segunda-feira, 4 de maio de 2009

O SONETO É UMA CASA POÉTICA


«Falemos de casas

[…]

pensamentos nas pedras de alguma coisa

celeste como fogo exemplar.»  


Herberto Hélder, "Prefácio" in A Colher na Boca
Apud Poesia TodaLisboa, Assírio & Alvim, 1990

     
    
    
     
«O soneto é uma casa poética. Em nenhuma outra forma fixa o lirismo sabe conter-se tão amoldado, tão justo na medida que o veste e tão livre nos movimentos de respiração e de gesto que lhe apontam o exterior de que é abrigo e olhar. Medidas e casas são gosto e desejo de cada um, mas sempre se pode determinar o maior ou menor espaço que delimita o canto habitável e a maior ou menor folga que define a propriedade ou o empréstimo. Formas de rigor no estar livre, em suma. Com as adaptações subjectivas que sempre condicionam a liberdade dos outros (a do género) pela nossa e lhe conferem o rigor do exacto momento que vivemos. Assim o soneto, depois da grande fortuna clássica e simbolista que soube conquistar, se preterido pelas formas anárquicas da des-“ocupação do espaçocontemporâneo, num sistema de substituições[…]».

Mª Alzira Seixo, Discursos do Texto,
Amadora, Livraria Bertrand, 1977, pp. 283-284.
     
*

«[…] o soneto é uma estrutura e é uma unidade de tratamento da linguagem poética, constituindo uma descida vertical na pesquisa e na construção do poema considerado como um objecto.»               


E. Melo e Castro, depoimento a O Tempo e o Modo, 59, p. 383.

*

O que há no soneto? Uma unidade perfeita: desenha-se cada ideia parcial deper si, mas não tão independente das outras que não haja entre elas relação, até que afinal, juntando tudo num só se apresenta por todos os lados simultaneamente como em resumo, o fecho – chave de ouro! Dai, a unidade. E simplicidade? Toda: as partes conservam estreito laço entre si, é só um sentimento, só uma ideia; não são várias, mas vários lados: a unidade final funde-os num todo.

Antero de Quental, «Prefácio à Edição dos Sonetos de 1861». In: Antero de Quental, Sonetos, Organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 230.







1988

Observem que o poema de Avelino de Araújo só usou palavras no título. O texto, em si, é construído na associação visual da imagem que compõe o corpo do poema com as duas palavras do título. Analisando esta combinação temos o desenho de uma cerca de arame farpado, a palavra apartheid e a palavra soneto. E a indicação do contexto histórico da produção do texto remonta ao ano de 1988. A leitura mais imediata que o texto provoca  – entre outras possíveis – é a que relembra o significado de apartheid, o regime político de segregação racial que imperou na África do Sul até os anos 90. No apartheid eram determinadas as áreas das cidades em que os negros poderiam viver e em quais eles poderia circular. Se ultrapassassem os limites estabelecidos eram violentamente reprimidos pela polícia. A palavra soneto, por sua vez, evoca a forma fixa mais clássica de poesia: o poema com 14 versos, distribuídos em duas estrofes de 4 versos (dois quartetos) e duas estrofes de 3 versos (dois tercetos). É a forma em que estão distribuídas as linhas que formam a imagem do corpo do texto. Linhas que são fios de arame farpado, objeto usado para fazer cercas que delimitam propriedades… ou que formam cercados para animais.
Com a associação da imagem do arame farpado disposto numa cerca de quatro-quatro-três-três às palavras apartheid soneto Avelino de Araújo nos diz muito sobre o regime doapartheid: esse regime segregacionista, ao confinar seres humanos a áreas restritas, trata-os como animais. Três palavras e uma imagem foram suficientes para construir este sentido.
https://literarizando.wordpress.com/2009/03/08/gabaritos-2009-ficha-2/



PROPOSTA DE ESCRITA RECREATIVA, EXPRESSIVA E LÚDICA:

O soneto seguinte foi escrito por Florbela Espanca, mas encontra-se incompleto.
Completa-o de forma lógica, mantendo o tom poético (linguagem conotativa) e respeitando as seguintes características:

Os versos são decassilábicos;
O esquema rimático é ABAB BABA CCD EED;
Os versos encontram-se agrupados em quatro estrofes (duas quadras e dois tercetos);
O último terceto termina com chave de ouro.



Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que _________________,
Que tem a inspiração _________________,
Que reúne num _________________ a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher _________________! E que de leita
Mesmo aqueles que morrem de _________________!
Mesmo os de alma profunda e _________________!

_________________ que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de _________________ vasto e profundo,
Aos pés de quem _________________ anda curvada!

E quando mais no céu eu vou _________________,
E quando mais no alto ando _________________,
Acordo do _________________... E não sou _________________...
Florbela Espanca


(Para)Textos. Caderno de AtividadesLíngua Portuguesa 8.º Ano. Ana Miguel de Paiva, Gabriela Barroso de Almeida, Noémia Jorge, Sónia Gonçalves Junqueira. Porto Editora, 2012, p. 71.




PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


Como escrever um soneto, criado por Jack.aw, revisões wikiHow.

Sonetário brasileiro, Elson Fróes.

Poesia lúdica barroca, Folha de Poesia, José Carreiro, 2010-11-04.

Soneto, recurso didático da Areal Editores
           

    
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/05/04/soneto.aspx]

terça-feira, 21 de abril de 2009

MEDEIA



MEDEIA
     
(Recitando o texto de Eurípedes.) «Jasão, perdoa-me o que disse. Tens de suportar este génio violento. Partilhamos tantas recordações do nosso amor!» Eu ralho comigo mesma, «Como és doida, Medeia, teimas em te queixar, quando o que os outros pretendem é levar a vida da melhor maneira possível, teimas em te queixar, erguendo-te contra o Rei e contra o teu próprio marido.»
[…]
«A vossa mãe está fora do Mundo», dizes calmamente enquanto enches o cachimbo, «e há quase vinte anos que anda agarrada como um abutre à carcaça de Medeia. Como e dorme com os seus demónios, de que outra coisa quer ela saber?» E os pequenos ouvem-te. O mais velho pelo menos ainda te presta atenção, vendo no pai aquilo que pretende ser, um «pragmático» com a ambição toda que cabe nesta palavra»
[…]
«A chuva desta noite espalhou pela terra as azeitonas antes que amadurecessem.» O texto de Eurípedes não contém, mas deveria conter, uma fala assim. Bem mais felizes terão sido essas mulheres antigas, descidas de um reino de taças de veneno e de tronos derrubados, desgrenhando a cabeleira no ventre dos seus amantes. Pariam em sangue, em sangue assassinavam.
[…]

Durante muitos anos tive aquele pesadelo. O homem, jovem de mais para mim, erguia-se na última fila da plateia. Disparava três vezes. Eu caía na grande luz do palco. E o público levantava-se para me aplaudir.
    
    
MÁRIO CLÁUDIO, MEDEIA
Lisboa, Publ. Dom Quixote, 2008
    

     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/04/21/medeia.aspx]  


sexta-feira, 17 de abril de 2009

É só um vazio imenso (Juan Luis Panero)

            
              
               
ANOS DEPOIS DE SEPARAR-NOS
         
Eram duas estrelas sobre um cenário, cada uma actuando diante de um público de duas pessoas: a paixão com que jogavam a mascarada criava a realidade.
         
FRANCIS SCOTT FIFZGERALD
         
          
Restam sim, cidades, paisagens, sensações de calor ou de frio, a neve de Nova Iorque, o sol implacável de Cartagena das Índias.
Restam quadros perdidos em museus ou em casas,
como postais de outro tempo, sem brilho,
conversações com amigos ou talvez inimigos,
encontros que por um momento deram valor à nossa vida,
tardes de touros, filmes, canções,
copos vazios, cães, casas abandonadas, bugigangas mexicanas.
Resta um cenário perfeito,
com todos os detalhes cuidados até ao limite,
para representar a obra tanto tempo ensaiada,
a parelha estelar enfim triunfadora.
Mas hoje, todos o sabem, nem tu nem eu actuamos.
E uma cenografia, por brilhante que seja,
nada é sem palavras, sem um alento humano.
É só um vazio imenso ou, sejamos modestos,
uma cartolina cinzenta onde irreflectidamente se cola
— nem vaias nem aplausos — os bilhetes da estreia,
velhas fotografias que a ninguém interessam, de dois rostos idos.
E as luzes apagam-se e fecham-se as portas.
            
JUAN LUIS PANERO, ANTES QUE CHEGUE A NOITE
Versões de António Cabrita e Teresa Noronha
Lisboa, Fenda, 2000, p. 40.
          
         
              
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/04/17/vazio.aspx]

quarta-feira, 8 de abril de 2009

ANTÓNIO BOTTO

António Botto, por João Abel Manta. MC.DES.1004 Museu de Lisboa




Não queiras vê-lo,
Nem perguntes o que eu fiz
Quando há pouco fui olhar-me
Depois de falar contigo
E em que chorei de saudade!
    
Quebrei-o porque não quero
Aceitar a realidade!
      
Não digas, — não vás supor
Que foi uma cobardia,
Ou nervos, ou pessimismo,
Ou uma simples fantasia!...
      
Não, amor: o nosso drama
— O meu!, tem essa tragédia
Da consciência que eu ponho
Sem querer, sem a chamar,
Para ouvir o que eu digo
E para ver o que eu faço...
      
Sou o rastro de um sorriso,
Um gesto do teu cansaço...
Sou a música perdida
De um lamento que foi alma
Na letra de uma cantiga
Cantada por um mendigo
Numa estrada solitária
Onde não passa ninguém!
      
Quebrei-o e fiz muito bem.
      
Quebrei-o como quem parte
A vida que idealizou:
      
— Não posso ver-me qual fui,
Não quero ver-me qual sou.
       
António Botto, Curiosidades Estéticas (1924) poema 24
in Canções e Outros Poemas, Ed. Quasi, 2008


[AntBotto.bmp]




AS CARTAS DEVOLVIDAS

17
Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Eu não podia mais… Era impossível, acredita. Se continuássemos a viver como vivíamos — e mudar, dificílimo seria, — se nós desistíssemos desta separação ou dêste sacrifício, apartávamos, certamente, as nossas almas, e para sempre! Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Dizes-me na tua carta relida já quatro vezes que a tranqüilidade da nossa vida vale mais que tôdas as paixões, que todos os desejos… Tu dás-lhe êsse nome; mas, para mim, tem outro: — sim; chamemos-lhe egoismo. O teu é sacrificar todos os prazeres para evitar uma dor; — és cobarde e comodista. O meu, tambem se chama egoismo, porém, é egoismo diferente, é egoismo ideal: — sacrificar tudo ainda que o sacrifício possa destruir a minha vida e essa destruïção entristeça para sempre a minha alma. Ah!, como nós somos opostos! Tu acabaste para esquecer ou pôr de parte a minha camaradagem; eu, acabei para te lembrar continuamente e para mais te pertencer. Tinha que ser: está bem. A vida é uma sucessão de imagens; se umas se apagam há outras que permanecem…

18
Notícias da minha vida — para quê? O que tu possas imaginar dela talvez tenha mais encanto. Notícias minhas? Caberiam em três palavras: — Tento, apenas, esquecer-te!

19
Eu não devia responder á tua carta; nem sei dizer porque o faço. Também de que servia dizer-te? A verdade parece traição àqueles que vivem da mentira. Tentei esclarecer-te, para meu sossêgo e minha tranqüilidade êsse desagradável mal entendido que deu origem á nossa frieza actual, tão firme, segundo parece. Não quizeste escutar-me. Pouco depois, saías, — sem me deixar sequer a esmola de uma palavra… Dias passaram, longos dias decorreram, e hoje, a tua carta de quatro linhas vem dizer-me que te arrependes da simpatia que me déste… E num tom sêco terminas: que eu que sou bem diferente daquele que tu julgaras… Nada respondo. Apenas te lembro que a vida é cruel, imensamente cruel; e a sua maior crueldade é não permitir que pessoas da nossa estima possam conhecer a verdade dos nossos pensamentos e a verdade do nosso sentir. Adeus. As grandes paixões são para as grandes almas.

António Botto, Canções




António Tomás Botto nasceu em Concavada (Abrantes), em 1897. Amigo de Fernando Pessoa, colaborou em várias revistas de vanguarda, como a Athena, A Águia, a Contemporânea, a Presença, etc. Embora inveteradamente boémio, chegou a alto funcionário em Angola (África), na qualidade de Chefe da Repartição Política e Civil do Zaire. Vindo para o Brasil, entrou a viver uma vida desregrada e anárquica. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1959.
Escreveu poesia e contos. No primeiro caso, temos: Trovas (1917), Cantigas da Saudade (1918), Motivos de Beleza (1923), Curiosidades Estéticas (1924), Pequenas Esculturas (1925), Olimpíadas (1927), Dandismo (1928), Ciúme (1934), Baionetas da Morte (1936), A vida que te dei (1938), Sonetos (1938), - reunidos no volume As Canções de António Botto (1941, primeiro volume das Obras Completas), ódio e Amor (1947), etc. Contos: Os Contos de António Botto, para crianças e adultos (1942), etc.
A poesia de António Botto pende sempre entre dois pólos líricos: de um lado, coloca-se um erotismo exacerbado até o máximo possível, graças às febres duma incrível imaginação e duma privilegiada sensibilidade, e por isso mesmo invertendo o sinal do apelo físico: em lugar de dirigir-se a uma mulher, dirige-se a um adolescente. O tom é apolíneo, clássico, paganizante, em que se cultua a beleza masculina por seu equilíbrio de formas e a harmonia das linhas fundamentais. Do outro lado, uma poesia aparentemente antagónica, dado o seu carácter socialmente "realista": o poeta põe-se a retratar o baixo-mundo lisboeta onde impera o "fado", canção de escorraçados. Nessa poesia voltada para o quotidiano de Lisboa perpassa um eco longínquo de Cesário Verde. No movimento pendular - de carácter feminino-masculino -, o "outro" do poeta é já mulher, donzela ou fadista, como a compensar a tendência oposta: "Anda um ai na minha vida / Que me lembra a cada passo / A distância que separa / O que eu digo do que eu faço".
Os contos parecem testemunhar uma espécie de paisagem moral sobre a qual balançam e se compensam mutuamente as duas tendências marcantes do temperamento de António Botto.
Ambiguamente escritos para crianças e adultos, pois servem a todos com seu intuito pedagógico, os contos tem qualidades e defeitos resultantes desse mesmo carácter moralizante: assumindo atitudes à La Fontaine e à Esopo, o contista cometeu erros de base que por pouco não anulam completamente o sentido da obra toda. Noutros termos: procurando manter-se equidistante entre falar às crianças e aos adultos, algumas vezes o narrador se derrama piegasmente, ou se torna artificial quando pretende inserir notas de ingenuidade na moral com que coroa as narrativas. Com isso, parece comunicar-se apenas com o público infantil, pois para os adultos não satisfaz o conteúdo ético das conclusões. E mesmo para crianças, havia que ponderar a ocasional ausência de moral ou a sua impropriedade. Sempre, contudo, temos um prosador de primeira água, dotado de transparência, fulgor, simplicidade e variedade. A tais dotes soma-se o pendor inato para a poesia: é justamente a prosa poética, que adquire por vezes um tom de apólogo, ou de linguagem oracular, o superior mérito dos Contos, que se aparentam a Os Meus Amores, de Trindade Coelho, sobretudo pela esvoaçante fantasia que lhes serve de lastro, expressão de crença no mundo dos sonhos ou duma ânsia de fuga para atmosferas de beleza exclusivamente imaginativa.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
São Paulo, Editora Cultrix




VIRILIDADES
ANTÓNIO Botto foi, como é sabido, um poeta capaz do melhor e do pior. Do pior retenhamos, por exemplo, o desastrado e genuflectido Fátima - Poema do Mundo (1955) ou a quase totalidade dos poemas recolhidos em Ainda Não Se Escreveu (1959). Como testemunhos do melhor, ficaram as Cartas Que Me Foram Devolvidas (1932), a peça Alfama (1933) ou As Canções agora reeditadas. Recorde-se que estas últimas mereceram de Pessoa não apenas o apoio editorial (na edição inaugural de 1922, que viria a ser ampliada em 1930 e 1940) como ainda um ensaio pródigo em encómios e o exemplar Aviso por Causa da Moral, endereçado por Álvaro de Campos às mentes susceptíveis dos estudantes de Lisboa.
O manifesto de Campos vinha precisamente em defesa das Canções após um pedido público de apreensão e proibição da sua venda. Era de facto um livro que, para além de um vigor poético que em nada perdeu actualidade, denotava uma coragem rara e frontal - tanto pela homossexualidade assumida ao longo das suas páginas como (ou talvez sobretudo) pela concepção que veicula do corpo como princípio e fim do prazer: «Se os nossos corpos se entendem// Nada mais nos é preciso» (pág. 37); «Não vale a pena ter alma» (pág. 137). Com uma veemência que quase poderíamos considerar inédita entre nós, Botto atreve-se a louvar o «largo aprumo viril» (pág. 69) dos corpos, sem a mínima ambiguidade, recorrendo com frequência a deliciadas descrições que nos obrigam a ter presente a «visualidade trágica do amor» (pág. 132): «Moreno! Um todo excitante;/ Rapaz do povo, lavado,/ Viril, saudável - um corpo// Já batido na bigorna// Dos amores proibidos» (pág. 214). A mestria com que convoca o corpo desejado atinge nas Canções não apenas um elevado conseguimento estilístico mas também (o que é mais raro no nosso lirismo amoroso) uma felicidade provocatoriamente despreocupada, que não resiste a partilhar o deslumbramento erótico em que se firma: «Venham ver a maravilha/ Do seu corpo juvenil!// O sol encharca-o de luz,/ E o mar de rojo tem rasgos/ De luxúria provocante». Em todas as circunstâncias (se exceptuarmos os poucos monólogos dramáticos em que o sujeito é feminino), o amor a que este livro procura dar voz inteira confessa e reclama a sua virilidade: a evidência de acontecer «entre dois homens».
A singularidade das Canções não se prende, porém, apenas com a opção sexual que claramente reivindica e que na altura não podia deixar de escandalizar. É verdade que o autor (ou a personagem por ele criada) adopta a atitude de quem «zomba e ri da moral imposta» (pág. 215), rejeitando de modo inexoravelmente sereno (embora por vezes irónico ou até magoado) o papel de vítima moral ou social: «Deixá-los dizer -/ Que somos dois amantes; faz-me rir,/ Mesmo até sem ter vontade...// - Uma verdade na vida,/ De qualquer modo que a vejam/ É sempre a mesma verdade» (pág. 189). Mas talvez a ousadia maior de Botto tenha sido a reiterada tentativa de se colocar «à margem da moral» (pág. 218), cujos princípios normativos procurou submeter a uma espécie de indiferença hedonista que parece apostada em sacralizar e democratizar a carne, dado que «- A carne do assassino/ É como a do virtuoso» (pág. 15). Esta tentação de privilegiar o «encantamento carnal» (pág. 50) tem, aliás, consequências estéticas, na medida em que o desejo é perspectivado/sublimado como algo de supra-estético, capaz de se bastar na violência com que eclode e reclama cumprimento: «A beleza -/ Não é mais do que o desejo/ Fremente que nos sacode.../ - O resto é literatura».
Tudo isto contribuiu, naturalmente, para que a obra de Botto se fizesse rodear de uma aura de polémica ainda não de todo extinta. Basta que pensemos na indisfarçada misoginia que serve de contraponto ao elogio rasgado da carne trigueira e viril. Quando surge nas Canções, a figura da mulher é associada ou à débil servidão conjugal ou à mais rude prostituição. De resto - e por mais que pese a qualquer leitura de inspiração politicamente correcta -, é no final de um dos melhores poemas deste livro que vamos encontrar o paroxismo glacial desse desprezo pela mulher: «Acabo, aos beijos, num quarto/ Sobre uma espécie de mulher» (pág. 189). De certo modo, é como se no universo erótico intensamente viril das Canções a mulher fosse vista como portadora de um estigma, da possibilidade de corromper o corpo masculino idealizado, por exemplo, nas «Olimpíadas»: «- Carne divina/ Sem a mácula do abraço feminino/ Que a torna/ Doente, sacrificada».
Não é apenas o receio da debilitação (e o consequente elogio da juventude) que vem perturbar o apaixonado louvor do corpo. De facto, a poesia de Botto pauta-se às vezes por uma melancolia de tonalidades frias e elegíacas: «De quanto quanto nós fomos,// Apenas sei que sou triste» (pág. 104); «Tudo foge ao nosso olhar» (pág. 154). O que se deve também ao facto de nos melhores poemas do autor o ser do amor ser incansavelmente questionado e, de quando em quando, desacreditado ou corroído pela dúvida: «Anoitece nos meus olhos./ - Se vens falar-me de amor/ Vê lá bem se isso é verdade». Esta conseguida «singeleza» de expressão não renega, evidentemente, um forte parentesco com o fado, com a quadra popular ou até com o ambiente mítico de uma Alfama que não era ainda degradado pasto de turistas. A força e a fraqueza de Botto encontram-se, aliás, nessa peculiar facilidade de concentrar a intensidade expressiva num registo populista (a roçar por vezes o melodrama ou o lirismo de manjerico): «Quem mais ama mais padece;/ Eu hei-de amar poucochinho» (pág. 75). São de lamentar, esteticamente, os momentos em que essa veia populista cai numa estéril autocomplacência ou se afivela a um patriotismo rudimentar (para não dizer saloio). Tal como se nos pode revelar fruste e convencional a maneira como é cantada «a doutrina/ Bendita de Jesus - esse tesoiro» (pág. 157).
Seja como for, tanto como pelos matizes vários que da temática amorosa nos oferece, é pela força e pela elegância do versilibrismo de Botto que o fascínio das Canções se mantém irredutível. E muito deve esse fascínio ao talento com que nos é proposto um coloquialismo despojado, assente numa sintaxe primorosamente descuidada que faz de travessões, reticências e pontos de exclamação elementos de expressividade maior. Ao que se alia uma preferência por frases e versos curtos, claros e contundentes. Sirvam de exemplo os versos que, em jeito de despedida, rematam certos poemas: «Não dizes nada?/ Fazes bem. Adeus!» (pág. 221). O que nos leva a pensar que a poesia de Botto é tanto melhor quanto mais intensamente requer um interlocutor (ou destinatário-em-corpo) que dota certos textos de um quase sufocante realismo emocional (e os dispensa, ao mesmo tempo, dos solipsismos e frouxas grandiloquências que vieram a caracterizar o pior do que o poeta escreveu).
Numa época em que a «complexidade» mantém ainda um tirânico poder de sedução e prestígio, talvez não seja descabido observar que a poesia de António Botto, não exigindo excessivas manobras hermenêuticas, não deixa por isso de poder ser (como no caso das Canções) grande poesia. Podemos, aliás, inseri-lo nessa estirpe de poetas (em que se contam, por exemplo, Irene Lisboa ou Raul de Carvalho) para quem o dizer claro e um fértil «prosaísmo» se revelaram a mais grave, profunda e urgente razão de escrever versos.
Manuel de Freitas, Cartaz Expresso, 26-02-2000
http://primeirasedicoes.expresso.pt/ed1426/c281.asp?ls


https://www.sistemasolar.pt/pt/produto/361/pt/o-mundo-gay-de-antonio-botto/

 

Anna Klobucka sobre António Botto (É Apenas Fumaça), 20/03/2019



LIGAÇÕES EXTERNAS

1921
Antônio Botto – Canções. São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2014. Publicado originalmente em 1921.
1922
António Botto e o Ideal Estético em Portugal”, Fernando Pessoa. Revista Contemporânea, vol. I, n.º 3, ano I, 1922.
1938
Através da obra do Sr. António Botto (Análise Crítica), Amorim de Carvalho. Porto, Edição do Autor, 1938.
1986
El semiheterónimo Antonio Botto”, José Luís Garcia Martín. Archivum: Revista de la Facultad de Filología, ISSN 0570-7218, Tomo 36, 1986 (Ejemplar dedicado a: Miscelanea Filológica dedicada al profesor Jesús Neira) , págs. 381-408
2010
A invenção do eu: apontamentos sobre a vida de António Botto”, Anna M. Klobucka.Forma Breve: Homografias: Literatura e Homossexualidade, vol 7. Aveiro, Universidade de Aveiro, 2010, p.63-80.
2012
Canções / Songs: Fernando Pessoa traduz António Botto, Maria Cardoso Pereira Vizcaíno. Instituto Politécnico do Porto - ISCAP, outubro de 2012.
2012
Corpo, Expressão e Identidade em Adolescente de António Botto”, Rodrigo Corrêa Martins Machado e Gerson Luiz Roani. Gláuks v. 12 n. 2 (2012) 12 – 26.
2013
Artimanhas de Eros: Aspectos do erotismo e do esteticismo na poética de António Botto, Ricardo Marques Martins. Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2013.
2014
António Botto”. In: Wikipédia, a enciclopédia livre [Em linha]. Flórida: Wikimedia Foundation, rev. 5 outubro 2014.
2018
“António Botto não foi só amigo de Fernando Pessoa. Foi o primeiro (do mundo) a escrever poesia homoerótica sem véus”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-11
2018
“Obras de António Botto vão voltar às livrarias ainda este ano”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-01
2018
“O Mundo Gay de António Botto”, Anna M. Klobucka. Sistema Solar, 2018-06-11
2019
A maior felicidade é ser-se compreendido. Sete poemas para recordar António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Como a existência dramática de António Botto acabou numa avenida de Copacabana”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Um colóquio para ficar a conhecer melhor António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-15
2019
“Dois dias para celebrar António Botto e Fernando Pessoa, amigos e poetas”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-05
2019
“Anna Klobucka: António Botto e Fernando Pessoa beneficiaram de forma igual e recíproca da sua relação de amizade”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
2019
Anna Klobucka sobre António Botto (É Apenas Fumaça), entrevista por: Ricardo Esteves Ribeiro, 20/03/2019
2019
Documentário sobre António Botto estreia a 19 de março na RTP 2”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
2019

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/04/08/botto.aspx]