terça-feira, 16 de julho de 2013

VER CLARO (Eugénio de Andrade)


 
       
        
VER CLARO


Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
         
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001
             
            
Consoante a evolução histórica dos modelos de leitura e interpretação, o leitor intérprete privilegiou a intentio auctorisoperis ou lectoris como se cada uma delas possibilitasse uma interpretação distinta do texto1. Em meados do século XX, a tónica incide sobre a responsabilidade do leitor enquanto construtor de sentidos; por isso mesmo, há inclusivamente quem acredite que não há limites para a interpretação, que todas elas são plausíveis. Essa tarefa ativa da competência do leitor torna-se evidente, por exemplo, no poema “Ver Claro” de Eugénio de Andrade.
Este poema indicia, desde logo, a consciência de que ao leitor compete a difícil tarefa de interpretar o texto. Por isso mesmo, a obra em si – neste caso a poesia – é “luminosa,/até/a mais obscura”; o material que a compõe (linguístico e ideológico) é suscetível a que o leitor o revisite “outra vez e outra vez/e outra vez” até descobrir a sua clara significação. Quando o leitor dissipar o “nevoeiro dentro de si” conseguirá “ver claro”, descobrir o(s) sentido(s) do texto e essa conquista cegá-lo-á. O leitor que não desistir perante a adversidade da interpretação que alguns textos propiciam, será “Abençoado” já que viu para lá da mera sucessão de palavras. No entanto, essa capacidade de descodificação de um texto por parte do leitor não deve ser encarada como uma atividade ilimitada e caracterizada pela contínua ebulição de leituras já que “…toda a liberdade necessita de disciplina para não cair na libertinagem (entendida em mau sentido, é claro). O leitor deve aprender a usar com eficácia os seus poderes e liberdades.”2
              
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
         
______________
(1) Paul Ricoeur, em Teoria da Interpretação, defende essa dissociação entre o sentido que o autor pretendia veicular e aquele que o texto transmite, dado que o texto escrito tem uma autonomia própria ao nível semântico que “resulta da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao significado verbal do texto.” Porém, não deixa de relembrar que valorizar apenas o texto é esquecer que ele corresponde a um discurso de alguém, destinado a um recetor e sobre algo (Cf. RICOEUR, Paul - Teoria da Interpretação, Lisboa: Edições 70, 2000, pp. 41-42).
(2) Cf. MENEZES, Salvato Telles de - O que é Literatura, Lisboa: Difusão Cultural, 1993, pág. 30.


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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/16/ver.claro.eugenio.de.andrade.aspx]

sábado, 13 de julho de 2013

KWELA PARA AMANHÃ (Rui Knopfli)



http://worldmusic.nationalgeographic.com/view/page.basic/genre/content.genre/kwela_744_en_US

http://electricjive.blogspot.pt/2014/11/tin-whistle-jive-and-roots-of-kwela.html

Kwela Boy -Tretchikoff Painting:
Kwela Boy -Tretchikoff Painting
         
              

KWELA PARA AMANHÃ

Mil e tal crianças negras
fazem bonecos de lama
no coração do slum.
Mil e tal rapazes atléticos,
loiros, vermelhuscos, vestidos de caqui,
erguem para o ar o brilho das culatras
nos Union Grounds.
Há dois minutos precisos, o bus de Mayfair
atropelou um mineiro
e o sangue abre-lhe a vermelho, na fuligem do rosto,
uma rede caprichosa de carreiros.
Um milhão de pessoas,
à hora matutina do rush,
move-se automaticamente
na longa fita de asfalto,
ao comando dos sinais luminosos
automáticos.
Houve a noite passada
quatro assaltos à mão armada,
três sangrentas brigas de rua
e uma mulher matou a golpes de machado
o marido, porque tinha relações incestuosas
com a filha.
O sr. Du Prez conferenciou
com o sr. Potgieter e subiram
as acções da Companhia Diamantífera.
Desde a madrugada já se trataram no hospital
cento e duas emergências
e a juventude de blue jeans
dorme de manhã o onírico sono
da dagga.
Os pássaros passam de largo
e recusam-se ao cimento e ao asfalto
da cidade hostil.
Os poucos que pousam no silêncio arborizado
do Joubert Park
são neurasténicos,
olham o edifício do museu estupidamente
e fazem caca nos bancos das áleas.
O rosto das pessoas
é sólido e impenetrável
como o monumento dos Voortrekers.

Apesar disso

insólito som sobe
arabescos na manhã.

Apesar do cimento armado, dos números,
do sangue inútil
e do niquelado dos automóveis de luxo,
insólito, sobe o som na manhã.

Apesar disso,
com a nostalgia verde do veld
e do rebanho na montanha,
Spokes Mashiyane, dum pedaço de lata,
faz um kwela para amanhã.
              
    
Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959
           
             
Glossário e notas:
Kwela: nos anos 1950 o primeiro grande fenómeno pop sul africano veio ao mundo: o pennywhistle jive, também conhecido como kwela. O estilo baseado em flautas, originário da música dos vaqueiros negros e com as estruturas do jazz e do marabi, era tocado por grupos de músicos que se apresentavam nas áreas brancas de Johanesburgo, que muitas vezes eram presos por isso. Os jovens brancos mais rebeldes adotaram o kwela, e o artista Spokes Mashiyane popularizou o estilo com o hit ‘Ace Blues’, e Black Mambazo, com ‘Tom Hark’, canção muito regravada. (http://cwbdeluxe.blogspot.pt/2010/06/copa-e-pop.html)


            

Kwela comes from the Xhosa and Zulu word khwela, meaning "climb on," a term used to get performers involved in a show and also widely used by police to get them onto police vehicles. It's also related to the Zulu/Xhosa word ikhwelo which means a shrill whistle. The kwela music that developed during the '40s and '50s almost always featured the pennywhistle, a cheap and reliable (tin flute) instrument that served as the lead voice. Early music by Willard Cele caught the ears of many, and the 1951 movie The Magic Garden also played a role. Spokes Mashiyane (And His All Star Flutes) were wildly popular by 1954. The harmonies of the kwela are simple and cyclical in nature, usually C-F-C-G7; the music combines a rapid ostinato foundation with elements of African-American jazz-swing forms. – Banning Eyre, Courtesy Afropop Worldwide: www.afropop.org (Apud
Le jazz sud-africain: Dans les townships de Gauteng, le kwela se joue avec des petites flûtes métalliques, les penny whistles. Le style s'est développé dans les années 1950, avec nottamment  l'album à succès Ace Blues de Spokes Mashiyane. Paul Simon a utilisé le kwela dans son son disque sud-africain Graceland, avec les guitares tricoteuses de Ray Phiri et les chorales du Black Mambazo. Le jazz sud-africain est né en 1930, avec une base kwela et les trois accords du marabi, base des premiers rythmes urbains noirs. Saluons la mémoire de Kippie Moeketsi et les vocalistes Dorothy Masuka... et Dolly Rathebe qui, en 1949, apparaissait dans Jim comes to Jo’Burg, le premier film sud-africain joué uniquement par des Noirs. Dans les années 1950, des prêtres du Mozambique importent les sonorités tropicales du marimba, dérivées du balafon et du xylophone utilisé pour accompagner les chorales d’Afrique portugaises. Le mbaqanga, le son inventé en 1962 par West Nkosi et popularisé en 1964 par Simon Mahlathini, connaîtra également son heure de gloire internationale. Dans les années 1960 et 1970, le groupe Mahlathini and the Mahotella Queens (le chanteur et ses «claudettes» Nobesuthu, Hilda et Mildred) enflammait les scènes des cités noires. Avec la vague disco, on vit ensuite émerger le Mpantsula Groove et ses vedettes Brenda Fassie, Yvonne Chaka Chaka, Rebecca Malope et Chicco. C’était le style dit «bubble-gum». (Afrique du Sud 2012-2013 (avec cartes et avis des lecteurs), Dominique Auzias, Jean-Paul Labourdette)
                 
Slum: favela urbana.
Caquifazenda de algodão, amarelada ou acastanhada, usada em fardamentos militares ou afins.
Culatraparte posterior e/ou fecho do cano de arma de fogo.
Mayfair e Joubert Park: subúrbios de Joanesburgo, África do Sul.
Rush: agitação, correria, pressa.
Dagga: droga, cannabis sativa.
Voortrekerspioneiros que durante os anos 1840 e1850 saíram da Colónia Britânica do Cabo, para o interior do que é hoje a África do Sul, num movimento designado "Die Groot Trek" (a grande caminhada).
Veld, veldt: estepe, savana (África do Sul).
              
                                        
                 
                 

LINHAS DE LEITURA

São-nos apresentados em alternância contrastante no poema dois mundos que coexistem mas não coabitam.
De um lado, «Mil e tal crianças negras / fazem bonecos de lama / no coração do slum.» ‑ o sujeito poético começa e acaba com esta cena de favela urbana cujas crianças simbolizam crescimento e transformação.
O poeta empresta a sua voz poética ao negro sul-africano, quer de forma coletiva nas «vozes» de «mil e tal crianças negras» fazendo «bonecos de lama / no coração do slum», quer de forma individualizada em «Spokes Mashiyane», que surge envolvido na composição dum canto celebratório ‑ a Kwela. O poeta enaltece, assim, a capacidade de criar do nada do jovem negro que recupera a sua humanidade através da criação artística: «Apesar disso, / com a nostalgia verde do veld / e do rebanho na montanha, / Spokes Mashiyane, dum pedaço de lata, / faz um kwela para amanhã.»
Por outro lado, o jovem branco é apresentado em absoluta alienação de si, apesar do privilégio que lhe é outorgado: «Mil e tal rapazes atléticos, / loiros, vermelhuscos», erguem «para o ar o brilho das culatras / nos Union Grounds».
A cidade sul-africana representada é um espaço cujo contexto sociopolítico é deapartheid e onde a presença «bóer» (primeiros colonizadores neerlandeses da África do Sul) é sinónimo de poder e arbitrariedade: «O Sr. Du Prez conferenciou / com o Sr. Potgieter e subiram / as acções da Companhia Diamantífera.»
O espaço construído pelos idealizadores do apartheid simboliza, em última instância, a loucura das suas motivações insondáveis: «O rosto das pessoas / é sólido e impenetrável como o monumento aos Voortrekers»; «Os pássaros passam de largo / e recusam-se ao cimento e ao asfalto / da cidade hostil. / Os poucos que pousam no silêncio arborizado / do Joubert Park / são neurasténicos.»
O poema inscreve-se pois, visivelmente, numa discursividade «militantemente» nacionalista africana. A «Kwela para amanhã» é essa nota de esperança: «insólito, sobe o som na manhã».
(Adaptado de: O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli, Fátima Monteiro. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 91-92)
                 
                 
                 
TEXTO DE APOIO

In fact, Rui Knopfli, a great jazz aficionado, was acquainted with the jazz sceneboth in Lourenço Marques and in Johannesburg, where he lived for a few years. His most famous jazz poem “Kwela para Amanhã” [Kwela for Tomorrow], which was translated into English by the poet himself, is about the South African ‘kwela’ jazz of the 1950s. The poem was included in O País dos Outros, which came out in 1959. The poem is largely an account of the oppressiveness and morbidity of life in apartheid Johannesburg, yet it ends in the high note of hope provided by a kwela tune by Spokes Mashiyane: «Apesar disso, / com a nostalgia verde do veld / e do rebanho da montanha, / Spokes Mashiyane, dum pedaço de lata, / faz um kwela para amanhã.»
The world of jazz is a constant presence in Knopfli’s work, and it is a presence that very often harks back to America, although in a very different form from the way America is viewed in the work of more ‘nationalist’ poets like, say, Noémia de Sousa and Agostinho Neto. Fernando J. B. Martinho, in article on the figure of America in Rui Knopfli’s poetry, argues that for Knopfli jazz functions primarily as a ‘cultural reference’ and as an index to Anglo-American culture (“America” 119), as a sign of high culture, in other words. Despite this very individual appropriation of the concept of jazz, it certainly is true that the idea of jazz — and, by extension, America — was widely disseminated through Knopfli’s poetry. But this interest in jazz was also mediated, as we saw from the kwela poem, by the South African township reinventions of jazz (marabi, kwela, etc.). (The image of American in southern african literatureDissertação de Mestrado em Estudos Americanos apresentada à Universidade Aberta por João Luís Rafael Mitras, 2006.)
                 
                 

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

 

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).


 Literatura Moçambicana


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/13/kwela.aspx]

sexta-feira, 12 de julho de 2013

DAWN (Rui Knopfli)



         
DAWN


Agónica noite estremece
e despedaça-se
lá fora em chuva
nas vidraças.
Das sombras, das solidões
dos recantos recônditos
da noite e da chuva
saem homens.
Pela crosta da terra passa
um frémito de arrepio.
Chove.
Chove em África.
É noite
É noite em África.
Mão desmedida ergue-se
no breu,
corpo da terra que as águas
fecundam, impregnam.
Silêncios, hesitações,
sono de séculos, jugos,
racham em surdina.
Jogamos bridge na tepidez
do living,
reclinamo-nos na morna
penumbra erótica
dos cinemas,
ou dormimos em calma
digestão.
Para lá
da noite angustiada
monótono acalanto ergue
a voz.
No inescrutável, nas sombras,
nos recantos recônditos de agónica noite
África desperta...
              
Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959
     
             
LINHAS DE LEITURA:
                          
  • No poema «Dawn», de Rui Knopfli, o sujeito poético entrega-se a uma visão lúgubre, personificando com tons agrestes a terra africana.
  • Note-se a antítese entre um nós, colonizadores, descendentes de Próspero («Jogamos bridge na tepidez / do living, / reclinamo-nos na morna /penumbra erótica /dos cinemas, /ou dormimos em calma / digestão.») e os «homens» que estão «Para lá /da noite angustiada». E com eles está a própria terra africana («Mão desmedida ergue-se / no breu, / corpo da terra que as águas / fecundam, impregnam.»).
  • A noite é simbolicamente propícia a um ambiente de congeminação de revolta («Silêncios, hesitações, / sono de séculos, jugos, / racham em surdina.»).
  • O conjunto das imagens e metáforas simboliza o declínio de uma era por oposição ao nascimento de outro ciclo.
  • As reticências finais reforçam o estabelecimento de um paralelo entre o «amanhecer» («Dawn») e o «despertar» nacionalista de África.
  • No cômputo geral, a imagística criteriosa que estrutura o poema revela a posição anticolonial do sujeito de escrita.
           

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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).


 Literatura Moçambicana


           
«[…] os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais» 
Cesário Verde

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/12/dawn.aspx]

quinta-feira, 11 de julho de 2013

RENUNTIATIO AMORIS


José Carreiro, 2005.
         
                      
ADEUS

O mover dos lábios
a boca que se desenvolveu
os olhos líquidos
eu inflamava amava
as minhas mãos as nossas corriam em viva expansão
e com elas volvia
enchia a boca que agora ressinto pronunciada
a língua enlouquecia a pele

adiante apreçaste
           hoje estás pouco falador
como precisasses
           fala a dor

encontraste outro amante
na mesma compreensão que eu

mas nunca dissemos adeus.
                 
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de ÉpocaPonta Delgada, 2005.
                 
                 
A epígrafe que abre o livro, um verso de Jorge Luis Borges – “Somos a água, e não o diamante duro, / a que se perde, não a que repousa” –, coloca-nos de imediato perante um horizonte de leitura que o que se segue há-de confirmar. Constituído de duas partes, “Nada Nunca de Ninguém” e “O Riso dos Poetas”, o presente poemário faz da(s) continuidade(s), melhor, da consciência dela(s), o chão do seu dizer ou, como se pode ler no poema “Estes dias que nos Separam”: "farei do gesto uma cópia / infinita dos gestos dos gestos".
Da negatividade ontológica à negatividade temporal e psicológicaJosé Maria de Aguiar Carreiro procura, nos poemas que estão dentro, a completude impossível para uma palavra poética a que os advérbios (“Nada Nunca...”), que estão acima, nos sobreavisam para a ausência dela. A epígrafe reconfirma-se: não há presenças a que o dizer poético se possa juntar, nem continuidades de que a poesia seja o seu assomo de felicidade. Face à ausência – de si, dos outros e de um presente que nunca é –, que resta ao poeta senão a reafirmação dos advérbios? Chuva de Época instala-se no interior dessas ausências, para daí dizer o que dizer não se pode. O riso é o sinal desse impoder, e disso o poeta nos faz seus cúmplices. (Fernando Martinho Guimarães, nota da contracapa de Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.)
            
            
                                           

                 
                 
ADEUS

Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou se preferes, a minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos; 

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi. 

Como se a noite viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde o teu corpo principia. 

Como se houvesse nuvens sobre nuvens,
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
          
Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, 1951
          
             
O «Adeus» de As Palavras Interditas relaciona-se com o tema da partida, da distância e da separação. Na poesia de Eugénio de Andrade há recorrentemente o drama entre um eu e um tu. Enquanto o primeiro quase se apaga, o segundo define-se por aquele que passa. Como diz Eduardo Prado Coelho: «O encontro é breve – soberano.» (in Ensaios sobre Eugénio de Andrade, 2003)
«Temos aqui um eco da entre-procura e entre-cedência de dois desejos em diálogo (ou se preferes). É também o eco do entre-ceder do desejo e do real (como se… digo-te adeus).
Estes dois diálogos entre mundos (no sentido lógico-modal de mundos possíveis), que resumirei em eu-tu, desejo-realidade, vêm também cruzar-se no clímax final: o real dramático, de nuvens sobre nuvens (aliás homólogo a uma tempestade, que pode ser a do crescendo erótico) abre, ao cimo, em mar perfeito, e este mar perfeito cede ao singrar de um desejo a que o loquente expõe o seu peito como objeto.
[…] estou a referir-me ao constante movimento da metáfora, que, por exemplo, faz de um corpo uma província de um país virtual, transfigura os cabelos em vagas de tempestade, abre em flor os dedos do desejo e alarga um peito em superfície marinha. Mas no domínio da sintaxe da ordem frásica, não posso deixar passar despercebido o efeito extraordinário do verso eu era só fome o que sentia.
Tal como sinto esse verso no contexto do poema e da obra de Eugénio de Andrade, a simples forma sujeito da 1ª pessoa do singular tem muito de uma interjeição (digamos que de dor, ou de súbita privação essencial).
[…] Repare-se só nisto: neste Adeus há 12 marcas da 2ª pessoa do singular. O tu é o seu centro de gravidade.» (Óscar Lopes, Uma Espécie de Música, 1981)
             
             
                      EUGÉNIO DE ANDRADE
             
             
ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
               
Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro, 1950
               
               
Analise o poema «Adeus» de Eugénio de Andrade, tendo em conta:
• a oposição passado/presente (o pretérito imperfeito - tempo do amor; o pretérito perfeito – tempo  da destruição; o presente - tempo da constatação do vazio, do «adeus»):
• o amor e a palavra (o passado-tempo das metáforas; o presente - tempo das «palavras gastas», do silêncio);
• o amor e o milagre da dádiva;
• o amor e o milagre da transfiguração;
• os recursos estilísticos: as anáforas; as metáforas (o campo semântico de água);
• a estrutura formal: liberdade do verso e da organização estrófica, ausência de rima.
http://www.prof2000.pt/users/leiria/unidade4.htm
               
               
                                          
               
               
DESPEDIDA

Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.
              
Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959
              
              
RENUNTIATIO AMORIS
I
[…] Há aqui um subtil entrosamento de registos poéticos e de polarização metafórica, que condensa a irremediável melancolia de um adeus inútil no tépido apodrecer do tempo. O género, antiquíssimo, é o da Renuntiatio Amoris, e vem de Ovídio a Petrarca e Camões, que o nobilitam na idade moderna. A abertura do poema, na estrita e resignada simplicidade da rotura amorosa, traça um quadro de desolação, que lembra o cenário daqueles amantes de uma conhecida ode de Ricardo Reis: «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio». Diz Knopfli:
Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Não se encontra aqui o fluir lento das águas do rio, gulosas da margem ida, como em Ricardo Reis. Mas o silêncio que as palavras levantam entre os dois amantes, esse muro de cacos, são o silêncio concreto que na ode se preenche com o gesto das mãos enlaçadas e a contemplação de tudo quanto passa. No cenário de Knopfli não se insinua a inocência da ataraxia pagã, nem o alento moral de um estoicismo que prefigura o gesto de um estado de alma vazio. Há na sua despedida algo de muito diferente. O vulgar banco de cimento contrasta ostensivamente com os adereços das albas cancioneiris, onde cantam as aves, e compõe a quadra da separação sob a luz dúbia do
Outono decisivo de folhas secas.
A imagem atmosférica apela para um certo Camilo Pessanha, de tristezas dilaceradas na inelutável sucessão dos ciclos estacionais:
Outono de seu riso magoado,
verso que o poema de Knopfli recolhe e transmuta no processo da sua própria elaboração poética. O efeito estético logrado ganha ainda uma forte carga expressiva, graças a um processo de alusão metafórica, que apreende, na designação concreta, a tonalidade subjetiva do momento vivido. Deste modo, nos últimos quatro versos, que constituem o fecho do poema, e são a modalização anafórica da sua abertura:
Tudo entre nós foi dito
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus
o «apodrecer do parque», fenómeno natural, deve entender-se como sendo o do próprio tempo desvivido, assim como o «crepitar leve das folhas» corresponde ao fogo da paixão que se extinguiu. Luís de Sousa Rebelo, Prefácio a Memória Consentida. 20 anos de poesia 1959/1979, Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982.
              
II
              
[…] Knopfli constrói em «Despedida», como em «Ilha dourada», um sujeito poético em confronto com uma realidade de perda – presente ou antecipada - dum objeto amoroso. Não sendo esse objeto nomeado ou definido nos seus contornos, mantém-se em aberto como possibilidade de leitura no poema, um interlúdio entre o sujeito poético e um objeto amoroso alegórico ou arquetípico, em representação de nacionalidade, naturalidade, ou pátria.
[…] Embora sejam mantidas no poema as referências temporais que permitem identificar o espaço nele invocado com um espaço geográfico real (eventualmente não africano, sendo a estação do ano que o caracteriza um «outono decisivo de folhas secas»), esse espaço só poderá ser entendido como um espaço arquetípico ou alegoria do estado de alma do sujeito poético. | Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, p. 69.
               
               
Elabore um comentário do poema «Despedida» de Rui Knopfli que integre os seguintes tópicos:
  • a oposição passado/presente;
  • o amor e a palavra;
  • a intertextualidade literária com o poema «Adeus», do livro Os Amantes sem Dinheiro, de Eugénio de Andrade;
               
             

   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/11/adeus.aspx]