quarta-feira, 7 de agosto de 2013

OS POETAS SÃO OS PRÓPRIOS VERSOS DOS POEMAS (Sidónio Muralha)



Sidónio Muralha, por Júlio Pomar

              
SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
               
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942) 
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002.
             

Sidónio Muralha encara a sua escrita como uma espécie de caminhada em que autor e texto são indissociáveis.
Por isso mesmo, o poeta transforma-se nos próprios versos que escreve e o poema “é uma bandeira desfraldada”. Esse percurso conjunto já não pode ser perturbado por “ameaças”, “algemas”, “mordaças” porque o medo foi debelado (repare-se na anáfora do pronome indefinido “Ninguém”) e por mais que o “braço que bate” persista nessa atuação, ele “há-de cansar” dado que “os poetas são os próprios versos dos poemas”. Tal como o próprio texto, o poeta deixou de pertencer a si próprio, ele é “da hora” e os seus versos não podem ser “brandos” já que o momento exige um outro tipo de intervenção. Neste poema é evidente a existência de uma qualquer força opressora que urge combater, que ao poeta compete unir-se ao que escreve e, nessa simbiose (evidenciada no uso do encavalgamento), extrapolar a sua atuação para além do próprio papel que usa para escrever.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
    
           

PROFECIA

Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto – indigesto

‑ voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.
           
               
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942) 
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002.
             
                 
Conscientes dessa missão que competiu desempenhar à poesia durante cerca de quarenta anos, os poetas não deixaram nunca de ser a voz da esperança, de proclamar a sua crença na vitória da liberdade e no castigo que seria infligido a todos os que ousaram dominar e controlar o veículo de comunicação entre os homens: a palavra. Esses textos surgem como breves profecias, a antecipar os acontecimentos que ocorrerão a 25 de Abril de 1974.
Este poema constrói-se com base numa enumeração anafórica da expressão “Cada gesto”. A partir desse membro são justapostas várias circunstâncias / sentimentos típicos do Portugal salazarista: a prepotência (do aparelho de Estado e seus agentes), o ódio, a mentira, a ausência de verdade, a supressão dos gestos indigestos(gerados em cada homem pela censura e pelo medo dos delatores). São, desta forma, referidas algumas situações que serão devolvidas ao seu emissor dado que a nova lei a instaurar funcionará como um “boomerang”. Essa comparação, associada ao efeito visual do objeto selecionado, intensifica os atributos que lhe são imputáveis: ser implacável e ninguém poder escapar a ela. Essa impossibilidade de fuga dos criadores da clausura é evidenciada pela ausência de pontuação, com exceção do ponto final que a encerrar o poema e o circuito de retorno do “boomerang”.
                
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
           
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  Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/07/sidonio.muralha.aspx]

terça-feira, 6 de agosto de 2013

A PORTUGAL (Jorge de Sena)


Portugal e Galiza, Thomas Pesquet, 09-01-2017.



             
A PORTUGAL

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a m erda o seu anonimato;
terra - museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser's minha, não.
           
Jorge de Sena
“Tempo de Peregrinatio ad Loca Infecta (1959-1969)” 
in 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 85-86. Apesar de a obra ter sido publicada postumamente, em 1979, o poema “A Portugal” tem como data da sua elaboração o ano de 1961.
                 
                 

Ao iniciar com um verso de Os Lusíadas de Camões – “Esta é a ditosa pátria minha amada.” (canto III: 21) ‑, esperar-se-ia que a imagem de Portugal que iria ser registada fosse positiva ou não pertencesse o mencionado verso ao momento em que Vasco da Gama enaltece a pátria ao rei de Melinde1; porém, ela colapsa sobre si própria inclusão, no final do verso, desse rotundo advérbio de negação: “Não”. Após a rejeição do conceito de pátria que se vislumbra na obra camoniana, o sujeito poético enumera as razões que motivam a sua opção. A desconstrução da imagem é feita a partir de uma construção anafórica que inclui o advérbio de negação “Nem” associado a cada um dos vetores do verso de Os Lusíadas: “ditosa”, “minha amada” e “pátria minha” que incute sistematicamente essa relação intertextual com a visão traçada no canto III por Camões. Portugal não “merece” ser chamado de pátria, menos ainda de “amada” já que a característica que lhe é imputada é ser “só madrasta” (conceção que assume aqui um cariz amplamente depreciativo não só pelas conotações do substantivo “madrasta”, mas da sua relação com o advérbio de exclusão “só”). Além disso, o sujeito poético encara como “pouca sorte” ter nascido nele uma vez que considera “não [merecer]” tal destino. Após esta sucessão de orações causais, aparece uma nova rejeição; neste caso, da glória do passado dado que o que resta é uma “baixeza tanta/quanto esse arroto de passadas glórias” que não permite ao sujeito manter uma ligação afetiva com o país.
Com o intuito de desmistificar a imagem gloriosa do Portugal de antigas eras, traça-se uma visão diacrónica dos povos que habitaram o país bem como se alude aos aspetos geográficos característicos. Numa extensa terceira estrofe (vinte e sete versos) que, inclusivamente, se prolonga na última quadra, surge uma enumeração caótica, numa cumulação de sentidos que gera a ideia de uma país destituído de qualquer traço positivo. Portugal aparece como um “Torpe dejecto”, uma “babugem”, uma “salsugem porca/de esgoto atlântico”. A quase ausência de formas verbais e o encavalgamento existente na maioria dos versos cria um ritmo acelerado que culminará na apóstrofe do fim da estrofe: “Ó terra de ninguém, ninguém, ninguém”, em que a repetição do pronome indefinido reitera o mote de o país não ser a pátria de nenhum português. Ao longo deste devastador retrato, desta longa sucessão de epítetos, são mencionados diversos traços caracterizadores ou que, pelo menos, foram entendidos como tal ao longo dos séculos e que Jorge de Sena subverte. Depois da destruição da imagem de Os Lusíadas, aparece o implodir da apologia que Fernando Pessoa fizera na Mensagem. A esse “rosto com que fita é Portugal”, que assumia a simbologia da antevisão do futuro, do sonhar acordado, contrapõe Jorge de Sena a “irrisória face/de lama, de cobiça, e de vileza,/de mesquinhez, de fátua ignorância”; esse rosto sonhador cede perante o aviltamento dos valores, da ausência de cultura que se consuma na com a assunção de que Portugal é “terra de escravos” – na medida em que se vive prisioneiro de um passado que gera a inatividade – ainda à espera de ouvir a “nau do Encoberto”. A própria seleção do verbo onomatopaico “ranger” incluído numa conjugação perifrástica intensifica o envelhecimento de um povo e dos seus ideais, enferrujados como a própria nau. Jorge de Sena procura, dessa forma, realçar que o mito do sebastianismo em nada contribuiu para o progresso do país, bem pelo contrário, aprisionou-o numa espera infindável de um passado que jamais retornará, mas que contribuiu para criar a esperança de que, um dia, Portugal voltará a ser o timoneiro da Europa. É nestas circunstâncias que Miguel Real enfatiza que o profetismo se tornou “um estado de demência” que faz parte da personalidade dos portugueses; sempre que se vive um momento de crise, ele reergue-se “em forma de ilusão redentora”2 para contrariar o presente mesquinho e sem objetivos de um país que só se reconhecesse nos heróis do passado. À semelhança do poema “L’Été au Portugal” também em “A Portugal” é feita referência aos elementos humanos que povoam a pátria. Mais uma vez, Portugal parece limitar-se aos “funcionários” e às “prostitutas” que polarizam a sua existência em torno da hipocrisia religiosa – “devotos todos do milagre, castos/nas horas vagas de doença oculta” ‑, aos “heróis” de guerra que ascenderam a esse estatuto porque foram comprados ou morreram – “ terra de heróis a peso de ouro e sangue”. A casa portuguesa, tão enaltecida pelo Estado Novo, surge aqui na alusão à “terra triste/à luz do sol caiada, arrebicada, pulha”; nesse espaço fabricam-se falsos comportamentos já que a afabilidade é apenas “para os estrangeiros”. O país que é construído nestes falsos moralismos torna-se o símbolo do passadismo – é a “terra de monumentos”, “terramuseu” ‑, da estagnação e improdutividade – “pedras esburgadas, secas” – e da ausência de condições mínimas de salubridade já que “se vive ainda / com porcos pela rua, em casas celtiberas”. Para esta situação contribuíram os “poetas tão sentimentais” que calam, que omitem e permitem que os “oito séculos” de história se transformem na manutenção dos vícios, o que se alterou foram apenas os seres que lhes dão corpo “de roubos e patrões, barões ou condes”.
Se até ao momento o retrato elaborado pelo sujeito poético parece ser uma visão distanciada de alguém que apresenta o cartão de visita do país – postal negativo, subentenda-se ‑, na última estrofe há uma mudança de interlocutor: o sujeito poético dirige-se diretamente à sua própria terra para a insultar numa enumeração de atributos profundamente pejorativos, que se transformam em acusações irrebatíveis por parte do destinatário: Portugal. Consciente de que pertence a este país, o sujeito poético recusa-o por ser uma terra “cabra”, “badalhoca”, “mais que cachorra pelo cio”, “peste e fome e guerra e dor de coração”; decorrente desse quadro tão destrutivo, conclui que “[Ele lhe] pertence: mas [ela ser sua], não”.
Jorge de Sena constrói este rosto de Portugal como se de alguma forma o estivesse a mostrar ao Portugal que ele idealizaria; este destinatário último, que é implicado no final do poema, é já indiciado no título tão semelhante a uma dedicatória: “A Portugal”. Contudo, no final deste trajeto, Portugal surge como um local disfórico, minado pela “peste e fome e guerra e dor de coração”, baluarte de tudo o que é indesejável e que o polissíndeto acentua. […]
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
                   
____________
(1) A inclusão desse verso representa a referência à imagem de Portugal que o Estado Novo procurou assumir e impor aos portugueses.
(2) Cf. REAL, Miguel - Portugal: Ser e representação, Algés: DIFEL, 1998, pp. 126 – 127.
            ***
           


Jorge de Sena. A alta medida das coisas


Coleccionou nacionalidades como camisas se trocam, juntou desânimos. Leitor voraz, fez odes aos livros que não podia comprar. Imaginou-se a passar a reforma em Creta, a ilha do Minotauro, longe do inferno do mundo e dos outros, de “toda essa merda douta que nos cobre há séculos”, mas não chegou sequer à velhice.
Tinha apenas 40 anos quando a ditadura o fez dar mecha às solas e partir para o Brasil. Com Portugal e a cultura portuguesa manteve sempre uma relação difícil que um célebre verso de Catulo poderia resumir muito: “Odi et amo”. 
Nasceu em Lisboa, há 98 anos, precisamente no dia de finados, mas bem poderia dizer-se que nasceu num dia demasiado irascível para caber no Zodíaco. Não engolia fúrias, não calava revoltas, tão-pouco sufocava o sarcasmo, que nele é ainda uma forma superior de expressão literária. E também não se resguardava o autor de “Peregrinatio ad Loca Infecta”, um dos seus livros mais emblemáticos, em varandins de ocasião, lugares amenos ou simpatias de conveniência. Jorge de Sena, como escreveu o “Times” por altura da sua morte, a 4 de Junho de 1978, em Santa Bárbara, na Califórnia, foi sempre na literatura portuguesa uma “espécie de formidável touro, à solta num armazém de loiça”. 
Lidou com belas peças, figuras de pés de barro, a “vil canalha”, e também com tempestades; semeou alguns ventos, bonanças nunca as viu, nem mesmo depois do 25 de Abril. A ideia do regresso com que tanto terá sonhado ainda chegou a entusiasmá-lo, mas depressa se desencantou. Por cá, ninguém o esperava, ninguém sentia a sua falta, ninguém precisava de um tal vulto - certamente um dos maiores da literatura e da cultura portuguesas do século XX - no “Reino da Estupidez”. A figura deitaria demasiada sombra e desconvinha aos estrategas das letras. Restava-lhe, pois, exacerbar a relação de amor/ódio com Portugal e assumir o destino trágico de Camões, o seu grande interlocutor, por ele resgatado ao academismo e à “admiração paralítica”. Tudo o resto - descasos, invejas, mágoas, desapegos - foi sem perdão. 
Na escrita investiu uma avultada soma de energia. Escreveu com o furor de quem teme morrer no dia seguinte, ferveu raivas, perturbou - o talento, a inteligência e o saber enciclopédico perturbam. E não poupou nos coices. Nem a Academia de Estocolmo escapou, apelidada de “chafarica” no justo momento em que alguns admiradores se preparavam para o propor a candidato ao Prémio Nobel. Sena afrontou a mediocracia portuguesa, deu porrada à “literocambada”, essa que, tantas vezes escorada em reputações de cacaracá, não cessou de se unir e multiplicar, parasitando as instituições, trocando favores, permutando postos, servindo-se dos prémios que rodam na mesa do despudor, e que, ao invés de prestigiar, acabam a manchar-lhe a caderneta das glórias académicas. “Dói-lhes/ o pontapé no rabo? Hão-de apanhar/ ainda muito mais - no grande estilo / com que em milénios a poesia deu / os pontapés devidos a uma tal cambada”, escreve no poema “Provavelmente”. 
Bastou-lhe o primeiro livro, “Perseguição” (1941),  ao qual fez seguir “Coroa da Terra” (1947) e “Pedra Filosofal” (1950), para que a crítica logo o considerasse “infinitamente mais inteligente que poetas propriamente ditos”. Não era um elogio, antes a expressão de uma incompreensão. Hermetismo, cerebralismo, intelectualismo é a tríade que há-de perseguir caninamente Jorge de Sena, geração após geração. “Não é propriamente” - escreve num poema de “Visão Perpétua”, referindo-se à crítica - “que eu seja a caravana / e aquela tropa os cães das gerações / Oh não. Nem eu camelo, nem eles só cães”. 
Na verdade, a sua poesia, com uma arquitectura complexa, capaz de articular intimamente a consciência clássica da construção e a ousadia da transgressão, perturbava menos pelo que era do que pelo que não era. Não era um lar novo, fresco e matinal onde não bate uma sombra desiludida e tudo é paixão concentrada, calmaria e aves contentes. Mais interessada em indagar a paisagem humana, sempre dispensou tanto a colaboração da natureza como o lirismo objectivo e cantabile: “Que caçarei da natureza mais/ que humanidade em ruas de cidade?”. 
Não era uma casa caiada, asseadinha, exaltada na sua beleza patriarcal, abrigando pretéritos saudosismos. Espaço de cruzamento de culturas das mais desvairadas latitudes, objecto de pesquisa poética, a rever mitos e a propor contra-mitos, não pretendia ser a expressão da alma do povo nem a guardiã da moral, qualquer que ela fosse, dos bons e dos brandos costumes. E bastará lembrar aqui a sequência poética “As Evidências”, apreendida temporariamente pela PIDE sob a acusação de subversão e pornografia. Apressou-se Sena a acrescentar, naquele seu tom sarcástico capaz de dar conta de uma PIDE pouco sensível a cambiantes: “E para dizer a pura verdade evidente era realmente subversivo e, se não propriamente pornográfico, sem dúvida que respeitavelmente obsceno”. 
Consciente da impossibilidade de dissociar inteiramente um autor do seu tempo histórico e estético, desmistificando, de resto sobre o seu próprio exemplo, a ultrapassada concepção da originalidade absoluta, sempre fez questão Jorge de Sena de se descolar das afinidades que a crítica lhe descobria. Situada na grande tradição do lirismo especulativo (Camões, Antero, Pessoa), os primeiros livros de poesia logo representam um confronto divergente com todas as poéticas do Modernismo. 
Do seu inconformismo - político, social, cultural -, aliado a uma actividade de criação constante e intensa brotou uma obra vastíssima, repartida pela poesia e pela prosa de ficção narrativa desdobrada nas suas várias modalidades, pelo teatro, o ensaísmo, a crítica e a tradução (cerca de quarenta volumes), a investigação e a docência universitária, trocada pela Engenharia Civil, porque tudo vem cair na casa para que estava destinado. 
Se tentássemos percorrer a sua obra, que só não se terá expandido mais devido à ação malévola “daquela de que todos se livram no enterro dos outros”, haveria que referir forçosamente o poeta de lirismo especulativo de “Metamorfoses” (1963) e “Arte de Música” (1968), duas coletâneas que abrem caminho a um profícuo diálogo entre as diversas áreas da actividade artística; o ficcionista de vários livros de contos - “Os Grão-Capitães”, “Antigas e Novas Andanças do Demónio” -, de “Sinais de Fogo” e de “O Físico Prodigioso”, alter-ego de Jorge de Sena; do dramaturgo-revisor de mitos de “O Indesejado (António, Rei)”, peça surgida em 1949, ao arrepio da larga tradição sebastianista portuguesa; do ensaísta de “Trinta Anos de Camões 1948-1978” e de “Fernando Pessoa & Cª Heterónima”; do cronista sarcástico de “O Reino da Estupidez” (vol.I, 1961; vol.II, 1978); do prefaciador assombroso e auto-irónico de “As Quibíricas”, de Grabato Dias; do polemista cultural e do humorista verrinoso, como bem testemunha essa coletânea de ressentimentos postumamente publicada que é “Dedicácias” (1999). 
Deixou “Epitáfio”: “De mim não buscareis, que em vão vivi / de outro mais alto que em mim próprio havia./ Se em meus lugares, porém, me procurardes/ o nada que encontrardes/ eu sou e minha vida.” (“Fidelidade”).
Teresa Carvalho, 2017-11-02
https://ionline.sapo.pt/artigo/587196/jorge-de-sena-a-alta-medida-das-coisas?seccao=Mais_i


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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/06/jorge.de.sena.a.portugal.aspx]

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Que Portugal se espera em Portugal? Que gente ainda há-de erguer-se desta gente? (Jorge de Sena)


           


L’ÉTÉ AU PORTUGAL

                
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?
                
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
                
Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros campos
espanejando as caudas com que se ataviam.
                
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios com o bem e o mal
‑ mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
                
Chatins engravatados, peleguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas – e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.
                
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas todos tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
                
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
                
(Na tarde que anoitecer o entardecer nos prende).
                
Jorge de Sena, “Exorcismos” (1972) in Trinta Anos de Poesia, 2.ª ed., Lisboa: Edições 70, 1984, pp. 270-271.
                
                
A apatia, o conformismo e a inatividade (que serão as marcas particulares do país) estão, desde logo, condensadas no título do poema “L’Été au Portugal” uma vez que a estação do ano evocada – o verão – gera efeitos sensoriais aliados à dificuldade em agir (devido ao calor), ao descanso (época de férias), ao término de um processo de maturação (época em que tudo, na natureza, atingiu o estado adulto) que, inapelavelmente, representa o início do envelhecimento e morte que culminam nas estações subsequentes.
Esta simbologia do Verão vai condicionar a leitura do poema e a apreensão do rosto de Portugal será efetuada a partir desse pressuposto. Com o intuito de gerar o já mencionado distanciamento, o sujeito poético dirige-se, num diálogo virtual, a um interlocutor que nunca é nomeado nem identificado, mas a quem se destinam as sucessivas perguntas retóricas que perpassam a generalidade do poema: “Que esperar daqui?”, “Que Portugal se espera em Portugal?”. Porém, esse destinatário pode ser cumulativamente um Outro – que nada teria a ver com o país – ou o próprio sujeito poético numa espécie de cisão interna em que o seu lado mais crítico dialogaria com o que permanece associado emotivamente ao país alvo do retrato.
Ao longo das sete estrofes do poema (se excluirmos o monóstico final que, à semelhança da finda das cantigas medievais, recolhe e sintetiza o conteúdo de todos os versos anteriores) surge um país onde as pessoas nada esperam, pois até mesmo a “vida e morte” são “informes consentidas”, devorando-lhes não só o conceito de vida como os seus princípios e ideologias. Decorrente desse facto, o sujeito poético vê-as como vermes indesejáveis – as baratas – que “se envenenam” com “pó de raiva” numa ironia extrema que a pergunta retórica acentua. Neste ambiente repressor e destrutivo, as únicas soluções encontradas são a emigração (com o respetivo regresso em que se privilegiam os bens materiais adquiridos em detrimento dos ideológicos e/ou humanos – “e voltam como se eram só mais ricos”) ou o permanecer calando e vestindo “as opas/de lágrimas de gozo e sarapicos”. Como fizera Ruy Belo, também aqui não há a dissociação vida quotidiana/religião; em momentos de sofrimento, a população enverga as vestes solenes dos sacerdotes, porém, a solenidade em questão é o camuflar o sofrimento, as “lágrimas”, imbricando-as numa dança – o sarapico – e o suposto “gozo” que adviria de tal ato.
O esvaziamento do país e consequente desertificação e abandono das profissões produtivas é bem evidente na terceira estrofe com as “serras nuas”, os “baldios campos”, as “artes e mesteres que se esvaziam”. Se os adjetivos “nuas” e “baldios” remetem para a ideia do abandono, essa ação surge como progressiva e inacabável devido à contínua aliteração das sibilantes, à agressividade das vogais da sílaba tónica (que alternam entre as vogais abertas e baixas e as fechadas e altas) por oposição às fechadas que predominam ao longo desses versos e o uso do presente do indicativo “esvaziam” que, sintomaticamente, rima com outra forma verbal também no presente do indicativo “ataviam”. Tudo o que sobrou dessas atividades é “um relento de lampeiros campos/espanejando as caudas com que se ataviam”. De facto, eles parecem ser o único aspeto positivo (de notar o prolongamento da ação inerente ao uso do gerúndio “espanejando”), muito embora os “campos” já não sejam o objeto da produção, limitando-se a espanejar “as caudas com que se ataviam”. Esta imagem extremamente visual que, por associação com o ato praticado pelo pavão, mina a possibilidade de evolução, já que este é apenas um ato estético na medida em que só há a necessidade de um observador para vislumbrar as possibilidades contidas nessa cauda aberta.
A incredulidade do Eu quanto à hipótese de ocorrer, realmente, uma evolução é notória nas perguntas retóricas “Que Portugal se espera em Portugal?/ Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?”. O mote da espera, neste caso da “não espera” da primeira estrofe, é reutilizado para realçar o conformismo dos portugueses com a imagem do país que o aparelho de Estado difunde e os ideais que ele promove. A própria conjugação perifrástica “há-de erguer-se” antecedida do advérbio de tempo “ainda” enfatiza essa descrença quanto à capacidade de inverter a situação, principalmente porque o império português foi construído na simbiose do “bem e [do] mal” e os denunciantes não são penalizados pelo Estado, mesmo que as suas informações sejam falsas. Por isso, não é possível encontrar uma recompensa adequada para essas situações, o sujeito poético não sabe “com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?”. Não só o aspeto negativo da impossibilidade de reprimir denunciantes é notório como o facto de eles fazerem uso da palavra camufladamente já que se “agacham”.
A esta imagem da ataraxia generalizada vai justapor-se a da referência aos grupos de pessoas que constituem o país: “Chatins engravatados, peleguentas fúfias/passam de trombas de automóvel caro./Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços/ou sem as pernas – e como cães sem faro/os pilhas poetas se versejam trúfias.” Todos eles contribuem para gerar a imagem de um país amorfo, corrupto, dominado por vícios e defeitos. Mesmo aqueles que poderiam usar a palavra para denunciar as atrocidades, perderam o “faro” (nessa comparação corrosiva dado que um dos sentidos mais importantes do cão é o faro) e limitam-se a bajular o poder instituído para obterem favores; daí eles serem “pilhas poetas” e versejarem-se a eles próprios. Decorrente desta constatação, Portugal é formado por “moribundos mortos” independentemente da idade real. A ideia da decrepitude é bem evidente nesse cumular de sentidos entre “moribundos” e “mortos” que, para além dessa desistência ou cessação da vida, se “arrastam” para o “nada nulo”: a anulação total.
À inatividade vai associar-se a mesquinhez e uma população desvirtuada, são “todos tortos”, nenhum tem vontade de contrariar o pré-estabelecido e autocomprazem-se com o sofrimento próprio e o dos outros: “estão contentes de tristeza,/sentados em seu mijo, alimentados/dos ossos e do sangue de quem não se vende.”. Para além dos denunciantes, mencionam-se aqui os outros cúmplices: a nação inteira que se alimenta, qual canibal, da vida dos que não se calam, dos que não compactuam. Este ser amorfo, decrépito – sentado “em seu mijo” – que representa o país e os seus habitantes está de tal forma apodrecido que nenhum ato violento (“Chicote? Bomba? Creolina?”) é capaz de o acordar: “É tarde” para inverter a marcha da destruição.
Se durante todo o poema o sujeito poético se distanciou deste Portugal e destes portugueses, no monóstico final inclui-se nesse destino coletivo ao utilizar o pronome pessoal na sua forma de complemento ‑ “nos” ‑ para realçar que, neste verão infindável em que vive Portugal – “(Na tarde que anoitecer o entardecer nos prende)” ‑, também ele é prisioneiro desse país nefasto.
Depois deste primeiro quadro de um país envelhecido, apático e inerte, Jorge de Sena traça-nos um outro que nos leva a viajar pelos pontos mais importantes da história de Portugal. No entanto, o trajeto efetuado conduz-nos ao contacto com um país que não aparenta possuir qualidades ao nível geográfico e humano. O autor equaciona, de uma forma muito particular, o discurso ideológico e identitário que o aparelho de Estado havia inventado para difundir como o seu Portugal. Torna-se claro que a representação mental de Portugal é um discurso que implica uma simbiose entre meio circundante, mitos e crenças – apropriadas pela sociedade que os gere – e os sujeitos que se autoincluem nessa imagem, nesse conceito de identidade.
           
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           

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  Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                        


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/05/ete.au.Portugal.Jorge.de.Sena1972.aspx]