terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Há livros que nos podem fazer mal?


Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos Cancioneiros Medievais à Actualidade.
Organização de Natália Correia e  ilustrações de Cruzeiro Seixas


Há um movimento de estudantes universitários norte-americanos a pedir que os protejam dos conteúdos de alguns livros que consideram perigosos. Em causa estão sobretudo clássicos da literatura grega e romana. A psiquiatra Manuela Correia fala em “infantilização” da sociedade.

Em Lisístrata, comédia do ano 411 a.C., o dramaturgo grego Aristófanes põe na voz de uma mulher um apelo à paz: enquanto durar a guerra entre Atenas e Esparta, as atenienses recusam ter sexo com os seus maridos. O livro seria pouco depois proibido naquela que é uma das primeiras censuras literárias do Ocidente. Perigoso por propor uma alteração à norma de comportamento.
Muitos séculos depois, noutro país também do Ocidente, um grupo de estudantes universitários pede para que alguns clássicos da literatura, sobretudo da antiguidade grega e romana, que fazem parte dos programas curriculares, surjam com uma advertência na capa, chamando a atenção para o “perigo” para o “bem-estar mental” que representam os seus conteúdos, potencialmente causadores de sofrimento, trauma ou angústia.
Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, é uma das obras que esses estudantes consideram conter “matéria perigosa”. O poema dividido em 15 livros é tido como um dos livros mais influentes da cultura e civilização ocidentais e narra a transformação exercida pelo tempo no homem e na sua história, cruzando ficção e realidade, e apresentando os mitos como essenciais na evolução humana. Deuses, homens, plantas, animais, elementos convivem fantasiosamente em histórias de amor, traição, incesto, punição, violência, morte, redenção, sem qualquer tipo de apreciação moral. Entre estes “interditos, está a descrição do rapto de Prosérpina, mulher de Plutão e filha de Deméter, que Ovídio começa a narrar assim: “Um dia colhia violetas e brancos lírios, e ia enchendo, com entusiasmo juvenil, cestas e o regaço, à compita com as amigas a ver quem colhia mais, quando Dite a viu e, quase em simultâneo, se enamora e rapta-a: tão precipitado era o seu amor. Aterrada, desata a deusa a chamar, com voz desolada, pela mãe e as companheiras, sobretudo pela mãe. Rasgando a parte de cima do vestido, a túnica soltou-se e as flores colhidas caíram por terra. E tal era a candura que presidia aos seus anos de menina, que até também a perda das flores consternou a rapariga.” (Cotovia, 2007)
O pedido aconteceu no início do Verão passado, veio dos estudantes da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, uma das mais prestigiadas do país, e foi rejeitado pela direcção, mas é simbólico em relação ao que se está a passar em muitas universidades nos Estados Unidos. Em Setembro do ano passado, a revista Atlantic publicava um artigo com o título O afago da mente americana, escrevendo que, “em nome do bem-estar emocional, os estudantes universitários exigem uma protecção cada vez maior em relação a palavras e ideias de que não gostam”, o que está, dizem os autores do texto, “a ser desastroso para a educação e para a saúde mental”. E dão mais exemplos. Os estudantes de Direito de Harvard pediram que não fosse ensinada a lei sobre violação. O problema, diziam, estava na palavraviolação (rape), que podia reacender o trauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas desse tipo de abuso.
Absurdo? Os pedidos de protecção “literária” sucedem-se. Pouco tempo depois, a Aeon publicava um ensaio, partindo do facto de que a ideia de que os livros são perigosos é tão antiga como a literatura. “Não se fala tanto de ‘perigo’ político, mas moral ou mental. O romance de Chinua Achebe Quando Tudo se Desmorona (1958) está também entre os problemáticos por poder despertar instintos racistas ou reavivar o sofrimento de quem foi alvo de racismo; O Grande Gatsby, por estimular violência doméstica; Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, por poder levar ao suicídio, assim como A Piada Infinita, de David Foster Wallace, por narrar os sintomas da depressão crónica experimentada pelo autor e que o levaria a suicidar-se em 2006, dez anos após a publicação do livro. Fala de uma sensação que “é o motivo pelo qual quero morrer”. E define-a assim: “É como se não fosse capaz de encontrar nada fora dessa sensação e por isso não sei que nome lhe posso dar. É mais horror que tristeza. É mais horror. É como se uma coisa horrorosa estivesse prestes a acontecer, a coisa mais horrível que se possa imaginar, não, pior do que se possa imaginar porque há também a sensação de que é preciso fazer qualquer coisa de imediato para se deter aquilo mas não se sabe o que se deve fazer e de repente está a acontecer, durante o tempo todo, está prestes a acontecer e ao mesmo tempo está a acontecer.” (Quetzal, 2012)
Os campus universitários americanos parecem viver no pânico do trauma, na obsessão da linguagem politicamente correcta, de tal forma que — e lembra ainda o artigo da Atlantic — humoristas como Jerry Seinfeld estão a recusar dar espectáculos nas universidades, alegando que os estudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

“Infantilização” da sociedade

“Estamos perante uma excessiva psiquiatrização da sociedade”, afirma Manuela Correia, psiquiatra, psicoterapeuta, com um vasto trabalho e investigação desenvolvidos na área do suicídio na adolescência e juventude, e uma leitora voraz. Conhece todas as obras aqui apontadas como “perigosas” e tenta responder a uma questão muito simples: há livros que nos fazem mal? Ou — recuperando a terminologia usada por quem pede protecção — há livros “perigosos”? E a outra pergunta que pode precisar de resposta mais complexa: o que é que este medo pode representar, não apenas para quem dele padece, mas para a sociedade que o alimenta e dele parece alimentar-se?
“Pode falar-se em três categorias de interditos: o político, o religioso e o moral. E no moral está o uso de drogas, o apelo à violência, a sexualidade, o incesto, a prostituição, os termos impróprios. E parece ser aqui que estamos neste momento”, diz, remetendo para um termo que vem da sociologia, e que no seu entender está a regressar: anomia social.
O conceito desenvolvido por Émile Durkheim no final do século XIX no livro O Suicídio (1897) refere-se à ausência ou falta de normas ou regras numa estrutura ou grupo social. “Foi criado numa altura em que por diminuição do impacto religioso e dos valores das sociedades conservadoras, com a pulverização de valores através do desenvolvimento de uma economia capitalista e da razão, houve um aumento dessa regulação. Houve uma anomia social. É um conceito que tem a ver com a perda da identidade nas sociedades e dos seus objectivos. A religião, bem ou mal, dá um fim, um sentido”, contextualiza.





A psiquiatrização excessiva do comportamento humano é a forma que as sociedades capitalistas — porque formalmente são laicas — têm para controlar a tal anomia social. Antes, ela era controlada pela religião e por um poder político muito vertical. Hoje, nas democracias, o poder político é mais transversal, e aí, como já aconteceu há uns anos, patologiza-se o comportamento e patologiza-se uma pessoa que saia da norma. É uma forma de controlar a sociedade. O movimento dos anos 1960 da antipsiquiatria tinha que ver com isso. A psiquiatria funcionava como polícia da sociedade.”
Esse controlo pela psiquiatria está a voltar através de uma tentativa de normalizar os comportamentos. “Para mim, os casos mais graves, nem são os adolescentes, mas as crianças”, afirma. Leva a que, por exemplo, “se confunda muitas vezes uma criança irrequieta como hiperactiva” e lhe seja “medicada Ritalina”; ou a temer-se que contos clássicos como os dos Irmãos Grimm ou de Andersen possam ser traumáticos.
Uma das primeiras vezes em que se associou uma obra literária à prática do suicídio e isso deu lugar a uma investigação do tipo causa-efeito foi com A Paixão do Jovem Werther, de Goethe (1774, obra do romantismo que faz parte do Plano Nacional de Leitura). Ao longo do romance, o desespero toma conta do protagonista nas cartas que faz chegar ao narrador. “Ah!, por mais de cem vezes já peguei uma faca para dar vazão a este coração amargurado. Fala-se de uma raça de cavalos nobres que, quando são terrivelmente perseguidos e encurralados, arrebatam eles mesmos, por instinto, uma veia para facilitar a respiração. Sinto-me assim muitas vezes e gostaria de abrir uma veia que me desse a liberdade eterna…”
Manuela Correia refere-a como iniciática no estudo da relação entre literatura e suicídio. “Foi a partir daí que se começou a estudar o efeito de contaminação. O livro foi retirado em alguns países, mas voltou. Nunca ficou cientificamente provado que potenciasse esse efeito”, refere, salientando que essa ideia de contaminação está directamente associada à adolescência. “É a fase da formação, ainda não há um código de valores. Na adolescência temos várias tarefas, que passam pela alteração da relação com os pais, com os pares e a aquisição de uma identidade, onde está também a identidade sexual. Quem sou eu? O que quero ser? Qual o meu código de valores? A maior parte dos adolescentes são saudáveis, mas há umas franjas, mínimas em termos percentuais. E há um facto: esses jovens quando têm sofrimento psicológico, nomeadamente depressão, podem cometer suicídio. Em 90% dos casos de suicídio, há doença psiquiátrica por detrás, um sofrimento mantido: depressão, esquizofrenia, mania. Não há nunca uma causa única”, muito menos um livro.
“Nos adolescentes acontece muito mudarem de comportamento”, afirma. “Ou se isolam, ou mudam de grupo, ou têm vários comportamentos de risco mantidos no tempo, mudam os hábitos de vestuário, começam a ler livros e a ouvir músicas ligadas à temática da morte. São sinais de alerta”, explica, enquanto chama a atenção para o perigo de se achar que toda a sociedade é potencialmente composta por suicidas, deprimidos, traumatizados a quem um livro ou uma palavra num livro pode desencadear a acção limite.
“Os livros em si não são perigosos, eles fazem parte de uma constelação de comportamentos”, conclui, antes de voltar a exemplos que podem determinar uma incapacidade de lidar com o real que vem da infância e de uma sobreprotecção ligada ao medo dos pais de que a criança sofra.
Daí a preocupação de alguns educadores com os contos de Andersen ou do Grimm. “Falam de temas que as pessoas acham que não se deve falar às crianças, como a morte ou a bruxa má, e também em transgressões. Há nas crianças, naturalmente, uma ideia de liberdade ligada à transgressão. Mas varia de cultura para cultura. Por exemplo, na China, Alice no Pais das Maravilhas, de Lewis Carroll, está proibido, porque os animais têm equiparação aos humanos. As sociedades sempre controlaram e é importante que o colectivo tenha um autocontrolo. Mas…”
É neste “mas” que reside a resposta, que, no entender de Manuela Correia, não deve passar pela restrição da leitura, muitos menos desses contos que, entre outras coisas, ensinam o medo. “Os pais têm medo que as crianças tenham medo, mas é muito importante a aprendizagem do medo. Não faz mal que a criança chore e é bom que tenha medo.”



O que é o medo? “O medo é qualquer coisa que está ligada ao desconhecido e ao perigo e quando aprendemos isso adquirimos capacidades de lidar com ele. Há muitos estudos sobre os contos infantis. Os meninos que vão pelos caminhos à aventura, pelo desconhecido, deixam lá os sinais, mas depois acontece qualquer coisa e a marca desaparece e eles ficam perdidos. A criança chora. Não tem mal. O problema é quando a criança tem essa vivência sozinha. Antigamente, essas vivências eram acompanhadas pela família. Hoje a criança está muito sozinha. Está com os pais de forma muito instrumental, vestir, pequeno-almoço, ir para a escola, e à noite, despir, banho, trabalhos de casa, jantar, deitar. Há um estilo de vida que põe as crianças em frente à televisão, aos smartphones, no Facebook, sem o contacto olho a olho.” Estão ocupados. Este vocábulo, no entender de Manuela Correia, é o contrário de outro essencial para o desenvolvimento: o ócio, o tédio. “Os jovens hoje não têm tempo para ter tédio. O bom tédio, o bom ócio. Têm o tédio de ‘não sei o que é que hei-de fazer’. No bom tédio, uma pessoa pode estar sentada no jardim ou no sofá, uma hora, a cabeça a divagar. Isto é o ócio. Não há tempo para isto, para elaborar.”
Grupos como os dos universitários norte-americanos ou as associações de pais de muitas escolas surgem com este tipo de solicitação proteccionista em substituição de um papel que antes pertencia a um estado autoritário ou à religião. Segundo Manuela Correia, são o reflexo — no caso dos estudantes — e a origem — nos casos das gerações mais velhas (pais e avós) — de uma “infantilização” da sociedade; a sociedade que não consegue lidar com o medo ou com a pluralidade da linguagem.
Mas há também factores económicos determinantes, defende. “A própria austeridade reforça a anomia social, ou seja, a desagregação do tecido social. Mas o bom de tudo isto é que quando há muito movimento num sentido há tendência para haver um outro no sentido contrário para que essa anomia não seja excessiva e a sociedade possa estar autocontrolada, auto-regulada. Porque a sociedade como um todo também se auto-regula. É viva”, contém o problema e a sua solução.
Mas nunca se assistiu, reforça, ao pedido de protecção contra a liberdade de expressão por parte de uma comunidade de estudantes de elite, como está a acontecer nos Estados Unidos.

Os “transgressores”

A História tem casos de livros proscritos, na filosofia, na política, na ciência, os livros-ameaça ao estipulado. O Bom Selvagem, de Rousseau, Cândido, de Voltaire. “Eram indivíduos de uma elite que tinha conhecimento. E eram vistos como perigosos porque pensar é muito perigoso. Pensar dá poder. E por que é que normalmente são os grandes clássicos que agora são questionados por estes estudantes? Porque são os grandes clássicos que tratam os grandes temas, são os temas da filosofia. O que é que trata o James Joyce? Ou o Homero? Tratam a ideia de liberdade, e a liberdade é muito perigosa. A partir do século XIX, quando surge o romance, os interditos deixam de ser tanto os cientistas e os filósofos — com excepções como a de Charles Darwin [contestado pelo Criacionismo que rejeita a ideia de o homem e o universo terem sido criados por uma entidade que não sobrenatural].
A Origem das Espécies, de Darwin, foi retirado do programa oficial das escolas norte-americanas porque “a força do movimento Criacionista no país é muito grande”, lembra a psiquiatra, sublinhando “que nem a intenção do Presidente Obama em repor o livro como básico escolar conseguiu mudar as coisas”.


Um exemplo diferente é o que decorre do uso de linguagem considerada imprópria e um perigo em si mesma. “No Brasil, chegou a ser publicada uma versão light de O Alienista [1882], de Machado de Assis. Ele fala da mulher da vida airada, que é uma prostituta. Há livros que foram proibidos porque havia a palavra ‘puta’. Também aconteceu nos EUA. É a linguagem que ou ofende a religião ou o poder político, ou os costumes. E depois há a ideia de que as crianças não compreendem, o que é perigoso porque a linguagem e o pensamento estão ligados. Por isso a questão da língua é muito importante. Os adolescentes em todas as gerações têm códigos próprios e quando acaba a adolescência ficam com a linguagem de um adulto. Mas agora esses estereótipos estão a generalizar-se a todas as faixas etárias. Desenvolvemos a linguagem se pensarmos e, se tivermos uma linguagem rica, também pensamos melhor. Há um empobrecimento do vocabulário e um empobrecimento do pensamento.”
E há os livros “tabu” pela temática, periodicamente mais ou menos sensíveis conforme a geografia e a sensibilidade da comunidade. “Agitam as mentes”, comenta Manuela Correia.
Virginia Woolf está entre as escritoras mais visadas. “Ele — pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular — estava a golpear uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado”, primeira frase de Orlando, romance de 1928 que “pode entrar na construção social do género”, exemplifica a psiquiatra que vai à biografia da escritora, que “tinha relações amorosas com a Vita Sackeville-West, uma grande amiga e uma grande paixão. Teve uma depressão grave, o diagnóstico não está bem definido, mas havia uma esquizofrenia, porque às vezes ouvia vozes”.
Há mais. Anna Karenina, de Tolstoi, O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, as obras de Kafka, Ulisses, de James Joyce. Todas são apontadas como exemplos de conterem “elementos perturbantes”. “Todos os grandes autores pegam nas questões existenciais: o quem sou eu, o que eu quero ser, como é que eu gostaria de ser visto pelos outros, como gostaria de me ver, ter um lugar. Por exemplo, o lugar de Fernando Pessoa era completamente conceptual, interior e feito de vivências que expressava através da língua. Foster Wallace descreve a depressão tal como ela é, de forma crua, dorida. Mas, do ponto de vista clínico, estes livros nunca são perigosos. Podem é fazer parte da tal constelação de comportamentos de um jovem já em sofrimento. Impedir os livros da grande literatura, desde a infância, é infantilizar. A infantilização traz um grande perigo: o de haver outra vez sociedades concentracionárias e com um poder vertical.”
A literatura “ajuda a construir a identidade. É fundamental. Se eu pensar que a ideia de democracia, a cultura humanista, a valorização da ciência, a relação com o outro, se regem por um determinado código de ética e de valores, tenho de defender o acesso aos bens culturais, um direito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. E tenho de aceder aos cânones dessa cultura. Desde o Homero, desde a Epopeia de Gilgamesh [poema da antiga Mesopotâmia, actual Iraque] que trata da condição humana, da relação interpessoal e a ideia da viagem, que é a ideia de conhecer, ir para o desconhecido, ir para o medo. E depois os interditos: o suicídio, o incesto, a sexualidade, os valores. Todos os livros canónicos são uma preparação para a vida. E, se pudermos, ler os clássicos das várias culturas. Porque somos isso tudo.”



domingo, 7 de fevereiro de 2016

Quem me leva os meus fantasmas (Pedro Abrunhosa)




Aquele era o tempo em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acessos
Marinheiros perdidos em portos distantes
Em bares escondidos em sonhos gigantes
E a cidade vazia da cor do asfalto
E alguém me pedia que cantasse mais alto

Quem me leva os meus fantasmas
Quem me salva desta espada
Quem me diz onde é a estrada
Quem me leva os meus fantasmas
Quem me leva os meus fantasmas
Quem me salva desta espada
E me diz onde é a estrada

Aquele era o tempo em que as sombras se abriam
Em que homens negavam o que outros erguiam
Eu bebia da vida em goles pequenos
Tropeçava no riso abraçava venenos
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala nem a falha no muro
E alguém me gritava com voz de profeta
Que o caminho se faz entre o alvo e a seta

(refrão)

De que serve ter o mapa se o fim está traçado
De que serve a terra à vista se o barco está parado
De que serve ter a chave se a porta está aberta
De que servem as palavras se a casa está deserta

Pedro Abrunhosa, Luz, 2007





 






sábado, 6 de fevereiro de 2016

Poetry and verse from The New Yorker magazine.

Ash

BY 

Strange house we must keep and fill.
House that eats and pleads and kills.
House on legs. House on fire. House infested
With desire. Haunted house. Lonely house.
House of trick and suck and shrug.
Give-it-to-me house. I-need-you-baby house.
House whose rooms are pooled with blood.
House with hands. House of guilt. House
That other houses built. House of lies
And pride and bone. House afraid to be alone.
House like an engine that churns and stalls.
House with skin and hair for walls.
House the seasons singe and douse.
House that believes it is not a house. 

sábado, 30 de janeiro de 2016

NOITE NA REPARTIÇÃO (Carlos Drummond de Andrade)





O OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Papel,
respiro-te na noite de meu quarto,
no sabão que passas a meu corpo, na água te bebo.
Até quando, sim, até quando.
te provarei por única ambrosia?
Eu te amo e tu me destróis,
abraço-te e me rasgas, beijo-te, amo-te, detesto-te, presciso de ti, papel, papel, papel!
Ingrato, lês em mim sem me decifrares.
O corpo de meu filho estava amortalhado em
papel,
em papel dormiam as roupas e brinquedos, em papel os doces
do casamento.Em grandes pastas os rios, os caminhos
se deixam viajar, e a diligência roda
num chão fofo, azul e branco de papel escrito.
Basta!
Quero carne, frutas, vida acessa,
quero rolar em fêmeas, ir ao mercado, ao Araguaia, ao amor.
Quero pegar em mão de gente, ver corpo de gente
falar língua de gente, obliviar os códigos,
quero matar o DASP, quero incinerar os arquivos de amianto.
Sou só um homem, ou pelo menos quero ser um deles!

O PAPEL:
Tu te queixas...
Distrais-te na queixa e na mágoa que exalas
é perfume que te unge, flor que te acarinha.
Dissolves-te na queixa, e tornando incenso, halo, paz
te sentes bem feliz enquanto eu sem consolo
espero tua brutalidade
sem a qual não vivo nem sou.
Teu escravo, isto sim, tua coisa calada,
teu servo branco, tapete onde passeias e compões.
Tu me fazes sofrer, bicho implacável mais que a onça
o é para o galho que pisa.
Por que não sou sem ti? Por que não existo, como as árvores, por conta própria?
Sou apenas papel, e teu misterioso poder
me oprime e suja.
E te revoltas...
Quisera dizer-te nomes feios independente de tua mão.
Que as palavras brotassem em mim, formigas no tronco,
moscas no ar; viessem para fora em caracteres ésperos,
crescessem, casas e exércitos, e te esmagassem.
Homenzinho porco, vilão amarelo e cardíaco!

(Avança para o burocrata, que se protege atrás da porta.)

A PORTA:
De tanto abrir e fechar perdi a vergonha.
Estou exausta, cética, arruinada.
Discussões não adiantam, porta é porta.
Perdi também a fé, e por economia
irão, quem sabe, me tranformar em janela
de onde a virgem
enfrenta a noite
e suspira.
Seu aí de dentifrício americano cortará o céu
e me salvará.
Talvez me tornem ainda gaveta de segredos,
bolsa, calça de mulher, carteira de identidade,
simples alecrim, alga ou pedra.
Sim: é melhor pedra.
Dói nos outros, em si não.
Uma pedra no coração.

A ARANHA:
Chega!
Espero que não me queiras nascer um simples vaga-lume.
Fica quieta, me deixa subir
e fazer no teto um lustre, uma rosa.
Sou aranha-tatanha, preciso viver.
A vida é dura, os corvos não esperam,
ouço os sinos da noite, vejo os funerais,
me sinto viúva, regresso à Ingalterra, 
a aranha é o mais triste dos seres vivos.

O OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Depois de mim, é óbvio.
Sou o número um - o triste dos tristíssimos.
A outros o privilégio
de embriagar-se. Non possumus.

A GARRAFA DE UÍSQUE:
Não pode?

O GARRAFÃO DE CACHAÇA:
Não pode por quê?

O COQUETEL:
Experimenta. Sou doce. Sou seco.

TODOS OS ÁLCOOIS:
-Me prova! me prova!
É a festa do rei!
É de graça! de graça!
Me bebe! me bebe!

O OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Mas não sei beber. Nunca aprendi.

O PAPEL:
Ele não sabe que o artigo 14
faculta pileques de gim e conhaque;
mal sabe ele que o artigo 18
autoriza porres até de absinto;
como ignora que o artigo 40
manda beber fogo, querosene, fel;
que por motivo de força maior
cobre derretido se pode sorver;
se pode chegar ébrio na repartição,
se pode insultar o ícone na parede,
encher de vermute o tinteiro pálido,
ensopar em genebra velhos decretos
nos casos tais e em certas condições...
Ele não sabe.

A TRAÇA:
Que burro.

OS ÁLCOOIS:
Sua alma sua palma
seu tédio seu epicédio
sua fraqueza sua condenação.
Somos o cristal, o mito, a estrela,
em nós o mundo recomeça,
as contradições beijam-se a boca,
o espesso conduz ao sutil.
Somos a essência, logos, o poema.
Brandy anisette kümmel nuvens-azuis
cascata de palavras...

A ARANHA:
Não me interessa.

O OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Para beber é preciso amar.
Sinto-me tarde para aprender

O PAPEL:
Ele não sabe que a paixão amor
segundo reza o artigo 90...

A TRAÇA:
É uma zebra.

O TELEFONE:
Amor?
Através de mim os corpos se amam,
alguns se falam em silêncio
outros chamam e não agüentam
o peso e o amargor da voz
Inventaram-me para negócios,
casos de doença e talvez de guerra.
Mas fui derivando para o amor.
Como sofro! Todas as dores
escorrem pelo bocal,
deixam apenas saliva...
Cuspo de amor fingindo lágrimas.

A TRAÇA:
Namorar na hora do expediente!

O OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Não resolve. Nada resolve.
O mesmo revólver resolverá?
Amor e morte são certidões,
fichas...

A TRAÇA:
Despachos interlocutórios.

A ARANHA:
Lavrados na minha teia.

A VASSOURA ELÉTRICA:
Senhores depultados, desculpem. Sinto que é hora de varrer.

(Põe-se a varrer furiosamente, a porta cai com um gemido, as garrafas partem-se, escorrem líquidos de oitenta cores. O oficial administrativo tira os processos da mesa da direita, jogando fora o de cima e colocando os demais na mesa da esquerda. Em seguida, retira-os desta última e volta a depositá-los na mesas da direita, sempre atirando fora o último volume que estiver por cima. E assim infinitamente. Do garrafão de cachaça desprende-se uma pomba, e paira no meio da sala, banhada em luz macia.) 

A POMBA:
Papel, homem, bichos, coisas, calai-vos.
Trago uma palavra quase de amor, palavra de perdão.
Quero que vos junteis e compreendais a vida.
Por que sofrerás sempre, homem, pelo papel que adoras?
A carta, o ofício, o telegrama têm suas secretas consolações.
Confissões difíceis pedem folha branca.
Não grites, não suspires, não te mates: escreve.
Escreve romances, relatórios, cartas de suicídio, exposições de motivos,
mas escreve. Não te rendas ao teu inimigo. Escreve memórias, faturas.
E por que desprezas o homem, papel, se ele te fecunda com dedos sujos mas dolorosos?
Pensa na doçura das palavras. pensa na dureza das palavras.
Pensa no mundo das palavras. Que febre te comunicam. Que riqueza.
Mancha de tinta ou gordura, em todo caso mancha de vida.
Passar os dedos no rosto branco... não, na superfície branca.
Certos papéis são sensíveis, certos livros me possuem.
Mas só o homem te compreende. Acostuma-te, beija-o
Porta decaída, ergue-te, serve aos que passam.
Teu destino é o arco, são as bençãos e consolações para todos.
Pequena aranha pessimista, sei que também tens direito ao idílio.
Vassoura, traça, regressai ao vosso comportamento essencial.
Telefone, já és poesia.
Preto e patético, fica entre as coisas.
Que cada coisa seja uma coisa bela.

O PAPEL, A VASSOURA, OS PROCESSOS, A PORTA, OS CACOS DE GARRAFA, surpresos:
Uma coisa bela?...

A POMBA, no auge do entusiasmo, tornando-se de branca, rosada:
UMA COISA BELA! UMA COISA JUSTA!

A TRAÇA:
Precisarei adaptar-me...
Só roerei belas caligráfias.

CORO EM TORNO DO OFICIAL ADMINISTRATIVO:
Uma coisa bela. Uma coisa justa.

O oficial administrativo soergue o busto, suas vestes cinzentas tombam, aparece de branco, luminoso, ganha subitamente a condição humana:

Uma coisa bela?!...

Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Psicanálise: um século de atraso


Por Mario Bunge
Publicado no Cien Ideas
A psicanálise nasceu à luz do ano 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Ernest Jones, seu fiel discípulo e principal biógrafo inglês, nos conta que este livro, que Freud sempre considerou sua obra-prima, foi reeditada oito vezes em sua vida. Ele afirma que “não houve nenhuma mudança fundamental, nem havia qualquer necessidade para fazê-la”.
Tal imutabilidade é suficiente para levantar a suspeita de qualquer mente crítica. Por que não foi necessário modificar nada essencial em uma doutrina psicológica no decurso de três décadas? Será que é porque não houve investigação psicanalítica dos sonhos? Ou porque o primeiro laboratório de estudos científicos dos sonhos foi fundado apenas em 1963, na Universidade de Stanford, e sem a participação de psicanalistas? E se assim for, será que a psicanálise não seria mais literatura fantástica do que ciência?
Este não é o lugar adequado para fazer uma investigação detalhada da teoria e nem da terapia freudiana: esta tarefa já foi feita por dezenas de psicólogos e psiquiatras científicos, àqueles que não pregam em templos psicanalíticos que são certas faculdades de psicologia latino-americanas. Vou resumir apenas uma dúzia de resultados das análises de alguns dos mitos mais populares inventados por Freud. Aqui estão eles:
1. Inferioridade intelectual e moral da mulher, inveja do pênis, complexo de castração, orgasmo vaginal e normalidade do masoquismo feminino.
Puros contos. Não há dados clínicos e nem experimentais que os apoiam. A única coisa que há são efeitos psicológicos da discriminação contra a mulher na sociedade atual.
Mas isto está desaparecendo a medida que, contrariamente ao notório machismo de Freud, reconhecemos a paridade dos sexos.
2. Todo sonho possui conteúdo sexual, já manifestado e latente.
Incomprovável, já que, se em um sonho não aparecer nada sexual, o analista “interpretará” algo no sonho como um símbolo sexual. Mas outro analista o “interpretará” de maneira diferente. Igual aos velhos almanaques dos sonhos, os psicanalistas não apresentam evidências de suas interpretações; mas, ao contrário deles, os psicanalistas não propõem regras explícitas que sirvam, por exemplo, para jogar em apostas.
3. Complexo de Édipo e de Electra, e repressão dos mesmos.
Não há dados confiáveis, nem clínicos e antropológicos, que indiquem a existência de tais complexos. Enquanto que a hipótese de repressão apenas serve para proteger a hipótese anterior: quanto mais enfaticamente negar ódio ao meu pai, mais forte estarei confirmando o ódio. Isto é como dizer que o campo gravitacional é muito mais intenso quanto menos acelera os corpos em queda.
4. Todas as neuroses são causadas por frustrações sexuais, ou por episódios infantis relacionados com o sexo (p. ex., abuso sexual e ameaça de castração).
Pura fantasia. A frustração sexual causa stress, não neuroses (que, aliás, não foram bem definidas por Freud). Não foi provado que os abusos sexuais sofridos durante a infância deixam marcas mais profundas do que privações, espancamentos, humilhações ou orfandades. Tampouco é plausível que todo esquecimento resulte da censura por parte do fantasmagórico superego. Se esquece o que não se reforça. O que se provou é que a chamada técnica de “recuperação” (implantação) de memórias reprimidas foi um negócio lucrativo. Em qualquer caso, os transtornos psicológicos têm múltiplas fontes, e, portanto, múltiplos tratamentos possíveis. Algumas delas (p. ex., micção noturna e fobias) são tratadas com êxito a partir da terapia comportamental. Outras (p. ex., depressão e esquizofrenia) respondem às drogas. E outras mais (p. ex., violência patológica) podem necessitar de intervenção cirúrgica (na tireoide ou amídala cerebral).
5. A violência (guerra, greve, et cetera) é a válvula de escape para a repressão do instinto sexual.
Exceto em casos patológicos, tratáveis com neurocirurgia, a violência tem raízes sociais e culturais: pobreza, expansão econômica, fanatismo político ou religioso, et cetera. Por ter causas sociais, a violência coletiva tem remédios sociais. Por exemplo, a delinquência diminui com a ocupação.
6. Sexualidade infantil.
Mito. De fato, a sexualidade reside no cérebro, não em órgãos genitais. Sem o hipotálamo e os hormônios que este sintetiza (oxitocina e vasopressina) não haveria nenhum desejo ou prazer sexual. E o cérebro infantil não tem a maturidade fisiológica necessária para sentir prazer sexual. Para entender a sexualidade é necessário realizar investigações psiconeuroendocrinológicas e antropológicas, ao invés de fantasiar-se incontrolavelmente.
7. O tipo de personalidade é efeito do modo de aprendizagem do controle do esfíncter.
Falso. A investigação tem mostrado a inexistência desta correlação: as personalidades “oral” e “anal” são produtos das fantasias descontroladas de Freud. Existem muitos tipos de personalidade, e todas são produtos do genoma, do ambiente e do próprio esforço. Além disso, longe de ser inalterável, a personalidade pode ser transformada radicalmente por doenças cerebrais, acidentes vasculares cerebrais, drogas e reaprendizagem.
8. Os atos falhos (lapsos de linguagem) revelam desejos reprimidos.
Apenas em alguns casos, e que são poucos. A maioria das transposições de palavras são erros inocentes. Para provocá-las deliberadamente se armam de trava-línguas.
Além disso, alguns indivíduos são mais propensos do que outros a cometê-los.
9. O superego reprime todos os desejos e recordações vergonhosas que se armazenam no inconsciente. O analista descobre com o método de livre associação.
Os experimentos mais notáveis sobre o tema, incluindo da famosa pesquisadora Elizabeth Loftus (que não é psicanalista), não demonstraram a existência de repressão. E a experiência clínica mostra que não existe livre associação, uma vez que o analista transmite ao seu cliente as suas próprias hipóteses e expectativas. A medida que se aprende o jargão freudiano, o cliente “confirma” o que analista espera dele.
10. O ser humano é basicamente irracional: está dominado por seu inconsciente.
O inconsciente freudiano, como o diabo cartesiano, jogaria arbitrariamente com nossas vidas e por trás de nossa consciência. Esta visão pessimista da humanidade não se baseia e nem pode se basear em dados empíricos. O que não significa que alguns processos mentais escapam, de fato, da consciência. Mas Sócrates já argumentara sobre algumas das coisas que não estamos conscientes. E o tratado O Inconsciente, de Eduard von Hartmann, apareceu quando Freud tinha quatorze anos, e foi um best-seller em alemão e francês durante uma geração. (Eu o herdei de meu tio Carlos Octavio, que por sua vez pode ter herdado de seu pai.) Em qualquer caso, se é verdade que muitas vezes temos impulsos irracionais, também é verdade que, às vezes, conseguimos controlá-los. Por isso, construímos mecanismos de educação e controle social. E para isso, existem aqueles que fazem a verdadeira ciência ou técnica: para ascender do irracional para o racional.
Em resumo, as fantasias psicanalíticas são de duas classes: as incomprováveis e as comprováveis. As primeiras não são científicas. E as segundas são de duas classes: as que foram testadas e as que não foram investigadas cientificamente. Todas as fantasias do primeiro grupo foram falseadas. E, evidentemente, as do segundo grupo continuam no limbo.
O que resta de um século de psicanálise? Nada além de fantasia descontrolada. Os psicanalistas não fazem experimentos e nem usam estatísticas de seus tratamentos. Além disso, ignoram por princípio as descobertas da psicobiologia e da psiquiatria biológica. Sua psicologia é de cadeira e sofá, porque são prisioneiros do mito primitivo da alma imaterial que não pode ser captada por meios materiais, tais como a ressonância magnética funcional e outros métodos de visualização de processos mentais.
A psicanálise é a teoria das que não têm teorias científicas mentais ou culturais. E é um curandeirismo irresponsável que explora a credulidade. Como disse Sir Peter Medawar, Prêmio Nobel de Medicina, a psicanálise é “um estupendo embuste intelectual”. Nenhum outro embuste do século passado conseguiu deixar essa marca na cultura popular.
O êxito comercial da psicanálise se explica porque (a) não requer conhecimentos prévios; (b) não exige rigor conceitual ou empírico; (c) pretende explicar tudo com um punhado de princípios: desde neuroses a rebeldia adolescente à religião e guerra; (d) é um substituto da religião; (e) preenche lacunas deixadas até recentemente pela psicologia científica, em particular a sexualidade, as emoções e os sonhos; (f) se orgulha de curas inexistentes; e (g) segundo o próprio Freud, os psicanalistas fazem o favor as seus clientes em cobrar a consulta: não fazem trabalho social.
Mas o êxito comercial e a penetração da cultura de massas não são os mesmos do triunfo científico. Cem anos de fantasias psicanalíticas não produziram resultados equivalentes a uma semana de pesquisas no laboratório de neurociência cognitiva.
Além disso, hoje contamos com a psiconeuroendocrinoimunofarmacologia. Abreviemos para PNEIF. Esta sigla designa-se à ciência aplicada que busca fármacos que prometem reparar os transtornos do sistema neuroendocrinoinmune que se sentem como transtornos mentais, tais como a dor e o pânico, a confusão e a amnésia, a alucinação e a depressão.
O caso da PNEIF é um dos poucos onde se conhece a data exata do nascimento de uma ciência: 1955. Naquele ano, foi descoberto o primeiro fármaco neuroléptico para o tratamento de uma doença mental: a depressão. Antes se conheciam apenas estimulantes, tais como a cafeína, a benzedrina e a cocaína; analgésicos, tais como o ópio; e drogas que, como o álcool e o tabaco, a princípio estimulam e, em seguida, inibem.
A ciência básica correspondente é a psiconeuroendocrinoimunologia, ou PNEI, uma fusão de quatro disciplinas que antes estavam apenas relacionadas. Não foi só no curso das últimas décadas que alertaram que as fronteiras entre distintas ciências do cérebro são em grande parte artificiais, porque cada uma delas estuda uma parte ou aspecto de um único supersistema.
Por exemplo, foi descoberto que o órgão da emoção (o sistema límbico) detém, por vezes, e outras dificulta, as atividades do órgão de conhecimento (o córtex cerebral). Sem motivação, não há aprendizagem; por sua vez, o motivo pode ser emocional, tal como o desejo de agradar ou incomodar alguém. E se a emoção for muito forte, como é o caso do pânico, o raciocínio falha.
Tudo isso tem sido conhecido desde que os seres humanos começar a se interessar por seus processos mentais. O que não sabiam antes é que estes processos são muito bem localizados no cérebro. Por exemplo, um ser humano que tem uma grave lesão no córtex pré-frontal (atrás dos olhos) tem o julgamento moral comprometido. Este é o caso, felizmente muito raro, dos psicopatas.
A PNEIF está na moda porque está abordando e resolvendo uma pilha de enigmas da vida mental, e porque seu uso médico promete curar ou pelo menos aliviar a angústia dos doentes mentais e acabar com o psicoembuste e a psicocurandeiria.
Por exemplo, com uma pílula diária fomos capazes de controlar um esquizofrênico que, por sua vez, deixou sem trabalho tanto bruxo que afirmava que este era é um caso de possessão demoníaca, assim como o psicoterapeuta que assegura que o transtorno é o resultado de um episódio na infância, e que acredita tratar de seu paciente com meras palavras.
A PNEIF é a versão mais recente, rigorosa e eficaz da medicina psicossomática. A psicanálise está tão atrás como o curandeirismo, exceto como superstição popular e como um negócio rentável.
Para comprovar o que eu disse basta perguntar a um farmacêutico que pílulas são prescritas com algum êxito para tratar angústias, obsessões, depressões, esquizofrenias e outros transtornos mentais. E quem quiser saber que fundamento tem tais receitas, deverá consultar as revistas científicas que lidam com a mente e seus distúrbios, assim como as semanais científicas gerais Nature e Science.
Estas publicações estão cheias de novos resultados sobre a psique. Nenhuma delas aceita embustes psicanalíticos. Os psicanalistas usam apenas revistas psicanalíticas: constituem uma seita marginal em relação à comunidade científica. Sua alquimia não transmuta a ignorância em conhecimento, mas transforma mito em ouro.
A popularidade da psicanálise entre os escritores pós-modernos é, em parte, porque não exige conhecimento científico. E, em parte, também porque os pós-modernos, como os filósofos hermenêuticos e os praticantes das “ciências” ocultas, suspeitam que tudo é símbolo de alguma outra coisa. No entanto, até Freud admitiu que, às vezes, um charuto é um charuto.
http://www.universoracionalista.org/psicanalise-um-seculo-de-atraso/
2015-09-22

domingo, 24 de janeiro de 2016

CE N'EST PAS MOI QUI CHANTE











Ce n'est pas moi qui chante
C'est les fleurs que j'ai vues
Ce n'est pas moi qui rit
C'est le vin que j'ai bu
Ce n'est pas moi qui pleure
C'est mon amour perdu

Jacques Prévert, Paroles, 1946
Música: Serge Reggiani
















Poèmes et chansons de Jacques Prévert. Desenho de Serge Bloch, 2015