sábado, 7 de janeiro de 2017

José Gardeazabal

José Gardeazabal organiza os acontecimentos mais marcantes do século XX numa obra poética, vencedora da primeira edição do Prémio de Poesia Vasco Graça Moura/Imprensa Nacional - Casa da Moeda (IN/CM).

Nasceu em Lisboa em 1966, passou “a primeira infância em Luanda”, viveu em Aveiro “até ao fim da adolescência” e frequentou a universidade em Lisboa. É doutorado na Universidade de Harvard com uma tese sobre a relação entre democracia e política económica. 

  José Gardeazabal, vencedor da 1ª edição do Prémio de Poesia Vasco Graça Moura/Imprensa Nacional - Casa da Moeda (IN/CM), apresenta-nos em História do Século Vinte um curioso livro de poemas. Talvez a excentricidade do título seja a primeira das pontes de sentido que devemos atravessar para ler os 216 textos que compõem este volume da renascida colecção "Plural", a qual, nos idos de 1980, justamente sob a direção de Graça Moura, revelou poetas como Paulo Teixeira, Fernando Luís Sampaio ou Luís Filipe Castro Mendes. Não é de somenos chamar a atenção para esse facto: a IN/CM, pelo peso simbólico que possui, tinha (tem) de ter uma digna colecção de poesia e José Gardeazabal (JG), enquanto premiado, como que representa essa colecção agora renascida. Tanto mais representativo é esse renascimento, quanto é verdade que Gardeazabal, na própria forma dos seus poemas – narrativos, de verso longo, analíticos, quase que perseguindo uma espécie de poema/ensaio - vem acentuar a impressão de que vivemos hoje um período rico no que respeita a experiências de linguagem poética. É, aliás, sintomático que o título – literal, sem espaço para ambiguidades – funcione como eixo condutor dos textos, cada um deles com a função de apresentar cenas, episódios, interpretações do século passado, à maneira de um guia da história. 
As epígrafes de Apollinaire e de Borges mostram já o caminho que os poemas pretendem percorrer: persegue-se a leitura da "vigésima pupila dos séculos" e o fito é contar todo o passado num "outrora agora" pessoano e que, de algum modo, a sentença de Borges vem precisar: "Depois a história universal. Agora." Deste ponto de vista, JG une as pontas do livro (primeiro e último poema) de forma, digamos assim, quase romanesca. O primeiro verso do volume, "ainda não li tudo" (ambição borgesiana, sem dúvida e que reenvia a Mallarmé e a ideia de que tudo nasce para ser livro), interage com o verso final: "(não lemos tudo)". É essa ideia de leitura do tempo que justifica um título heterodoxo para livro de poesia (se é que há ou tem de haver alguma poeticidade na escolha de um título para um livro de poemas – e nós achamos que sim, que tem de haver), colocado assim: História do Século Vinte, como quem poderia escrever, correpondendo à suprema ambição de um novo Pierre Menard, Poema do Século Vinte. 
Do título aos textos, espera-nos uma deambulação por versos que fazem ecoar acontecimentos, num tom que JG vai buscar a algum Álvaro de Campos ("uma turbina gira para iluminar os operários de aço,/ e tudo isto barato!"), quando lê o início do século e a industrialização do ferro e do aço, o nascimento e formação, consolidação mesmo, do proletariado como massa de trabalho, ou quando assume que, ao rever a I Guerra Mundial, lê "o jornal com o espírito das trincheiras". Alusiva umas vezes ou absolutamente clara nas referências a uma belle époque que antecedeu o conflito de 1914-1918, Gardeazabal vê bem o modo como à ilusão de uma paz eterna se sucedeu, nas artes e na política, na economia e na vida privada, o desencanto, o cinismo de uma época que é, ainda, a nossa: "teóricos militares assistem a dois séculos de manobras operárias/ [...] / os prisioneiros torturam os amigos para saber mais" (p.12).
A voz deste sujeito que deambula pelos episódios do século passado tem sempre o mesmo tom: narra, fotografa, chama a si uma omnipresença que, à maneira de um narrador implicado, lembra muito Peter Handke e o seu Poema à Duração. É uma voz fria, procurando pintar, "por letras, por sinais", os quadros revoltados que um Cesário não desprezaria. Poemas de metros diversos, sem preocupação rimática ou rítmica, a voz da enunciação mergulha, não raro, em vertiginosas ficções, isto é, em modos de dizer a carnificina do nazismo ou os totalitarismos, a violência sexual ou a ascenção da mediocridade, como se ao poeta coubesse a função de, como um intérprete das dores da História, ler os signos e os símbolos, os vestígios e as marcas do hodierno: "todos encontraram o dom do discurso/ modularam a voz e o tempo/ ensaiaram fúrias, gestos e sorrisos/ exagerados pelas luzes e coros de música/ estavam todos preparados para mil anos" (p.89), aqui em reenvio histórico para o III Reich e o que o projeto nazi de um império para mil anos concebeu. Importa, porém, perceber que a arquitetura do livro, com poemas sem título e numerados, pode não obedecer a uma leitura diacrónica do século passado. A par de um texto sobre o holocausto temos poemas sobre a guerra da Jugoslávia, o massacre de Katyn, ou as políticas do pós II Guerra e o que, para o poeta, significou o plano Marshall (a venda da Europa à América). 
No limite, História do Século Vinte mostra um projeto poético a caminho da sua própria negação: quem escreve versos sabe, desde a Carta de Lord Chandós, que a linguagem com que dizemos o mundo é falha de sentido, e tem, a impulsioná-la, a gaguez, a dificuldade de nomear este mundo. No poema nº 103 encontramos a tese deste dialético livro de poemas (JG é um leitor rigoroso da ciência política, como se sabe): "cada ficção é um labirinto de criminosos,/ messias alternativos. Antes de ser fuzilado o poeta dedica-se à novela/ (tarde de mais)/ 'fogo' ouviu-se,/ uma mistura de mágica e de exatidão,/ o conflito universal disfarçado em diálogo inteligente [...]/ a morte torna-se demasiado natural/ (falo por mim)" (p.116). É esse falar por si que permite que o discurso ora se amplie, ora se concentre (há versos isolados do corpo dos poemas, não raro versos constituídos de uma só palavra), ora se construa em regime citacional, dando a impressão de que o sujeito, o tal narrador implicado, é autor e actor da História. Dito de outro modo, José Gardeazabal toma para si a representação do poeta como corredor de fundo da narrativa humana: é ele que, no fim de contas, se mostra como "atleta pintor", correndo "de tesoura nas mãos", rodando na "cadeira à volta da tela", cortando e recortando "porque lhe interessam as figuras humanas" (p.122)
António Carlos Cortez, “História do Século Vinte: Recortar figuras humanas”, Jornal de Letras, 27.06.2016






O que mais surpreende nesta história do século vinte, brilhante livro de estreia, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura 2015, é a escala e o fôlego do seu projeto literário. Em 216 fragmentos, José Gardeazabal leva a cabo uma verdadeira "travessia" do século XX, um tempo em que coexistiram os maiores avanços tecnológicos e civilizacionais, as grandes revoluções da ciência, da arte e do pensamento, com tragédias de proporções bíblicas, em que pereceram milhões de pessoas, vítimas de dois conflitos mundiais e das máquinas de extermínio dos regimes totalitários. 
É então algures entre o assombro e a perplexidade que se coloca esta poética (composta por um magma de vozes, emergindo do tumulto da História), este olhar que parece planar sobre os acontecimentos e as transformações do mundo, contaminado pela "excitação do movimento/ quando nos deslocamos/ (ao vento)", sem nunca perder um sentido cénico das coisas: "chegámos aqui a pé, convidados para um teatro". No palco desse teatro assistimos às convulsões sociais e políticas, aos triunfos do progresso (os arranha-céus, as cidades fervilhantes, o apogeu da indústria, o primeiro avião dos irmãos Wright, as vacinas, a corrida espacial), mas também todas as hecatombes, o vórtice da guerra, as energias esbanjadas num rasto de morte. 
A lógica da ordenação dos fragmentos não é linear, não segue uma sequência estritamente cronológica, é feita de avanços e recuos, pausas, hiatos, acumulações, momentos disruptivos, como se aos leitores coubesse o trabalho de reunir os estilhaços que resultam de uma enorme explosão. Embora aqui e ali sejamos elevados ao lugar do demiurgo que olha de cima ("e é possível que o universo se contraia novamente/ e um dia expluda como uma mina e as cinzas continuem a mover-se no ar/ os sons esfriem/ e o fumo dos sacrifícios originais se disperse enfim"), o autor nunca deixa que o poema resvale para a megalomania. O estilo é quase neutro, enumerativo, sem pathos, sem retórica, na procura da palavra estritamente necessária. Um verso alude a uma poesia "parecida com pedras" e há algo dessa nudez elementar, dessa secura, na escrita de Gardeazabal. As muitíssimas referências históricas e culturais, por exemplo, ou são discretamente sinalizadas com recurso ao itálico, ou são dissolvidas no tecido do texto. Apesar do tom geral marcadamente pessimista, vemos a beleza surgir "em locais inesperados". E ao "raspar todas as antigas camadas do pó", é possível "descobrir as formas e as cores que brilham depois da viagem".
Recensão de José Mário Silva
in Expresso de 10-09-2016, E, Culturas, «Livros», p.71



José Gardeazabal em entrevista — «A poesia deste século vinte é como a história, trabalha sobre as sombras»


Até agora escreveu mais prosa e teatro que poesia, mas foi precisamente no terreno fértil dos poemas que José Gardeazabal sobressaiu por entre mais de 200 candidaturas à primeira edição do prémio INCM/Vasco Graça Moura. E foi precisamente a sua história do século vinte, «um livro de saltos e acumulações», no dizer do poeta, que acabou por vencer, por unanimidade dos votos do júri, o disputado galardão da editora pública. Uma história escrita a partir de factos e de alguns recuos, que o autor compôs há cerca de oito anos, e que vem agora estrear a renovada coleção Plural, iniciada em 1982 por Vasco Graça Moura. Uma espécie «de cartografia do próprio tempo, um olhar filosófico para a realidade que colhe o nó da questão do século XX, uma antiepopeia, um louvor não lírico, quase cirúrgico que não deixará nenhum leitor indiferente», assim se referiu José Tolentino Mendonça, presidente do júri, à obra distinguida de Gardeazabal. Quanto ao prémio, diz Gardeazabal que significou sobretudo um reencontro do autor com a sua obra. E se cada escritor desenvolve uma relação pessoal com a escrita, Gardeazabal não foge à regra: gosta de escrever todos os dias, e normalmente trabalha em dois ou mais projetos ao mesmo tempo. Quanto à palavra «profissional» diz que convive mal com a literatura, mas que a literatura é a sua forma de viver. Já a inspiração encontra-a na leitura, porque afinal «Ler é o princípio da Literatura». E se Theodor W. Adorno defendia que depois de Auschwitz é impossível escrever poemas, Gardeazabal vem refutar o mandamento do filósofo alemão e vem mostrar com esta sua história, como o século feito de tragédias, bombas e Holocausto — mas também de pequenas coisas, como pessoas a sorrir no canto das fotografias — nos transformou totalmente. E à Literatura também. Vem provar que neste já adolescente século XXI e numa Europa assolada por crise(s) sucessiva(s), a poesia continua viva e em toda a parte. E mais, numa «poética que arrisca alimentar o esquema das oposições, num exercício invulgar, notável e vertiginoso» José Gardeazabal consegue também a proeza de conduzir «a literatura para um lugar novo», como tão bem salientou o júri do prémio, composto por José Tolentino MendonçaJorge Reis-Sá e Pedro Mexia. Um prémio que vem revelar um poeta novo às letras portuguesas contemporâneas. Entrevista a José Gardeazabal.




PRELO — Nadine Gordimer, Nobel da literatura 1991, dizia que a «poesia é um esconderijo e um altifalante». Concorda?

José Gardeazabal — A literatura é tanto exposição como esconderijo. Por vezes esconder é o princípio de ver. Há uma tradição da poesia que a torna a campeã da exposição, uma tradição que foi reiterada até à adulteração. Em relação a essa poesia, a escrita de história do século vinte está mais do lado do esconderijo. Poesia escondida atrás de um século. A história tem aqui algo de esconderijo, de não exatamente. Mas em muitos outros textos, ficção, teatro e outros, acho que estou mais do lado da exposição.

Para mim a literatura tem algo de recuo e de grito. Escrever é como dar um passo atrás e, em vez de sair um grito, sai literatura. É um ajuste de contas com o mundo. Lentamente, e muitas vezes em silêncio. Mais silêncio que altifalante. Certo é que a literatura enquanto esconderijo nos revela coisas novas e verdadeiras sobre nós, individual e coletivamente.

P — Como teve conhecimento do resultado do Prémio INCM/VGM?

JG — Através de um telefonema muito simpático do José Tolentino Mendonça.

P — E como reagiu quando soube que era o vencedor? 

JG — Fiquei contente.









P — Recorda-se dos primeiros poemas que escreveu? Como começou a sua aventura literária?

Sim, dos primeiros poemas e dos primeiros outros textos.

P — A prosa é um terreno que lhe poderá ser fértil também?

JG — Até agora escrevi mais prosa e teatro que poesia. Primeiro há a literatura, só depois a forma da literatura. Romance, teatro, poesia, prosa curta, tudo são veículos para a literatura. O meu foco é nas ideias e nas palavras, só depois surge o veículo, prosa, poesia, o que seja. Acontece começar um livro que pensava vir a ser de poesia e vê‐lo exigir ser prosa à minha frente. Ou o contrário, de prosa em poesia ou teatro. Nesses momentos temos de respeitar o texto. Fazer literatura é também respeitar a forma da literatura.


P — Onde vai encontrar inspiração?

JG — Gosto de ler quase tudo. Ensaio, teatro, ficção, poesia. Não é para mim um prazer ter um bom livro para ler e não o fazer. Ler é o princípio da literatura. Não é, certamente, o fim. Mas é o princípio.

P — Tem escritores de eleição?

JG — Há muitos autores que fazem parte importante da minha vida. A sensação de descobrir um desses autores é sempre de uma estranha familiaridade e humanidade partilhada. É um acontecimento de alegria.

P — O que é que os leitores podem esperar de história do século vinte?

JG — É difícil falar sobre um livro. É um objeto que fala por si, que diz o que quer dizer e por vezes diz mais do que o autor pode dizer. Diz e pensa. Se correr bem, o livro pensa por si.

Este texto é feito de fragmentos, saltos, acumulações. Num certo sentido o contrário de história. Não há personagens, não há ações consequentes, há uma multidão de factos, movimentos, observações. Não há culpas, responsabilidades, vencedores. Num outro sentido, mais profundo, este texto é uma história honesta, um fluxo de consciência do século. O século vai‐nos dizendo coisas mas não lhe conseguimos apontar o dedo. Não o conseguimos agarrar.


Uma certa ofuscação não é propositada, acontece. É como se o escritor visse mal e retirasse os óculos para compreender melhor. E neste caso do século vinte, compreender pode vir de ver pior, ver de longe, com alguma saudável miopia. A primeira coisa que perdemos quando vemos mal ao longe são as personagens, as datas, as simplicidades narrativas. Este livro é uma história escrita a recuar, um passo atrás até perder datas e nomes, perder fios condutores, um observador que recua em relação à história até a transformar em literatura. Um recuo que se torna poesia.

Acho que este texto pode ser lido a partir do ponto que quisermos e terminar também onde quisermos. De certa forma podemos ler apenas frases ou conjuntos de palavras. É uma literatura de fragmentos, como aqueles fragmentos gregos em que se suspeita que alguém gostou de alguém, ou alguém matou alguém, mas não sabemos, não temos a certeza. Nesta história também impera o fragmento. Não é cada página que é o centro, o poema, são os vários fragmentos, individualmente, que têm personalidade própria. Os fragmentos ou o texto todo, ambos têm uma personalidade própria.

Por exemplo, o índice. Foi uma agradável surpresa. Acaba por oferecer uma leitura própria, ao mesmo tempo alusiva ao texto completo, leitura sumário, e por outro lado um novo texto, vivo por si mesmo. O índice foi uma sugestão dos editores da INCM e de certa forma sugere um método de leitura do texto. Além de acrescentar um «poema», por assim dizer.

P — Para si, na História do século XX, qual foi o acontecimento maior?

JG — Talvez um dos sentidos deste livro de poesia com o século vinte em fundo seja precisamente enterrar os acontecimentos concretos do século. Os grandes e os pequenos, as bombas, as barbáries, e as pessoas a sorrir no canto das fotografias. Está muita coisa lá, mas subentendida e por vezes perdida para sempre. É uma caixa com o século que se afasta de nós, até percebermos apenas contornos, impulsos. Há coisas do século vinte aqui escondidas. Escondidas do leitor e do autor. Não é o autor que as esconde, é a natureza do século e do texto que o faz. Nisso a poesia deste século vinte é como a história, trabalha sobre as sombras, é o contrário da transparência.


Não me sinto à vontade para eleger o acontecimento mais importante do século que passou. De certa forma é fácil cair num campeonato da ignomínia quando se trata do século vinte. Neste texto de poesia, como em outros textos meus, acho que o pior do século passado está presente, em pessoa ou na sombra, mas gosto de resistir a uma certa complacência na convivência com a desgraça. Dito isto, as grandes tragédias do século vinte mudaram o que somos como seres humanos. Mudaram a nossa imagem no espelho, mudaram a literatura. Neste século vinte e um estamos do outro lado do espelho, e isso influencia como nos vemos e como nos escrevemos.

Um exemplo: Beckett. No À Espera de Godot, mas também na sua prosa, Watts, Murphy, Molloy, etc. É tudo extraordinário. É uma literatura do fim, que nesse sentido é uma literatura do século vinte. É um caminho absoluto que chega a uma rua de um só sentido. É um dos grandes fios da literatura. Algum desse sentimento de fim e de desamparo é lido hoje por nós como eco de uma civilização que viveu o Holocausto. É o nosso ponto de vista, a partir de hoje, sendo hoje o fim do século passado e o princípio deste século. Mas podemos ler o À Espera de Godot como literatura pós-holocausto ou literatura pós‐bomba atómica, e há argumentos que sugerem que a experiência das explosões nucleares foi a determinante para Beckett, para a espera por Godot. As explosões nucleares eram o acontecimento marcante no imediato pós‐guerra. Só depois veio o Holocausto. Duas tragédias com significados e sentidos diferentes, que nos responsabilizam de forma distinta. Mas as duas mudaram o que é ser humano, e o que é pensarmo‐nos humanos daqui para a frente. Ora, isso é relevante para a literatura? É e não é. Se lermos Godot à luz do Holocausto ou à luz das explosões nucleares lemos duas obras diferentes. Ambas magníficas, mas diferentes. Esse é o papel dos acontecimentos únicos na literatura. Aumentam o sentido, espalham‐no em várias direções. Nesta história do século vinte temos, por assim dizer, o grande e o infinitamente pequeno, o histórico no sentido político e o histórico no sentido pessoal. É um livro de saltos e acumulações, como aqueles mecanismos anteriores ao cinema em que espreitávamos por uma ranhura para ver figuras a passar e essa passagem dava‐nos a ilusão de movimento. Imagens fixas cuja passagem imitava o cinema. Cinema antes do cinema. Esta poesia é uma tentativa de espreitar. Vamos ver menos, ver mais, ver coisas diferentes. Parte do que fica é o movimento do século. Ou a ilusão do movimento.

P — Tem projetos para o futuro no campo literário?

JG — Muitos dos meus projetos futuros foram completados no passado, nos últimos 8 a 10 anos. Gosto de escrever todos os dias e normalmente trabalho em dois ou mais projetos ao mesmo tempo. Tenho uma ideia dos três ou quatro textos que quero trabalhar cada ano, mas muitas vezes as coisas mudam e outras ideias que pensava estarem à espera do seu tempo, impõem‐se, mudo os planos. «Planos» aqui é tudo entre aspas.

Tenho uma ideia‐mãe, um título, alguma ideia do tempo que preciso de dedicar ao projeto. Depois é começar a escrever até acabar de escrever.

Revejo os textos um ou dois anos depois, quando penso que os gostaria de ter prontos para publicação. Outros ficam escritos a cru, à espera outra vez do seu tempo.

Ou seja, sim, tenho vários projetos para o futuro.

P — Gostava de viver inteiramente da escrita? Isto é, ser um escritor profissional?

JG — A palavra profissional convive mal com a literatura. Mais tempo para escrever, sim, seria muito bom. A literatura é a minha forma de viver e um grande prazer.




P — Agora que o livro já saiu do prelo, o que acha do resultado final? Gostou da experiência de publicar na editora pública?

JG — Devo dizer, com a sinceridade possível, que o cuidado na edição e a qualidade do volume final excederam todas as minhas expectativas. Houve paciência para cuidar do texto por parte dos editores, e uma grande inspiração no grafismo da capa e do texto. A palavra pública, como em editora pública, adquiriu para mim um sentido mais concreto e profundo depois desta experiência. Associo‐a a cuidado e esmero.

P — Todos nós desenvolvemos uma relação pessoal com a escrita. O texto, neste caso, os poemas não nascem sem um processo de escrita. Qual é o processo de escrita de José Gardeazabal?

JG — Leio muita coisa diferente. Para mim ler e escrever são atividades irmãs e irmãs gémeas. Preciso de ler para escrever e escrever ajuda a ler melhor. Escrever é ler melhor.

O meu dia ideal começa pela leitura, depois a escrita chega, e a partir de determinado momento as duas coisas estão presentes e muito próximas.

Então quase tudo, uma conversa num café, um programa de rádio passam a ser alimento para a literatura. Literatura é escrita e leitura, pelo menos essas duas coisas.

Este livro teve a sua vida, noutro lugar. Agora como que volta para mim, já envolto numa capa própria, algo fechado sobre si, mas com pistas novas e verdadeiras. O diálogo que tem comigo é diferente do diálogo do tempo da escrita. Agora é uma coisa mais equilibrada. Existe o livro e o escritor, é um diálogo, acontece em duas direções. No início, o exercício da escrita tem algo de monólogo e só depois se torna um diálogo. Isso é bastante gratificante. Gostei de voltar a encontrar e falar com este livro. Tornou‐se um amigo.



P — Quanto tempo demorou a escrever este livro?

JG — Este livro foi escrito há cerca de oito anos. Demorou três a quatro meses a escrever e revi‐o há um ano atrás.

P — Posso saber quem foi a primeira pessoa a quem deu a ler os seus poemas?

JG — A primeira pessoa a ler os meus textos foi o meu pai. Gostou. Leu romance e teatro, anda não tinha lido poesia. Algumas amigas e amigos também leram coisas pequenas, fragmentos. No caso de história do século vinte tenho de agradecer aos membros do júri, pois eles foram, neste caso, primeiros leitores. Isto se aceitarmos que quem escreve não é leitor de si mesmo, ou é um leitor bastante imperfeito de si mesmo. A minha revisão deste texto recordou‐me o que ele tem de resistente, de sólido e duro, de difícil, por isso o meu reconhecimento a estes primeiros leitores.



Revista Prelo, março de 2016



E agora, José Gardeazabal?

Escreve prosa, poesia, teatro, tem vários romances em diferentes fases de maturação. Num ano publicou dois livros e ganhou um prémio. E agora, José? A pergunta é o mote para uma espécie de biografia de um escritor que acredita que o tempo e o silêncio são a base da literatura e o riso o seu aliado.

Leitura e tempo estão no princípio da escrita como a entende José Gardeazabal. Quem é? Pseudónimo literário de José Tavares que parece não ter grande explicação: “O nome não é importante. Mas o nome cria um espaço para a literatura respirar, é uma forma de respeito para com os leitores e para comigo. O importante é a literatura, já não é mau que se trate de um nome relativamente fácil de pronunciar.” Foi com esse nome que venceu o Prémio Imprensa Nacional Casa da Moeda/Vasco Graça Moura com o primeiro livro, história do século vinte, volume de poesia publicado em 2015, “um olhar o século de fora para dentro, como se fosse coisa viva”, diz numa conversa com o Ípsilon quando sai o seu segundo título, Dicionário de Ideias Feitas em Literatura (Relógio d’Água), prosa fragmentada que materializa em palavras essa relação inicial: o escritor que nasce da experiência do leitor. Ele esclarece: “Os textos do Dicionário partem de uma palavra, de parte de uma frase de um autor, ou uma nota minha a respeito desse autor, e depois abrem para a escrita sob a forma de prosa curta. O único critério foi partir de autores que me proporcionaram alegria enquanto leitor.”
São 176 entradas. Uma chama-se Agora e parte da leitura de Carlos Drummond de Andrade. Nela o narrador pergunta: “E agora, José? Queres prosa? Queres poesia?” Pega-se na pergunta e, dois livros diferentes num ano, dirigimo-la a Gardeazabal. E agora, José? Ele responde: “Prosa, poesia, teatro, outros textos. O Dicionário... foi catalogado nas livrarias como ‘outras formas literárias’. Há neste livro e nesse excerto uma certa brincadeira com o desafio da feitura da literatura. Um olhar de desafio e de empatia. Como se alguém estivesse no chão de um circo a observar-se a si mesmo como escritor no trapézio, e perguntasse: ‘Prosa? Poesia?’ Anda lá, despacha-te, faz o que tens a fazer.’ A literatura como processo, o Feitas do título também se refere a isso. Para mim a literatura vem antes da forma que a literatura toma. Claro que uma peça de teatro e um romance são meios diferentes, que podem alcançar lugares diferentes. Mas certas ideias começam como projectos de prosa e transformam-se em teatro, e vice-versa.”
Além das já publicadas existem outras numa grande gaveta e em fases diversas de maturação ou conclusão. Entre elas romances. “Eles estão lá. Se vão ser publicados este ano ou daqui a dez anos, não depende só de mim. Mas existem e dizem-me coisas enquanto romances.” Fala-se de outro fôlego, de menos fragmentação. “Até agora a escrita de romance é para mim uma questão, mais uma vez, de tempo e de recuo. Não sei se será ortogonal ao método do teatro e da poesia. Não programo o romance, ele vai acontecendo. A única programação, a importante, é reservar um tempo específico, que é mais longo, e navegar durante um tempo maior um universo próprio.”
Entre a possibilidade e a fábula
José Tavares nasceu em Lisboa em 1966 e resume de modo breve a sua biografia fora da literatura. Passou “a primeira infância em Luanda”, viveu em Aveiro “até ao fim da adolescência” e frequentou a universidade em Lisboa. É doutorado na Universidade de Harvard com uma tese sobre a relação entre democracia e política económica. Ensinou na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e em 2002 regressou a Portugal, onde é professor e investigador em temas “como a democracia e o crescimento, as causas da corrupção e os custos da discriminação de género, entre outros”. É, acrescentamos nós, irmão do escritor Gonçalo M. Tavares. Mas disso não se falará mais aqui. Sobre o seu livro de estreia o poeta José Tolentino Mendonça, júri do prémio, disse que estávamos perante um exercício que conduzia a literatura para um “lugar novo”. Que lugar pode ser esse? “Gosto muito de literatura e tenho apetência pelo novo. Não imagino esse lugar, nem programo o caminho. A minha relação com a literatura é de trabalho e de prazer, os lugares novos vão aparecendo à medida que vamos chegando lá”, diz. E pega-se então noutra entrada do Dicionário — Autobiografia —, a partir da leitura de Andrei Béli, para indagar um pouco mais sobre José Gardeazabal. No texto, pede-se a alguém que escreva sobre “o próprio” e fale do nome com que assina. Na conversa com o escritor pergunta-se o que diz isso de si. “O mundo sempre foi importante para mim. A compreensão do mundo, a sua imperfeição. Aí a política, a economia, as ciências sociais são uma das chaves. Não uma chave que fecha, não procuro arrumar o mundo dentro de conceitos, mas uma chave que abre, que sobrevoa a nossa relação pessoal com o mundo e acrescenta-lhe sentidos colectivos, sentidos de tempo. Socialmente vivemos entre a possibilidade e a fábula. Precisamos das duas. As ciências sociais dão-nos uma possível álgebra de compreensão do mundo. Não nos oferecem um resultado fechado e ainda bem. As ciências acrescentam linguagem à literatura. Isso é bom.”
Ainda em Autobiografia há um “prisioneiro” intimado a escrever sobre o corpo, exigem-lhe que seja autobiográfico. De repente percebe que o objecto cortante na mão já não se assemelha a uma caneta. Diz Gardeazabal: “O exercício da literatura é demasiado profundo para discutir o que é pessoal e o que não o é. Claro que a literatura não é só literatura, é vida. Vida vivida e vida a viver. Uma espécie de autobiografia não autorizada, se correr bem. Nesse sentido fere e aumenta.” O prisioneiro da história não sabe o que é escrever. E Gardeazabal? “Não sei o que é saber escrever”, responde. E é então que afirma: “Mas leitura e tempo são o princípio. O método envolve muita leitura e alguma inteligência...” Faz-se  a pergunta de forma mais directa: como nasceu José Gardeazabal, escritor? “Decidi dedicar-me à literatura no momento em que entendi, simultaneamente, a sua afinidade e infinitude. Algo de significativo que nos pode acompanhar para sempre, que não acaba. Um mundo dentro e ao lado do mundo. Não é um mundo melhor, mas é um mundo com mais sentidos. Não sentido, sentidos.”

Nesse modo de ser onde a literatura aparece como “um centro”, qualquer coisa “de essencial”, já há quase uma rotina. “Passa por ler primeiro e depois escrever. Começa na leitura e após uma hora ou assim a leitura e a escrita misturam-se: sublinho, escrevo nas margens, tomo notas para o futuro. E depois só escrevo. Idealmente umas quatro a cinco horas a ler e escrever. Muito de manhã. Durante o resto do dia posso ler e tomar notas, é raro escrever continuadamente.” Confessa, contudo, a dificuldade em se ver só como escritor no sentido em que diz sentir “muita dificuldade com a ideia de sentido único, na vida social e política”. “Um dos prazeres da literatura é a de correr ao lado da vida, mas multiplicando-lhe os significados. A boa literatura multiplica os sentidos. A vida também o pode fazer.”

“A minha relação com a literatura é de trabalho e de prazer, os lugares novos vão aparecendo à medida que vamos chegando lá.” (José Gardeazabal)

E tem sido uma vida meio nómada, mas com um centro bem definido. “Num certo sentido a centralidade da língua, e da língua portuguesa, foi sempre evidente para mim. A identidade é o resultado das partidas e das chegadas, resulta naturalmente da língua e do pensamento, muito menos da geografia, das nações. A língua portuguesa esteve sempre presente e isso é fruto do movimento: a língua movimenta-se mais facilmente do que a geografia.” E acrescenta: “Também é certo que os contactos nómadas, por assim dizer, me obrigaram a novos sentidos para a escrita. Sentidos que se somam até serem literatura, tal como a ciência e a política.”
Em Adeus, outra vez no Dicionário, e a partir de Roy Miki, fala da condição de bilingue. Tem dito que escreve e fala em várias línguas, mas a literatura é em português. “Não sou bilingue. Apenas estive exposto por muitos anos a um dia-a-dia em inglês, o tempo suficiente para começar a gozar da respiração da língua inglesa. E depois, por razões profissionais, estive sempre próximo de ambientes em que o português era um eco, um eco importante, mas um eco. Talvez isso tenha adiado o surgir da literatura em português. Por outro lado, percebo que a minha empatia pelo som e pelos significados em outras línguas me afasta da esfera do português e me aproxima do literário em outras línguas. Acabei por conciliar as coisas escrevendo por vezes em inglês e em espanhol. Mais em inglês: contos, poesia, teatro.”
O presente visto de esguelha
Sobretudo em história do século vinte, mas também no Dicionário, tem explorado a relação do homem com o tempo. Refere que não tinha consciência dessa recorrência, que não procura temas, “eles surgem e surgem naturalmente compostos”, nota. Exemplos: “Deus, homem, sexo, literatura, ressurreição, democracia, capitalismo: são temas importantes, não porque são pensados, mas porque são importantes.” Acredita que os temas “são gavetinhas que usamos para nos arrumar a vida, para nos facilitar a vida — capitalismo mau, democracia boa, por exemplo”. E afirma: “A literatura deve desarrumar, acrescentando sentido. Desarrumar não é o fim, é o método.” Olhar a história do século XX em poesia foi isso? Quando escrevi história do século vinte, o século tinha terminado e tínhamos todos sentimentos fortes acerca dele. Mas à medida que escrevia percebi que o século morto ia mudar e este poema podia ser parte dessa mudança. No sentido em que seria lido de forma diferente por pessoas diferentes em tempos diferentes. Quando tive de rever o texto, percebi que isso já acontecera, o texto era o mesmo, mas dizia coisas novas, porque o século morto mudara muito. Acho que vai continuar a mudar, o século e o texto. Para mim tem-se transformado numa espécie de carinho pelo século, a sua ingenuidade e a sua ambição.”
Se há um tempo na sua escrita, talvez seja o presente, apesar dos riscos, das interferências. Mas é um presente “visto de esguelha”, precisa. “Não distorcido, mas revelado, por sobreposição e multiplicação de sentidos. Essa sobreposição de sentido usa o passado e o futuro, ou melhor, a vontade de futuro, mas trabalha muito o presente.” A utopia interessa-lhe, tal como a distopia. Considera-os “exercícios de terapia” e um e outro “apelam ao melhor de nós”. Qual? “A vontade de melhoramentos definitivos, a ironia confortável do realismo.” Como se vê nisso? “Sou naturalmente céptico e encantado com as utopias, acho-as naturais e perigosas ao mesmo tempo. As distopias dizem-me muito pelo lado da ironia, pelo lado do ‘estão a ver, a vida é mesmo isto, só muda devagarinho’.”
Mas o tempo pode ter vários nomes. Um deles é silêncio, “dá densidade ao tempo” e por isso a literatura “alimenta-se” dele. “O tempo é o esqueleto e o silêncio a carne”, afirma. É condição para a escrita? “Também é possível falar de atenção, recuo calculado para alcançar uma nova proximidade e empatia. Silêncio, tempo, atenção, quem sabe por esta ordem. Dito isto, até agora tenho escrito sobretudo em cafés, onde beneficio do burburinho.”
E há sempre a política. Nesta conversa, na escrita, uma relação próxima com a literatura. “Aquilo de o homem ser um animal político reverbera. O homem também é um animal, tout court. A literatura alimenta-se de animais especiais, e o homem é um óptimo candidato. Por outro lado, a política enquanto objecto social também é um lugar de preguiça, de maniqueísmo, de simplificação e eu gosto de a trazer para a literatura para a desvelar, confrontar com o seu próprio discurso.”
Sobre Deus diz ser “uma presença hesitante”, na vida e por isso na escrita; e a vida e a morte considera serem “tudo o que não sabemos”. Já o corpo... “É uma personagem que não tem uma relação fácil com a literatura e quase sempre a culpa é da literatura. Miller, Roth, Nabokov são excepções. Facilmente as incursões literárias pelo corpo e pela sexualidade são vítimas de um pudor intuitivo, e defensivo, por parte da literatura. Talvez não tanto na poesia, mas na prosa com certeza. A prosa é mais puritana do que a poesia, mas o corpo precisa tanto de prosa como de poesia.”

E em tudo isto de literatura, fiquemos pelo riso, “um aliado da verdade, especialmente enquanto ironia”.
Isabel Lucas, Público, 2017-01-06

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

GROTTA #1

José Maria de Aguiar Carreiro. Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016

Chaminé de “mãos postas” e cimo de uma empena de casa de habitação, ilha da Graciosa, séc. 20
http://www.inventario.iacultura.pt/graciosa/santacruz-fichas/41_43_43.html

TRINCAR A TERRA

Não me são estranhos estes lugares
as empenas brancas
as chaminés de mãos postas
e uma gaivota bem junto aos olhos.
Não me é estranho este basalto
o arranjo dos minerais
o paladar da terra
um mundo inteiro volvendo às mãos
as minhas mãos assassinas.

Caeiro, remove a miopia do meu olhar
diz em tua voz a vontade das maçãs golpeando os olhos
diz esse alerta sobre a fruteira
o pão verde
o homem hábil
diz
olha a água e a carne na tua cabeça
o pano cru roendo
o empedrado da rua.

Acorda-me, David Copperfield.

José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016






PIROTECNIA

O mundo é nosso, dizes. E eu acredito
um pouco. Acredito que é possível acreditar.
Nesse mundo pilotaria aeronaves, por certo,
desdenharia reinados em sua barbárie ancestral,
faria muita exaltação nas gáveas e nos balões.
Compra-me um lápis, meu amigo, compra-me
um lápis chilreante que eu cantarei de melro.
O mundo corre assim, dizes, rindo brejeiramente,
abrindo o piloro com uísque e rum com Coca-Cola.
Corre assim, pois é. O mundo é uma bosta.
O que eu vejo. Um enorme prato empoeirado,
um rolamento. Oh meu bem, nossos olhos rebimbam
e fazem rataplã. Retroam em torno da voz.
Alteram-se nos tempos as baladas como gritos próprios de animal.
Vou sentar-me um dia inteiro a ver televisão,
a comer bolos. Engordar. Angustiar-me.
Que fizeste, senhor, que te não entenda
tenho os alimentos a estragar-se no frigorífico
tenho os espíritos um pouco inquietos
não sei sequer se tenho algum sentimento visceral. Um ódio.

José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016




NADA

A mulher do ferreiro aguarda um sinal
demorado nas antecâmaras da morte.
Quem visita e quem é visitado?
Ecos, perceções vagas reificam a estação
enquanto o corpo, desgarrado,
mudável carne entregada,
vai cortando os laços com que se demora.

Qualquer compreensão antes descrita ter-se-á apagado,
não mais diremos: agora é, agora está em substância.
Que a última luz com o ser no vago cosmos
parece ter-se dispersado. Ou fechado.
O agora é nosso, não dele, que sentimos o corpo
caído em nossas mãos. E questionamos
se sentirá o ferreiro ainda o que o prendia a nós
se estará em contínua atividade, como uma chama
ou se saberá do mais que há para além do espaço por onde vagueia.
Então concluímos que nada há a que chamar eu.

A mulher do ferreiro mexe-se no seu desconforto.
Que o marido não está, embora ela o pressinta.
Ela mexe-se imaginando os dias idos.
A mulher do ferreiro joga a vida com a morte,
tacteia, louca, partes do marido,
quando ressonâncias se misturam com alucinações,
bocados dele com partes desintegradas de si,
mulher e esposa dedicada. Louca.
Por fim concluirá: nada há a que chamar meu.

José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016




Grota remete para as ribeiras e as entranhas das ilhas açorianas, onde se funda este gesto. “É a fonte, o início, o começo de algo líquido, mas intempestivo – que tudo arrasta vertentes abaixo”. As palavras, certeiras, são do vulcanólogo Victor-Hugo Forjaz. As grotas são como que misteriosas artérias, de beleza e perigos. Nomeá-las é falar dos Açores. Foi por isso que demos este nome à revista.

Grotta n.º 1, Ponta Delgada, Publiçor/Letras Lavadas Edições, novembro de 2016. Direção de Nuno Costa Santos, coordenação editorial de Diogo Ourique, design gráfico de Jaime Serra.


O reconhecido vulcanólogo Victor Hugo Forjaz assina o texto de apresentação da revista de criação literária «grotta», dirigida por Nuno Costa Santos e propriedade de Publiçor/Letras Lavadas Edições. E tudo bate certo! 
 Afinal, a missão de um vulcanólogo também é dar nome às coisas, olhar o geo-mundo e as suas manifestações e colar-lhes o nome que as singulariza e identifica perante nós (no campo social, uma actividade aproximada talvez consista em «chamar os bois pelo nome», embora com nuances que não cabe aqui deslindar). Além disso, a literatura parte da linguagem e é de palavras que se ocupa Victor Hugo Forjaz, «vulcanólogo no exílio», como se auto-designa. Mais precisamente, da palavra grota, nome atribuído a ribeira, quando esta, a partir de determinada altitude, se transforma num «rego longo, fundo ou muito fundo, abrupto, tenebroso (…) longo e perigoso de saltar.» – nome dado pelos povoadores que, neste campo, também foram rotuladores, por necessidade de organizar o mundo para que eram atirados. 
Ostentando uma grafia arcaizante que reenvia simultaneamente a um tempo originário e à língua italiana, grotta parece assinalar desde logo a sua vinculação a um espaço físico, mas sobretudo cultural (veja-se a inscrição subtitular «arquipélago de escritores»), sem se conter exclusivamente nele, abrindo caminho para outras geografias, concretizadas, neste caso, pelo dossiê de poesia irlandesa. A diversidade é, de qualquer modo, uma das marcas deste número 1, tanto a nível de colaboradores, como de géneros e discursos. 
Um breve exercício de memória, e apenas referente a revistas de criação literária nos Açores, levar-nos-á a «transeatlântico» (Companhia das Ilhas, direcção também de Nuno Costa Santos) e, mais atrás ainda, a «Magma» (dirigida por Carlos Alberto Machado a partir do Pico) e a «Neo» (uma iniciativa de John Starkey, enquadrada no antigo Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores). Ou seja, há aqui uma persistência em criar espaços de expressão literária abertos a gerações diversas e a abordagens heterogéneas, e em que diferentes culturas e proveniências linguísticas encontraram local de acolhimento no meio do Atlântico norte. E o levantamento não inclui o suplementarismo literário que desde os anos 90 recuperou a dinâmica de décadas anteriores, superando-a mesmo nalguns aspectos, muito por esforço e obra de Vamberto Freitas. 
Por mera coincidência temporal, encontrava-me ainda a ler este número de «grotta», quando me chegou o mais recente livro de ensaios de João Barrento, «A Chama e as Cinzas». O último capítulo ocupa-se precisamente da situação da literatura «em tempos de indigência» (uma expressão que remonta a Hölderlin), a sua in-significação, a sua diluição na configuração global do mundo, num quadro cujas causas hão-de encontrar-se, segundo o autor, numa «existência sem memória» e ainda na «predominância dos paradigmas economicistas, pragmáticos e vivenciais.», que afastaram do mundo social e cultural «o simbólico e a letra»; ora, um caminho para combater este estado de coisas passa «pela insistência e persistência na manutenção de espaços, nichos institucionais ou não institucionais». Neste sentido, «grotta» resulta de mais um gesto de teimosia e constitui, à sua maneira, um nicho de valorização da palavra e da sua natureza simbólica, um espaço de manutenção da memória e da sua projecção num tempo que sendo o nosso pode ser também o futuro. Nicho ou ilha, para melhor contextualizarmos a metáfora. Mas as ilhas movem-se, também elas. E nem sempre se deixam ir na corrente.
Urbano Bettencourt, suplemento Artes & Letras, Açoriano Oriental, 2016-12-25.




Poderá também gostar de:

  •  Literatura Açoriana (os autores, o conceito de açorianidade, a questão e alguns estudos sobre a Literatura Açoriana). In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, José Carreiro, 2021 (3.ª edição).


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

El Bosco


O Jardim das Delícias Terrenas, tríptico de Hieronymus Bosch
   Vídeo do grupo musical Bosco em homenagem ao pintor Hieronymus Bosch. O poema de Rafael Alberti "El Bosco" sobre os detalhes de "O Jardim das Delícias" que inspiraram o poeta. Duas obras primas de dois grandes artistas, frente a frente (09/09/2016):





A ti, fingida realidad del sueño.
A ti, materia plástica palpable.
A ti, mano, pintor de la Pintura
Rafael Alberti




El Diablo hocicudo,
ojipelambrudo,
cornicapricudo,
perniculimbrudo
y rabudo,
zorrea,
pajarea,
mosquiconejea,
humea,
ventea,
peditrompetea
por un embudo.

Amar y danzar,
beber y saltar,
cantar y reír,
oler y tocar,
comer, fornicar,
dormir y dormir,
llorar y llorar.
Mandroque, mandroque,
diablo palitroque,

¡Pío, pío, pío!
Cabalgo y me río,
me monto en un gallo
y en un puercoespín,
en burro, en caballo,
en camello, en oso,
en rana, en raposo
y en un cornetín.
Verijo, verijo,
diablo garavijo.

¡Amor hortelano,
desnudo, oh verano!
Jardín del Amor.
En un pie el manzano
y en cuatro la flor.
(Y sus amadores,
céfiros y flores
y aves por el ano.)
Virojo, pirojo,
diablo trampantojo.

El diablo liebre,
tiebre,
notiebre,
sepilipitiebre,
y su comitiva
chiva,
estiva,
sipilipitriva,
cala,
empala,
desala,
traspala,
apuñala
con su lavativa.

Barrigas, narices,
lagartos, lombrices,
delfines volantes,
orejas rodantes,
ojos boquiabiertos,
escobas perdidas,
barcas aturdidas,
vómitos, heridas,
muertos.
Predica, predica,
diablo pilindrica.

Saltan escaleras,
corren tapaderas,
revientan calderas.
En los orinales
letales, mortales,
los más infernales
pingajos, zancajos,
tristes espantajos
finales.
Guadaña, guadaña,
diablo telaraña.

El beleño,
el sueño,
el impuro,
oscuro,
seguro
botín,
el llanto,
el espanto
y el diente
crujiente
sin
fin.
Pintor en desvelo:
tu paleta vuela al cielo,
y en un cuerno,
tu pincel baja al infierno.

Rafael Alberti Merello (1902-1999)


   
Guillermo de Torre llama 'onomapinturas' (1970, 732) a estos recursos neologísticos graciosos y grotescos, es decir, onomatopeyas que no tienen por objeto imitar sonidos de la naturaleza sino evocar particularidades pictóricas, traduciendo adecuadamente la forma de volver pictórica la poesía.
No sólo en los neologismos destaca la combinación de dos motivos pictóricos dispares e insólitos (perniculimbrudo, peditrompetea, mosquiconejea) que representan verbalmente las caricaturescas combinaciones que pululan en los cuadros de El Bosco, es también el ritmo precipitado y sin aliento de los versos el que acierta a reflejar la atmósfera ajetreada y confusa tan típica de los cuadros del pintor flamenco. Experimentamos realmente una “transpoetización” en el sentido de que el poeta es capaz de verter en signos fonéticos, semánticos y métricos lo que el pintor realizó con sus invenciones de formas y colores. Además nos hace sentir el desasosiego y el ambiente de angustia y amenaza que caracteriza muchos cuadros de El Bosco, impregnados, sin embargo, siempre de un deje de ironía y caricatura.

"La líricopintura. Sobre las interferencias entre lírica y pintura", Kurt Spang, Impossibilia Nº3, págs. 233-245 (abril 2012)






Poderá também gostar de colecionar figuras de Hieronymus Bosch:

‘Tree Man’ By Hieronymus Bosch From ‘Garden of Earthly Delights’

Devil On Night Chair ‘by Hieronymus Bosch from ‘Garden of Earthly Delights’

‘Blue Flutist’ by Hieronymus Bosch

‘Bird With Letter’ from ‘Temptation of St Anthony’ by Hieronymus Bosch

‘Monster’ from ‘Temptation of St Anthony’ by Hieronymus Bosch

‘Freak with Beard’ by Hieronymus Bosch

‘Choir’s Devil’ from ‘John at Patmos’ by Hieronymus Bosch

Bird Monster with Castle Body’ by Hieronymus Bosch

‘Fish With Tower’ from ‘Temptation of St Anthony’ by Hieronymus Bosch

‘Fat Belly with Dagger’ by Hieronymus Bosch

‘Helmeted Bird Monster’ by Hieronymus Bosch from ‘Garden of Earthly Delights’

Bird in Blue Egg
http://dangerousminds.net/comments/collectable_hieronymus_bosch_figurines

domingo, 11 de dezembro de 2016

Invisível / Visível - Camilo Pessanha, por Vhils


"Invisível/Visível", por Vhils. Mural sobre Camilo Pessanha, no Jardim do Consulado de Portugal em Macau, 2016-12-09.

Além de homenagear a obra do poeta português que viveu mais de 30 anos em Macau, a peça visa também fazer uma reflexão sobre a presença de Portugal nesta parte do mundo e o próprio contributo de Pessanha enquanto poeta, escritor e até juiz. Mas também sobre a natureza única deste longo relacionamento entre Portugal e a China e aquilo que continua a fazer deste território um lugar tão especial.

Besides paying tribute to the oeuvre of the Portuguese poet who lived over 30 years in Macau, the piece also aims to reflect on Portugal's presence in this corner of the world and Pessanha's own contribution as poet, writer and even as judge, but also on the unique nature of this long relationship between Portugal and China and what remains so special about this territory.
Vhils, Facebook, 2016-12-11




O artista Alexandre Farto, mais conhecido como Vhils, inaugurou esta sexta-feira, 09-12-2016, um mural com uma imagem do poeta Camilo Pessanha, no jardim do Consulado de Portugal em Macau, cidade onde o poeta viveu e morreu.
“Conheço parte da obra dele e foi uma pessoa relevante para a história de Macau, mas a ideia aqui não é fazer julgamentos de história, nem de nada. O nome da peça é ‘Invisível, Visível’ e a ideia destas obras, que fazem sempre uma ligação com a história local, é tornar essa história que muitas vezes está invisível, visível, sem julgamentos. É basicamente expor a história e gerar a discussão em relação à pessoa e à obra”, disse Vhils à agência Lusa.
O artista disse que “o trabalho de pesquisa”, para fazer um mural em Macau, “foi intenso e levou algum tempo”, mas a conclusão foi que, “com a obra e a relevância que ele [Pessanha] tinha para a história de Macau, era a pessoa certa”, agradecendo o apoio da Casa de Portugal e do Consulado-geral de Portugal em Macau, neste projeto.
Vhils explicou que, para fazer o mural, “a imagem é trabalhada, é feito um desenho, é feita uma divisão de cores desse desenho e, depois, são pintados na parede esses diferentes tons e, dependendo do tom e da própria parede, dos diferentes tons que vai tendo, cada tom vai a uma profundidade mais funda e a outra mais superficial, e é jogar com estas camadas que o muro tem que, no final, revelam e fazem um rosto”. “É quase uma escultura no final, mas a partir de uma imagem”, afirmou.
No mês passado, Vhils fez um mural com José Saramago, em Madrid, e disse agora à agência Lusa que “é possível” que surjam outros trabalhos seus com escritores portugueses: “Depende dos projetos e depende muito das situações. Este é um projeto específico que tenho estado a trabalhar, que tem muito a ver com a literatura, também com a relevância de alguns poetas e escritores portugueses, mas sim, é possível”.
O mural de Macau resultou de uma parceria entre a Casa de Portugal em Macau e o Consulado-geral de Portugal, em Macau e Hong Kong.
Na inauguração, a presidente da Casa de Portugal, Amélia António, disse que este é “um marco no trabalho de divulgação da cultura portuguesa e dos artistas portugueses” da Casa de Portugal em Macau, que este ano comemora 15 anos, e manifestou especial satisfação por poder, neste aniversário, “entregar à cidade, aos residentes, aos turistas” uma obra de Vhils, que “tem tudo a ver” com Macau.
O cônsul-geral, Vítor Sereno, destacou que esta é a primeira obra em Macau e, numa representação diplomática portuguesa de Vhils, “um dos nomes mais aclamados do panorama da arte urbana mundial”.
“Devemos e podemos ficar felizes sabendo que a República Popular da China é presentemente um dos grandes investidores em Portugal em termos económicos, mas não nos podemos esquecer de outras valências como é o caso da cultura, em que a diplomacia tem um papel fundamental a desempenhar (…), e de outras vertentes que nos permitem construir as chamadas pontes reais de afeto”, afirmou.
“Através do génio de Vhils e da imortalidade de Pessanha, estamos a celebrar Portugal a dez mil quilómetros de distância e a cimentar os laços seculares portugueses com os nossos amigos da Região Administrativa Especial de Macau e da República Popular da China”, acrescentou.
Na inauguração estiveram também dois trinetos de Pessanha, Vítor e Filomeno Jorge, que se disseram “apanhados de surpresa” com a homenagem ao poeta, que morreu há 90 anos.
“Fiquei até bastante comovido”, disse Vítor Jorge à Lusa, enquanto Filomeno falou “num dia de alegrias”. Os dois consideraram que o mural é “uma obra magnífica” e que a imagem é “igualzinha” à de uma fotografia do trisavô.
Vítor Jorge acrescentou que esta foi a primeira homenagem ao trisavô a que assistiu na vida, e considerou-a “justa”, lembrando que um grupo de personalidades em Portugal queria levar os restos mortais de Pessanha para o Panteão Nacional, em Lisboa.

No entanto, a mãe, Ana Jorge, bisneta de Camilo Pessanha que hoje tem 84 anos, opôs-se. “Para mim, era uma honra, mas a minha mãe recusou. Tentei convencê-la muitas vezes, mas não consegui, paciência. Ela é muito oriental, muito supersticiosa e não quer que ninguém mexa na campa”, explicou.

http://bomdia.be/macau-camilo-pessanha-em-mural-assinado-por-vhils/


NOTA SOBRE O SIMBOLISMO:

O Simbolismo fez aliança com a música, passou à exploração do inconsciente por meio de símbolos e sugestões, preferindo o mundo subjetivo ao objetivo, o invisível ao visível, buscando a compreensão da vida por meio da intuição e do irracional, explorando a realidade situada além do real e da razão. 
A leitura da poesia simbolista exige esforço de penetração, dada à opacidade dos seus significados. Em lugar da expressão direta, incapaz de captar as  essências internas e os sentimentos mais intimamente  pessoais, o Simbolismo usava processos indiretos, associações de idéias, representadas por metáforas e símbolos, além de buscar efeitos sonoros nos elementos musicais, tonais e rítmicos, aos quais se somavam os efeitos das cores. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Sexo e transformação


Inana/Ištar e Dumuzid/Tâmuz, em detalhe de cerâmica suméria

GILGÁMESH

[171] Um dia, um segundo dia no açude sentados ficaram;
          Chegou o rebanho, bebeu no açude,
[173] Chegam os animais, a água lhes alegra o coração,
          E também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!*
[175] Com as gazelas ele come grama,
          Com o rebanho aperta-se na cacimba,
[177] Com os animais a água lhe alegra o coração.
          E viu-o Shámhat, ao homem primevo,*
          mancebo feroz do meio da estepe.*
[180] Este é ele, Shámhat! Oferece os seios!*
          Abre teu púbis e que ele toque teu sexo!
[182] Não tenhas medo, toma seu alento!
          Ele te verá e chegará junto de ti:
[184] A roupa estende, deixa-o deitar-se sobre ti,
          E faz com esse primitivo o que faz uma mulher:
[186] Seu desejo se excitará por ti,*
          Estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele.
[188] Abandonou Shámhat os vestidos,
          Abriu seu púbis e ele tocou seu sexo,
[190] Não teve ela medo, tomou seu alento,
          A roupa estendeu, deixou-o deitar-se sobre si,
[192] Fez com esse primitivo o que faz uma mulher


Tannhäuser


SEXO E TRANSFORMAÇÃO
A ideia de que o acto sexual transforma profundamente quem o experiencia é tão antiga quanto os primeiros textos sumérios em tabuinhas de barro cozido (muito mais antigos do que a Ilíada grega). O episódio inicial da epopeia Gilgámesh fala-nos do bom selvagem Enkídu, que viveu toda a primeira fase da sua vida no meio dos animais, aceite por eles como um deles, pastando erva com as gazelas. Seduzido por uma cortesã, com quem Enkídu tem relações sexuais durante seis dias e seis noites (sem nunca perder a erecção: o texto é explícito em relação a este tour-de-force erótico), o recém habilitado atleta do sexo quer depois voltar para a sua vida anterior; mas os animais, pressentindo que ele já não é o mesmo, rejeitam o seu convívio. Nenhuma gazela aceita agora pastar erva com ele.
O comportamento destas puritanas gazelas da Suméria lembra o dos unicórnios no imaginário medieval, que só aceitam o convívio de virgens. Análoga, à sua maneira, é a situação descrita na ópera medievalizante “Tannhäuser” de Richard Wagner. O cantor-poeta epónimo, depois de ter tido a experiência de todos os deleites do sexo na residência de Vénus (o Venusberg), sente-se depois deslocado na Wartburg (castelo na Turíngia, onde Lutero traduziu a Bíblia), veneradora da virgindade.
Quando abre o pano no início desta ópera, Tannhäuser já se encontra no Venusberg: nós, espectadores, chegamos tarde demais para conhecermos o herói na sua fase pré-sexual. A fase em que o conhecemos é, digamos assim, pós-sexual: o excesso de sexo, a permissibilidade da sua abundância sem freio, já levou a que seja impossível sentir algum prazer; o cantor-poeta, farto de sexo, já só sonha com a vida de castidade que deixou para trás.
No entanto, regressado ao mundo dos castos, Tannhäuser tem de reconhecer que já não se sente bem naquele meio. O elogio do amor cortês, em que a dama é venerada como uma espécie de Virgem Maria, leva-o a ripostar com o elogio do prazer carnal, o que deixa em estado de indignação assassina a casta assistência. Indignação “assassina” não é exagero: os colegas-poetas, reagindo com mais violência do que as gazelas da Suméria (que se tinham apenas recusado a pastar com o devasso Enkídu), querem mesmo matar Tannhäuser por ele ter experimentado o sexo enquanto prazer. O castigo extremo não é cumprido, mas será com a morte por exaustão, no final do 3º acto, que Tannhäuser terá de pagar a mudança de personalidade que a experiência do sexo ocasionou.
O pós-sexo deixa-nos por vezes felizes, por vezes melancólicos (os “post-coital blues”); muitas vezes vulneráveis devido ao gasto de combustível emocional que o acto exige. Por isso nenhum futebolista sai directo do leito de amor para o relvado, tal como os antigos gladiadores não saíam do lupanar para a arena.
A vulnerabilidade causada pelo sexo pode ser fatal. Os cinéfilos nunca esquecerão os SA, exaustos das suas orgias homoeróticas, a serem chacinados pelos SS no filme “Os Malditos” de Luchino Visconti. Esta sequência do filme, impressionante, lembrará inevitavelmente aos helenistas-cinéfilos que o tema da vulnerabilidade causada pelo sexo é, afinal, bem grego: o caçador Adónis, apesar de perito no trato com animais selvagens, é morto por um javali por ter ido à caça saído do leito da deusa Afrodite. 
O mito de Adónis expressa ainda a ideia de que, por causa do sexo, o homem heterossexual torna-se menos homem: como se o contacto íntimo com a mulher o desvirilizasse.
Esta ideia está implícita na Odisseia homérica, quando o deus Hermes dá a Ulisses uma planta mágica para impedir que a deusa Circe, depois de desfrutar da proeza sexual do herói, lhe tire (nas palavras de Hermes) “coragem e virilidade quando estiveres nu”. A planta mágica garante, pois, que Ulisses possa passar pela experiência do sexo com Circe sem que essa experiência implique transformação. Ele permanece o mesmo, antes e depois. O acto não tem qualquer efeito sobre ele.
No imaginário de Hugo von Hofmannsthal, também o deus Baco sai ileso da ilha de Circe: a palavra exacta é “unverwandelt” (“intransformado”). Como deus que é, não precisa de qualquer planta mágica para resistir à transformação. No entanto, algo há em “Ariadne em Naxos” que se revela mais forte que o sexo e mais forte que a divindade: algo que transforma o deus, que o leva a declarar “sou agora outro relativamente à pessoa que eu era”. Essa experiência transformadora, mais forte ainda do que o sexo e à qual nem os deuses resistem, é obviamente... Não, é tão óbvio que nem vou dizer o que é.

Frederico Lourenço, O Lugar Supraceleste (Edições Cotovia)
(na imagem: “A Morte de Adónis” de Rubens)