompensadora quanto
uma mulher desconhecida com igual grau de beleza que sua parceira.
Nos homens envolvidos em
relacionamentos amorosos o aumento de oxitocina (OXT) sinaliza a proximidade,
apoio social, contato íntimo ou sexo como atividades muito mais gratificantes
se compartilhadas com sua parceira.
Através destes estudos,
verificou-se a possível influência da OXT no aumento da atração facial, da
comunicação entre o casal durante discussões e da fidelidade masculina através
do distanciamento das demais mulheres.
Contudo, neste estudo não foram
analisados os efeitos da OXT na ansiedade e no humor, sendo necessárias
análises mais sensíveis que possam detectar alterações mais sutis. Podem também
ter ocorrido alterações inconscientes de afetividade, pois não foram coletados
dados psicológicos.
A terceira fase, companheirismo,
é caracterizada pela diminuição da paixão e o aumento de comprometimento com o
parceiro, o que se assemelha a um sentimento de amizade. A oxitocina e a
vasopressina mantêm seu papel, sendo os hormônios dominantes para manter o
relacionamento.
Contudo, não podemos classificar
todas as relações amorosas desta maneira, pois um terço dos casamentos acaba em
divórcio e outros relacionamentos chegam ao fim, ainda entre as primeiras
etapas, sendo mais comum na transição da fase passional para o companheirismo.
Neste período, a intimidade entre os casais decai e o compromisso é o maior
laço entre o casal, tornando assim a relação frágil.
Ao avaliar a atividade cerebral
de pessoas que haviam terminado seus relacionamentos recentemente, foi
observada uma alta atividade em outras regiões do sistema de recompensa
dopaminérgico que estão associadas a recompensas incertas e respostas
tardias,caracterizando o sentimento de incertezas de futuro1.
Os estudos realizados na
tentativa de elucidar as bases neurobiológicas do relacionamento amoroso ainda
são escassos, apesar do interesse crescente de cientistas e pesquisadores da
área de Neurociências e dos recentes avanços das técnicas de imagem. Muitos
deles, realizados em animais, talvez não possam ser transpostos ao homem, mas
com certeza ajudam a compreender este campo ainda tão pouco explorado. Embora
seja um estudo bem complexo, o amor nos seres humanos é um interessante tópico
que merece ser aprofundado no sentido neurobiológico, levando a novas
descobertas nos próximos anos.
Referências
1. de Boer A, van Buel EM, Ter Horst GJ. Love Is More Than Just a Kiss: A Neurobiological Perspective
on Love and Affection. Neuroscience. 2012 Jan 10;201:114-24. PubMed PMID:
ISI:000299400700011. English.
2.
Scheele D, Wille A, Kendrick KM, Stoffel-Wagner B, Becker B, Gunturkun O, et
al. Oxytocin enhances brain reward system responses in men viewing the face of
their female partner. P Natl Acad Sci USA. 2013 Dec 10;110(50):20308-13. PubMed
PMID: ISI:000328061700077. English.
"O grande erro do século XX foi acharmos que o amor era só um sentimento, que vai e vem. Na realidade, é um ato de vontade e inteligência"
José Carlos Carvalho
Entrevista ao psiquiatra e escritor
espanhol Enrique Rojas, o homem do momento em Espanha
O homem
de quem se fala em Espanha, pelos seus livros de autoajuda, veio a Lisboa
munido de mais um título que promete alargar os mais de três milhões de
exemplares vendidos, desde que apostou na escrita sobre dirigida ao cidadão
comum. SOS Ansiedade (Matéria Prima, 186 págs., €15) tem todos os ingredientes
para seguir o caminho dos outros títulos editados em Portugal (Não te rendas! e
Vive a tua vida). Aos 68 anos, o diretor do Instituto Espanhol de Investigação
Psiquiátrica de Madrid conversou com a VISÃO sobre o que faz de nós pessoas
menos ansiosas, mais felizes e capazes de amar com inteligência. Entre
consultas e digressões, nuestro hermano preside ainda à Fundação Rojas-Estapé,
que acompanha gratuitamente jovens com perturbações de personalidade e baixos
recursos económicos.
A psiquiatria está-lhe no sangue?
O meu pai, o meu primo, a minha irmã são psiquiatras e a
minha filha é psicóloga. “Rojas” é igual a “psiquiatria”.
E como é viver com isso?
Hoje podemos dizer que o psiquiatra vende paz,
tranquilidade, ilusão e felicidade. Porém, contactar diariamente com situações
pessoais duras, graves e complicadas produz erosão. Combatê-las passa por
cultivar algo para relaxar. Eu faço pintura abstrata: quando me sinto esgotado
vou para o estúdio e dedico-me a essa paixão. Além disso ouço música e faço
desporto.
Doutorou-se com um trabalho sobre suicídio e
perturbações de personalidade. Como as define?
São desequilíbrios psicológicos decorrentes de feridas passadas
não saradas e de um baixo nível de autoestima. Na investigação que fiz, com o
meu pai, numa amostra de pessoas que tentaram suicidar-se mas não o
conseguiram, concluí que estas pessoas tinham também baixa confiança em si
mesmas, oscilações de humor e não conseguiam desfrutar da vida, convertendo
problemas em dramas. Se juntar a isso a depressão, que se faz acompanhar de
sintomas como melancolia, sentimentos negativos, pessimismo e ansiedade,
percebe-se como surge o desejo de se matar.
A ansiedade pode agravar essa predisposição?
O problema da ansiedade é a adrenalina em excesso a circular
entre os neurónios, que se manifesta no plano físico: taquicardia, suores
frios, excesso de suco gástrico, sensação de falta de ar, tremores nas mãos. As
crises ansiosas são um tsunami de ansiedade que dura minutos em que estão
presentes vários medos: de morrer, de enlouquecer, de perder o controlo. O
último é o mais frequente.
Como se gere a ansiedade, de modo a que não
tome conta da vida?
É preciso parar e perguntar-se três coisas que constituem a
base de uma personalidade equilibrada: “Quem sou”, “para onde vou” e “com
quem”. Tal implica saber o que se quer e ter ultrapassado as feridas do
passado. Ajuda ter um projeto de vida realista, dar às coisas que acontecem a
importância que de facto têm, com sentido de humor e resiliência. Isso é ser
uma pessoa madura, que aprende com as derrotas e cresce como ser humano. A
ansiedade pode ser positiva, criativa, mas também negativa, se impedir uma vida
normal: a pessoa está sempre mal com o trabalho, os amigos, o cônjuge.
O que fazer quando se fica enredado nas malhas
desta “aminimiga”?
Se for endógena, ou seja, resultar de um desequilíbrio
bioquímico, combate-se com fármacos e psicoterapia. Caso seja exógena, com
origem no exterior, a psicoterapia pode ajudar. Sabemos que a causa da
ansiedade é externa quando se manifesta, entre outras coisas, na constante
falta de tempo, no ritmo frenético e no vício do trabalho, do móvel ou da net.
A solução para pôr termo a isto está em aprender a dizer “não”. Cortar as
ambições excessivas também dá muita paz, tal como colocar ordem nos horários,
na casa.
Os estudos mostram que a ansiedade é muito
comum na meia--idade.
Isso é um sintoma de que algo correu mal na vida daquela pessoa? Ou é uma
questão social?
Na Europa avançou-se mais em 15 anos do que num século. A
velocidade é muito grande. As coisas correrão melhor se nos lembrarmos de três
coisas fundamentais, que são o amor, o trabalho, a cultura e a amizade. Não há
felicidade sem amor nem amor sem renúncia. Se amarmos o que fazemos no trabalho
sabemos que estamos na via certa. A cultura, que é conhecimento, liberta-nos. O problema começa quando deixa
de haver tempo para isto, só o há para as redes sociais... De modo que não se
sabe quem é Pessoa, Saramago. Quando perdemos a curiosidade ficamos mais
pobres.
Saltamos de uma coisa para outra, fica tudo
mais plano, ou digitalizado, por assim dizer.
Gosto muito dessa expressão. O “aplanar”. A cultura é a capacidade de ir contra a
corrente e seguir a estética da inteligência. Quanto à amizade, Dom Quixote,
mais importante que Cervantes, dizia que a felicidade não está no destino mas
no meio do caminho. Sancho Pança, por seu turno, tinha esta máxima: “Amigo que
não dá e faca que não corta, se se perder não importa.” Os verdadeiros amigos
são poucos. A falta de tempo prejudica as amizades.
É possível cultivar a felicidade e prevenir a
doença sozinho no frenesim em que vivemos?
Sim, mas é difícil na era do stresse, da depressão e do
desamor. E da apatia, que é a indiferença perante a vida. Por isso é que os
psiquiatras e psicólogos se converteram em conselheiros de cabeceira. Só quem
está pouco informado é que pensa que ir ao psi é para quem é doente ou louco.
Se a sociedade em que estamos é de fast food, a psicologia é uma espécie de
slow food. A ideia é sermos capazes de nos encontrarmos a nós mesmos, sozinhos
ou com a ajuda de alguém. Isso requer tempo.
O mindfulness ou a atenção plena, podem
combater a trilogia da ansiedade depressão-desamor da sociedade atual?
Poder, pode, mas parece-me que necessitamos de uma visão
mais abrangente, sobretudo no que se refere à gestão do amor. O grande erro do
século XX foi acharmos que o amor era só um sentimento, que vai e vem. E que
era um monólogo. Na realidade, o amor maduro é um ato de vontade e de
inteligência.
Cultiva a inteligência amorosa na sua vida?
(Risos) Faço por isso, sou casado há 33 anos! Se eu fosse
uma águia com duas cabeças direcionadas para o passado e para o futuro, a
primeira diria que a felicidade é ter boa saúde e má memória; a segunda, que é
ter ilusões. Ficamos velhos quando olhamos mais para trás do que para a frente
e a memória toma o lugar da ilusão.
Mas se olhar muito para o futuro pode perder o
chão, ou desiludir-se entretanto, certo?
Para que isso não suceda, há que distinguir entre metas, que
são gerais, e objetivos, que são mensuráveis e concretos. Um exemplo. Meta:
quero emagrecer. Objetivos: perder um quilo por semana, cortar nos hidratos de
carbono e nas gorduras animais, andar uma hora diariamente.
Pode dar um exemplo que envolva as relações
humanas?
Imagine uma crise conjugal. Meta: Resolver o problema com o
parceiro. Objetivos: deixar para trás as queixas do passado, aprender a
perdoar, evitar discussões desnecessárias, não converter um problema num drama,
ter uma sexualidade partilhada e sem monotonia.
Esta lógica aplica-se às adversidades e à
forma de evoluir com elas, sem se ir abaixo?
Sim. Os perdedores que assumem a derrota e começam de novo
conseguem fazê-lo. Veja o caso de Steve Jobs, que se arruinou na vida por duas
vezes e chegou a estar viciado em cocaína e heroína. Chama-se a isto
resiliência. Tal como o caso do pescador mexicano que esteve perdido no
Pacífico durante 438 dias, chegando a beber a sua urina e a comer as próprias
unhas para sobreviver. Saiu da experiência cheio de amor. E Nelson Mandela, 28
anos de encarceramento e sujeito a tortura. Aí escreveu uma grande obra sobre a
liberdade.
Impressiona e inspira, sem dúvida. Porém, a
comparação pode ter o efeito contrário e puxar o outro para baixo… Algo do tipo
“Se eles são tão bons, serei eu tão mau?”
A mensagem a reter é só esta: não dar o flanco e começar de
novo. O autor espanhol Unamuno, em Diário Íntimo, diz: “Não te dês por vencido,
nem a um vencido; não te mostres como um escravo, nem mesmo a um escravo”. Fui
buscar a mensagem da campanha de Tony Blair, “não te rendas”, que por sua vez
já tinha ido buscar a ideia a Churchill. Se não se consegue fazer isto sozinho,
há que procurar alguém para que nos ajude a seguir em frente.
É possível desenvolver a resiliência com
livros de autoajuda?
Em certos casos, a psicoterapia e a farmacologia são
incontornáveis. Eu sigo um modelo de psicoterapia cognitivo e comportamental,
que assenta na ideia de que podemos mudar o nosso comportamento se modificarmos
as nossas crenças. Neste ponto da adversidade e da resiliência, creio que os
leitores beneficiam de orientações específicas que os possam encaminhar em
fases importantes da vida.
O que responde a quem lhe pergunta: “Porque me
sinto tão mal se tudo me corre tão bem?”
O material não é tudo. Para estar bem tenho de estar bem
comigo, saber o que quero e o que pretendo mudar na minha vida.
No seu livro afirma que a saúde é o silêncio
da corporalidade e que cada corpo é um semáforo. O que quer dizer com isto?
A cara espelha aquilo que somos. A face e as mãos anunciam a
vida como projeto. Voltando ao tema da ansiedade, ela manifesta-se por duas
vias. O caminho do corpo expressa-se através de sintomas como a queda de cabelo
(alopécia), problemas gástricos, musculares, respiratórios. O caminho da mente
traduz-se em fobia ou em obsessões. Se uma pessoa tem crises de pânico num
avião, apetece-lhe gritar e fica descontrolada, ao longo da semana é natural
que desenvolva medo de voltar a voar. O pânico converte-se numa fobia, um medo
intenso que a leva a evitar ou a adiar a viagem. Já as obsessões levam a pessoa
a querer mudar o corpo de forma compulsiva, com tratamentos, cirurgias, em
várias partes do corpo: hoje a cara, amanhã o peito, a perna.
A obsessão com a imagem revela um problema
sério na mente, nos afetos, até?
Cuidar muito o que está fora e descuidar muito o que está
dentro é um indicador que de que algo não está bem e isso leva a outras doenças
como a vigorexia, a bulimia, a anorexia.
A questão psicossomática não é mais do que o
corpo a revelar o que a mente não consegue processar?
Um conflito psicológico crónico manifesta-se no plano físico.
Se não se resolve pode aparecer sob a forma de dispepsia, depois gastrite e,
mais tarde, culminar numa úlcera.
Porque diz que os problemas psicossomáticos
são mais comuns em personalidades fortes?
Quem se considera forte não gosta de mostrar o que sente.
Guarda para si, esconde, mantém silêncio.
O que significa, para si, uma personalidade
saudável e madura?
Na ultima revisão do DSM (Manual de Diagnóstico de
Transtornos Mentais), as perturbações de personalidade aparecem classificadas
como uma modalidade e já não uma doença. Os americanos, que mandam no mundo e
lideraram esta revisão [associação Americana de Psiquiatria], entendem que é
quase impossível diagnosticar alguém como imaturo porque, na população, a
imaturidade está em todas as partes e nenhuma. De resto, a nova edição
espanhola do livro de autoajuda de Wayne Dyer (As Suas Zonas Erróneas, na
tradução portuguesa) cujo prefácio, escrito por mim, começa justamente assim:
“O que é uma personalidade imatura?”
Como o mito do amor romântico pode arruinar sua vida amorosa
O conceito de 'amor ideal' é uma criação cultural, mas mesmo assim perseguimos o inatingível, nos frustramos e nos sentimos inadequados quando não o alcançamos.
Em 1997, o psicólogo social Arthur Aron, da Universidade Estadual de Nova York, desenvolveu e publicou um estudo em que afirmou ser possível fazer com que duas pessoas desconhecidas se apaixonassem uma pela outra em poucas horas.
Ele mesmo teria atingido resultados positivos em laboratório. A técnica era relativamente simples: Aron desenvolveu 36 perguntas que os dois indivíduos deveriam responder um para o outro. No fim do questionário, os dois deveriam se encarar em silêncio por quatro minutos contados no relógio. E voilà: paixão enlatada, segundo ele.
As 36 perguntas são simples, mas obrigam os indivíduos a se exporem emocionalmente e pessoalmente. Vão desde “Se você pudesse jantar com qualquer pessoa do mundo, quem seria?” até “Qual o papel do amor e do afeto na sua vida?”.
O estudo conduzido por Aron é baseado na ideia de que demonstrar vulnerabilidades mútuas é capaz de cultivar proximidade e intimidade. O pesquisador identificou um padrão na construção de relacionamentos amorosos estáveis: transparência, entrega e sinceridade constantes, crescentes, recíprocas e pessoais. A lista de perguntas desenvolvida por ele tem como objetivo conduzir essa troca.
“Todos nós temos uma narrativa sobre nós mesmos que apresentamos para os outros, mas as perguntas do Dr. Aron fazem com que seja impossível usar essa narrativa.” Mandy Len Catron (Colunista do The New York Times)
A proposta de Aron ganhou manchetes em 2015, quando o jornal The New York Times publicou texto da colunista Mandy Len Catron em que ela disse ter-se apaixonado por alguém usando a lista de perguntas em um encontro.
Com
ela, voltaram ao debate os questionamentos em torno da ideia de amor romântico.
Se vulnerabilidade mútua pode levar à paixão, onde fica a ideia de uma
alma-gêmea? Na desconstrução do conceito de amor ideal ao qual nos agarramos
culturalmente todos os dias, há a possibilidade de entender as frustrações com
a vida amorosa (ou a falta dela) e o número cada vez mais alto de divórcios nas sociedades ocidentais.
A
manufatura do amor
No ocidente, a noção moderna de amor
romântico conceitua uma sensação mágica, incomparável. Geralmente, ele é
descrito como um encontro de almas que acontece por pura sorte — predestinação,
talvez — que responde às angústias e aos desejos mais básicos da vida.
O amor romântico idealizado se
apresenta como a resposta à dúvida principal sobre o sentido da existência. Há,
fundamentalmente, a ideia de completude: sem o outro, seremos eternamente
incompletos.
Essas sensações não foram inventadas.
Essa descrição do amor apareceu repetidas vezes ao longo da história. É
possível encontrá-la, primeiro, na definição de amor descrita pelo filósofo Platão, na Grécia antiga, e em
outras descrições no Império Romano, no Japão Feudal e na Grécia.
No fim do século 17, a literatura
ganhou outras narrativas mais contundentes que exaltavam o amor romântico. Os
exemplos mais emblemáticos são o de Tristão e Isolda e Romeu e Julieta, que
descrevem histórias de amantes que se viam diante de obstáculos — e essas impossibilidades
eram um combustível para esse amor.
Até então, o amor romântico que
tomamos como regra no ocidente aparecia somente em narrativas pontuais. O
conceito do casamento, em si, não envolve “amor” na concepção. Casamentos foram
criados para serem instituições econômicas, alianças forjadas para fortalecer e
concentrar poder ou dinheiro.
Foi o romantismo, resumido nos ideais
da Revolução Francesa, que culminou no surgimento da ideia de que o amor avassalador,
único e mágico era um direito e um dever de todo ser humano, uma parte
fundamental - talvez nossa única real motivação. Um dos filósofos responsáveis
por essa mudança de pensamento foi o francês Jean Jacques Rousseau.
O projeto do filósofo tinha como base
a ideia tradicional de família como a conhecemos. Ele criticava relações
baseadas em perpetrar poder ou fortunas, que para Rousseau, impediam a
construção de uma sociedade altruísta e ideal.
O filósofo acreditava que o amor
conjugal — a constituição de uma família baseada no amor romântico — era o
único caminho para que indivíduos se dispusessem a sacrificar os próprios
interesses para o benefício comum, resultando em uma sociedade melhor.
A relação conjugal defendida por
Rousseau previa que o amor e o sexo andassem juntos, porque a busca de sexo
fora do casamento significava a busca por valores egoístas, como conquista e
vaidade, e não a felicidade alheia e o benefício da sociedade.
Foi a idealização de Rousseau que
reuniu em uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e
casamento. Antes dele, tudo era vendido separadamente.
A idealização de Rousseau reuniu em
uma só instituição os conceitos de amor, sexo, felicidade e casamento. Antes
dele, tudo era vendido separadamente.
Já na Revolução Industrial, mesmo com
a formação da família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, o casamento ainda
não tinha muito a ver com amor. A propagação definitiva do amor romântico
idealizado veio com o surgimento da cultura de massa da televisão e do cinema, que
transformou em produto o mito do amor romântico: isso começou nos anos 1940, e
bons exemplos são filmes como “O Vento Levou” e “Casablanca”.
Pela primeira vez, uma sociedade
inteira - a ocidental - passou a acreditar que o amor romântico, culminando em
um relacionamento e depois em um casamento feliz, duradouro, monogâmico e
sexualmente ativo, era a forma ideal de se relacionar com o outro.
Até hoje, a cultura pop — dos filmes
à música, passando pela literatura e pela internet - é profundamente baseada
nesses ideais.
Uma
conta difícil de fechar
É fácil constatar que essa
idealização está fadada a criar frustração. O conto de fadas ainda é usado,
consciente ou inconscientemente, como referencial para qualquer relacionamento
amoroso na sociedade ocidental.
“Presumimos que, comparado ao amor
romântico, qualquer outro tipo de amor entre duas pessoas que se relacionam de
maneira amorosa seria frio e insignificante”, escreve o psicanalista Robert A.
Johnson, no livro “We - A Chave da Psicologia do Amor Romântico”.
O mito do amor romântico idealiza o
outro e atribui a ele características inexistentes. O conceito sugere que, se você se apaixona
por alguém, essa é a pessoa que vai suprir todas as suas necessidades.
Daí a ideia de que o parceiro no qual
devemos mirar é alguém que provoca uma paixão avassaladora que nos faz sentir
completo, nos satisfaz sexualmente, desperta em nós a vontade de morar junto
para o resto da vida e dividir todos os aspectos dela — negócios, patrimônio,
amigos e aspirações — só com aquela pessoa, além de ter filhos, tudo isso sendo
felizes o tempo todo.
Todos os especialistas em
comportamento e psicologia social concordam: é responsabilidade demais para
colocar sobre uma pessoa só. Não há pessoa ou fenômeno nenhum capaz de fazer todas essas
coisas.
No entanto, porque o conceito é dado
como real e possível, nos cobramos a vida toda para buscar, encontrar e sentir
o tal amor romântico ideal. E se alguma dessas coisas dá errado no processo,
nos sentimos inadequados, fracassados ou culpamos o companheiro.
“Quando não realizamos o ideal
imaginário do amor, buscamos explicar a impossibilidade culpando a nós mesmos,
aos outros ou ao mundo, mas nunca contestando as regras comportamentais, sentimentais
ou cognitivas que interiorizamos quando aprendemos a amar. [...] o amor-paixão romântico
encampou a ideia de felicidade emocional, criando seus párias e cidadãos de
primeira classe.” (Jurandir Freire Costa, Psicanalista e autor do livro "Sem Fraude Nem Favor: Estudos Sobre o Amor
Romântico")
A ideia do amor romântico considera
que paixão e amor são sentimentos permanentes, duradouros e que simplesmente
surgem do nada. A ciência já sabe alguma coisa sobre o que chamamos de paixão:
trata-se de um fenômeno neuroquímico caracterizado pela influência de substâncias
como adrenalina, dopamina e serotonina no cérebro e no corpo.
Essas substâncias são liberadas por
glândulas quando nos relacionamos de alguma forma com alguém por quem nos
sentimos fisicamente ou afetivamente atraídos.
O contato físico e os estímulos
mentais trocados com o outro alimentam a liberação dessas substâncias, mas
calcula-se que o fenômeno químico — que já foi até comparado ao efeito de drogas, porque vicia — possa durar
de poucos dias a até um ou dois anos. E só.
As 36 perguntas desenvolvidas pelo
psicólogo Arthur Aron são um atalho para gerar intimidade e fomentar a
liberação de algumas dessas substâncias químicas.
Mas o estímulo inicial só pode levar
a um relacionamento e à construção de um afeto real caso os dois envolvidos no
questionário escolham continuar a troca e a construção desse afeto.
Quando não estamos mais tomados pelo
coquetel de hormônios e ficamos diante das dificuldades cotidianas impostas
pela convivência com o outro, o relacionamento foge do esperado. A lista do
amor romântico ideal não prevê a necessidade de esforços, construção diária,
concessões e nem contempla os defeitos do outro como obstáculos.
“O amor não aconteceu simplesmente para nós. Estamos apaixonados
porque escolhemos isso.” (Mandy Len Catron, colunista do New York Times, sobre as 36 perguntas para se apaixonar.)
Pelo mesmo motivo, quando um
companheiro falha em suprir algum item da lista do amor romântico ideal,
identifica-se que não pode ser amor verdadeiro e há a sensação de que o
relacionamento é disfuncional. Isso vale para tradições como dividir a casa
com o cônjuge, ser monogâmico e ter filhos, por exemplo.
Na mesma linha, qualquer outro
formato de relacionamento — cônjuges que não vivam na mesma casa, casais que
não planejam ter filhos, relacionamentos abertos — ganham status de tabu. Se há
uma cultura de massa vendendo uma lista de critérios para ser feliz em um relacionamento,
é desagradável ser confrontado com pessoas que se dizem felizes mesmo depois de
terem escrito uma lista nova.
“O condicionamento cultural é muito
forte. Chegamos à idade adulta sem saber se nossos desejos são nossos ou se
aprendemos a desejá-los. Mas estamos vivendo um modelo [o amor romântico
idealizado] que não dá conta da realidade contemporânea, que não dá mais
respostas satisfatórias”, teoriza Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora
especializada em relacionamentos em entrevista ao Nexo.
Para ela, a cultura ocidental nas
últimas duas décadas está passando por um momento de busca por individualidade.
“Hoje, a grande viagem do ser humano e do jovem é estar dentro de si mesmo,
investir em seu potencial, suas habilidades, se conhecer”, explica.
O amor romântico ideal bate de frente
com essa tendência, porque prega o oposto. Para Navarro Lins, isso abre espaço
para que mais pessoas escolham como querem viver relacionamentos e indica que o
conceito de amor romântico dá sinais de que pode estar saindo de cena. Um
indício seria o surgimento de relacionamentos abertos e de relações
poliamorosas — relacionamentos fechados mas compostos de três ou mais
indivíduos.
Os modelos novos propõem um formato
que, diante do tradicional, parece loucura: a pessoa que você escolhe para se
relacionar não é aquela com quem você é obrigado a passar o resto da vida, ter
filhos, dividir a casa. Pode existir uma para cada, aliás.
A partir daí, a obrigação de fazer o outro feliz sai do cônjuge e vai para o indivíduo e suas
escolhas. Regina acredita que o fim do mito do amor romântico como cultura
massificada é fundamental para que as pessoas sejam mais felizes e realizadas
com a vida amorosa. “Pode demorar, mas estamos caminhando pra isso”, conclui.