terça-feira, 4 de setembro de 2012

O POETA É O PORTADOR (Vitorino Nemésio)

           
“Daniele” — Photographer: linsengerecht.deKatja und Bernd Hofmann
Makeup: Kerstin Hoppe - KH VISA. Model: Rocky Danny

        

O POETA É O PORTADOR
                     
O poeta é o portador. Carrega tudo,
Mas ele mesmo é a carga e o encarregado,
Tal, na aldeia dos sãos, é o surdo-mudo,
Cheio deles e de si, triste pasmado.

A força do Sentido o faz escudo
Do fogo que não pode ser roubado
Enquanto ofereça o coração agudo
À guerra em que nasceu para soldado.

Sua coragem na palavra o espera,
Aguardado silêncio pensativo,
Como a hora que a torre negra dera
Além da meia-noite e antes da hora
Prima, que a madrugada álgida chora,
Lágrima a tempo, átono som cativo.

Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte (1959)
          



         
LINHAS DE LEITURA
      
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:
      
• A definição de poeta é apresentada em termos muito incisivos e abrangentes.

• O poeta é o soldado da palavra e do sentido.

• O poeta ausculta sentido de todas as realidades, na procura de um sentido íntimo de si e dos outros.

• O silêncio é condição necessária para seu fazer poético.

• As suas palavras (o Verbo) serão sempre insuficientes, não terão capacidade de um total desvendamento; será sobretudo um enunciador.
      
Aula Viva. Português B 12º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Editora, 1999.
    


      



ANÁLISE DO SONETO “O POETA É O PORTADOR”
      
Soneto de verso decassilábico sáfico. Apresenta rima cruzada nas quadras, emparelhada e interpolada nos tercetos, seguindo o esquema rimático ABAB/ ABAB/ CDC/ EED.

O poema divide-se em duas partes lógicas, sendo a primeira parte constituída pelas quadras e pelo primeiro terceto, onde o sujeito poético reflecte sobre a posição e motivações do poeta relativamente ao mundo em que habita (ditadura), enquanto que a segunda parte lógica, formada apenas pelo último terceto, pretende demonstrar o seu sofrimento. Tanto na primeira como na segunda arte o eu poético utiliza variados recursos expressivos com sentido valorativo, sendo eles:

- Metáfora ‘’O poeta é o portador’’. Com recurso estilístico o sujeito lírico pretende assinalar a semelhança entre um poeta e um mero transportador. Obviamente que a linguagem é conotativa e, como tal, o sujeito apenas pretende assinalar que o poeta é alguém complexo, porém mortal, com sonhos, expectativas, medos, à semelhança de um simples portador, além de que, o poeta, tem o cuidado de transportar para todo o lado as suas crenças .

- Hipérbole ‘’Carrega tudo’’, o eu poético socorre-se desta hipérbole para demonstrar que o poeta ao contrário dos demais procura recordar tudo.

- Partícula adversativa ‘’Carrega tudo,/ mas ele mesmo é a carga e o encarregado’’ , de forma a completar a hipérbole utilizada, o sujeito poético marca uma oposição entre o facto de apesar de ser humano.

- Metáfora ‘’Tal na terra dos sãos é o surdo-mudo’’, com esta afirmação o sujeito lírico pretende dar-nos a conhecer aquilo que um poeta sentia, naquele particular momento da nossa história: ditadura, quando se encontra no meio de pessoas comuns, que não partilham a sua revolta: totalmente deslocado. O poeta é dono de uma genialidade e sensibilidade, infelizmente, incomuns, o que lhe faz sofrer ainda mais do que aqueles que não se importam com os rumos da nação.

Dupla adjetivação (com supressão do conetor) ‘’Cheio deles e de si, triste pasmado’’, o poeta tem necessidade de escrever, no entanto, não o pode fazer. Ou melhor, poder até pode, mas não pode escrever sobre o que mais lhe interessa no momento, pelo que, se sente revoltado. O aparente desinteresse daqueles que o rodeiam também não ajuda porque ainda o faz sentir mais triste (os restantes tem preocupações que consideram mais importantes, nomeadamente, garantir a sobrevivência).

Metáfora ‘’A força do sentido o faz escudo/ do fogo que não pode ser roubado’’, o sujeito lírico descreve a preocupação do poeta: proteger o seu ‘’fogo’’ – criatividade- de um hipotético roubo por parte da força política vigente, representada na censura existente. É de conhecimento público que, na altura, o artista não podia escrever sobre aquilo que quisesse nem admitir a sua contrariedade, já que haveria represálias, era controlado.

 Metáfora ’’Enquanto ofereça o coração agudo/ à guerra em que nasceu para soldado’’, o eu poético é ao contrário dos outros está a ‘’dar em maluco’’, já que, como estes não se importam muito com aquilo quer lhe interessa, mas com coisas mais terrenas (o povo não está muito preocupado com a ditadura porque tem maiores preocupações: trazer comida para a mesa).
      
"O Poeta é o Portador" TrabalhosFeitos.com. 05 2012. http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/o-Poeta-%C3%A9-o-Portador/227845.html.


         
            
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/04/poeta.portador.aspx]

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O PÃO E A CULPA (Vitorino Nemésio)

      



O PÃO E A CULPA


Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.

Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.

Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.

Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.

Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.

Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…

Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
      
Vitorino Nemésio, O Pão e Culpa (1955)
      



LEITURA ORIENTADA
      

Sobre este poema, refere-se Maria Madalena Gonçalves, in Poesias de Vitorino Nemésio, a «O tom de pequena narrativa, onde ressalta o culto por certas facetas da tradição: o sentimento comunitário e da partilha, o mistério das coisas simples, a oração, o conhecimento da experiência directa («desde que me conheço sei o pão»: saber/saborear).

      
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
      
1. A presença no poema de duas dimensões temporais ‑ o outrora e o hoje -‑é evidente.

1.1. A que momentos da vida do eu correspondem essas dimensões temporais?

1.2. Ilustre as afirmações de Maria Madalena Gonçalves, a seguir sublinhadas, com expressões do texto: «Ao tempo de outrora associa-se a ideia de uma plenitude física e psicológica; ao tempo de hoje, liga-se a consciência de uma carência, que é, simultaneamente, perda de qualidade, de identidade e de fraternidade.
      
2. De que forma a palavra «pão» se liga à simbólica cristã?
      
3. Sabendo que o pão tem um valor simbólico, caracterize o estado de espírito do eu poético no hoje do poema.
      

CHAVE DE RESPOSTAS
      
1.1. A infância e a idade adulta.

1.2. Outrora – plenitude física «Caía o gesto à terra, a espiga balouçava... ») e psicológica («Grelava outrora a alegria/De mim e de muita gente»); hoje ‑ perda de qualidade («falta-lhe talvez polpa»), de identidade «mão é bem o mesmo») e de fraternidade («ou pelo menos não todo nosso»).

2. A destacar:
-        pão partido em companhia, a fazer lembrar o corpo de Cristo na comunhão;
-        a «hastilha de seiva» e o «fio de luz»: pureza e claridade;
-        as alusões ao «Padre-Nosso» nos dois primeiros versos da 3ª estrofe e no 1º verso da 5ª e da 6ª estrofes.
      
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
       
      


COMENTÁRIO DE TEXTO
      
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:
      
• O conteúdo simbólico do pão como salvação e o conteúdo simbólico de culpa como perda.

• Tom narrativo: acção, personagens, espaço, tempo.

• Duas dimensões temporais: passado (a infância) e o presente (a senectude).

• O passado ligado ao pão como sinal de plenitude física psicológica; presente, ligado à culpa, como consciência de um vazio proveniente da perda da identidade da fraternidade.

• A simbologia cristã:
-        referência à Oração do Pai-Nosso;
-        alusão ao pão eucarístico;
-        partilha do pão, lembrança da eucaristia.

• Estruturação do poema em dois momentos.

• O admirável ritmo da 4ª estrofe:
-        cesuras;
-        variedade métrica;
-        transportes;
-        frases curtas, alternando com frases longas;
-        verbos de movimento.
      
Aula Viva. Português B 12º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Editora, 1999.
    


      
SUGESTÃO
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/03/o.pao.e.a.culpa.aspx]

domingo, 2 de setembro de 2012

TERRA DE LUME (Vitorino Nemésio)






           
        
TERRA DE LUME


Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.

Terra de lume implanta
O meu corpo de velho
Enrolado na manta.
As minhas mãos estão postas ou podadas?
Sou gente ou vide?
O chão, com minhas folhas amontoadas,
do Inferno me divide.

Mas, rezo sempre, como o fio da fonte
Teima na rocha viva ao mar virada
Na esperança de que um cântaro desponte

E o apare ainda ‑ ou a covinha breve
Que, temendo o queimor da água salgada,
Ele próprio em pedra abriu

Como na terra leve,
Ajudado dos álamos, o rio.
        

Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa (1955)
       



          
TEXTO DE APOIO
     
Ao longo de O Pão e a Culpa, Nemésio consegue um notável equilíbrio entre essa voz interior, a do «coração sonoro», e as imagens do mundo exterior que o poeta incorpora na sua angústia. Ora o lume lhe promete a lucidez da estrela, ora a água (promessa de lenitivo) se transforma, dentro da oração, num estímulo de esperança, «como a chuva que cai na telha vã».
          
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, p. 174)
            



LEITURA ORIENTADA
           
1. Justifique o título do poema (cf. esquema que se segue).


     
O Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, p. 172)
        
2. Caracterize o eu poético, atendendo à sua postura perante Deus.

3. Que expressões, na 1ª estrofe, reenviam para a ideia de «esperança» e de «voz interior»?

4. Comente os versos 10 e 11, considerando a polissemia de folhas. (Folhas: Outono, fim da vida e/ ou representação do papel, ou seja, da poesia.)

5. Divida o texto em duas partes lógicas, justificando a delimitação efectuada.

6. Faça o levantamento dos recursos expressivos mais relevantes.
         
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
       
       


SUGESTÕES
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/02/terra.de.lume.aspx]

sábado, 1 de setembro de 2012

ESPÍRITO DA NOITE (Vitorino Nemésio)

          
 


        
ESPÍRITO DA NOITE

Espírito da noite, variável
De Miguel a Satã, conforme os lumes,
Dependente da carne,
Cheio de mortos como um Marne
E lúcido de gumes.

Espírito forçoso na vigília
E lânguido no sonho
Que uma seiva de tília,
Tépida, fez risonho.

Espírito tão simples, enunciado,
E profundo na causa,
Urdido para tempo, dilatado
Peito de pausa em pausa,

Alto és no amplo sopro
Que ainda tenta na argila,
Como na pedra o escopro
Minha forma tranquila.

Mas, se à tua fogueira
Aos ventos estendida,
Prometeu, anjo velho, tirou fogo,
Alma, de que maneira
Escaparás à ardida
Terra, sem água ou rogo?

Espírito, na beta luminosa
Instantâneo e evidente,
Voltarei como lágrima na rosa
Da tua alva silente.

Entretanto, como as várias
Aves de ramo em ramo,
As espadas contrárias
Decidirão do que amo.
    

Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
   


    
TEXTO DE APOIO
    
Dir-se-ia que a noite adquiriu, aos olhos do poeta, o dom de consubstanciar o Bem e o Mal. O «Espírito da Noite», entidade dilacerante, tanto pode englobar as milícias do Arcanjo como as forças do inferno. É o Espírito devorador*, «lúcido de gumes», brilho sinistro de espadas noturnas (o campo do desconhecido) que deixam atrás de si ossadas, como na guerra.
   
* O carácter terrivelmente enigmático do Espírito Santo foi assim apresentado por Teixeira de Pascoaes:
Sou o Espírito Santo, compreendes?
E este imenso gigante que tu vês
É a seara viva"o pão da minha fome!
      
«Regresso ao Paraíso», Obras Completas,
vol. IV, Bertrand,.s/d., pág. 131
    
Esse Espírito, que uma «seiva de tília» fez «risonho», é a simplicidade profunda (tudo e nada) que habita em cada ser, o «amplo sopro» que dá «forma tranquila» a cada homem. Mas «tenta» dar vida à argila, ou «tenta» ao pecado? Ambas as coisas, naturalmente...

Citámos, em nota anterior, alguns versos de Pascoaes onde se fala do <«imenso gigante». Trata-se, evidentemente, de Prometeu enquanto símbolo da espécie racional. Também Nemésio estabelece um elo entre o Espírito Santo e Prometeu. E esse elo leva-o à angustiada interrogação: esse fogo (símbolo do Espírito e, simultaneamente, das luzes prometeicas) não queimará a Alma, se a Terra (local de degradação) não ofertar ao homem, rezando este, uma gota de água (de graça divina)?

O poeta espera essa graça, espera a luz, espera que o Espírito não seja unicamente lume, mas também claridade, iluminação. Enquanto essa graça não chega, as «espadas contrárias» travarão no íntimo do poeta o seu milenar combate.

Importa salientar que, em O Pão e a Culpa, avulta o «lume» ‑ elemento já presente na anterior mundividência do autor, mas que irrompe agora com mais intensa obsessão. E mais uma vez Nemésio mergulha profundamente na açorianidade nesse sentimento ilhéu segundo o qual o Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. Para os Açorianos, o Divino Espírito Santo, sendo Deus, não se confunde nem com o Pai (entidade remota) nem com o Filho, cordeiro de Deus sacrificado aos pecados do homem. O Espírito Santo, cujo símbolo é a pomba, é a verdadeira transcendência dentro da cosmovisão insular. Por isso Vitorino Nemésio, neste livro, traduziu um dos hinos do Espírito Santo: «Veni, Creator Spirictus, / Mentes tuorum visita» (págs. 24-27), terminando da seguinte maneira:
    
Vem, Espírito Santo,Por nome amor e asa,Como a áscua de espanto
Acende a mente e a casa.

Os corações repletos
Serão de Ti, que amplias,
Como os grãos são completos
Já nas vagens esguias.

Das quais Uma, à luz núncia,
Para mais que anjos feita,
Abre a cruz da renúncia
Sobre a Terra imperfeita.

Vem na consolação,
lndene a gáudio e a pranto,
Tu, Padre, e à dextra mão
O Filho, Espírito Santo.
      
Mas o Espírito Santo esconde-se em seu mistério uno e trino. Nem a oferenda do Homem («Abre a cruz da renúncia / Sobre a Terra imperfeita») vale perante essa entidade ambígua que parece por vezes consubstanciar o Bem e o Mal. Por isso o autor reza, reza para que o Espírito o ilumine:
   
TERRA DE LUME

Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.
    
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
    
     
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, 
Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 170-174)
       




       
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/01/espirito.da.noite.aspx]