Disco Cantigas d’amigos, de Natália Correia, Amália Rodrigues e Ary dos Santos Valentim de Carvalho / iPlay, 1971 / reed. 2012.
Detalhe de capa, da autoria da pintora Maluda.
Todos os poemas são extraídos da antologia Cantares dos trovadores galego-portugueses, atualizada pela mão de Natália Correia (publicada em 1970) e ditos ou pela própria e por Ary dos Santos, ou cantados por Amália, com musica original de Fontes Rocha (exceto "Ermida de São Simeão", música de Alain Oulman).
Escreveu Ary dos Santos na contra-capa: «Era uma vez um livro muito bonito, que cheirava muito bem. Umas vezes a flores, outras vezes a urtigas. Mas a urtigas sadias. Tinha sido feito pela Natália Correia que o desenterrara de alfarrábios muito, muito velhos, com mãos de chama e de poeta. Escusado será, pois, dizer que o livro era de poemas. Eis senão quando, uma bela noite em casa da Amália, os tais poemas saíram das páginas e ganharam voz. Pareciam ervas dançando no meio da sala. O Fontes Rocha foi-os apanhando um a um e fez com eles um feixe de música. O Carlos, o Pedro e o Joel, ajudavam muito. E a Amália deu-lhes um nome como só ela sabe: Cantigas de Amigos. O resto? O resto foi apenas convívio e entendimento perfeitos. Às vezes, pela meia-noite, os poemas tinham fome e comiam sopa de coentros e arroz de bacalhau. O Rui e o João também apareceram e ficaram calados que nem ratos ao pé do Ribeiro, que é um mágico que sabe fazer música com luzes, enquanto este regia a orquestra. Depois, chegou a bruxa Maluda (que por sinal é bem bonita) a cavalo numa vassoura, com um pincel e uma tesoura. E zás, pôs-nos a todos na Idade Média. Parece uma história para meninos...»
►Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Littera: a presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais).
Agarro a madrugada como se fosse uma criança uma roseira entrelaçada uma videira de esperança tal qual o corpo da cidade que manhã cedo ensaia a dança de quem por força da vontade de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua que no meu Tejo acende o cio vou por Lisboa maré nua que desagua no Rossio.
Eu sou um homem na cidade que manhã cedo acorda e canta e por amar a liberdade com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada da lua cheia de Lisboa até que a lua apaixonada cresça na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota todo o mau tempo no mar alto eu sou o homem que transporta a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada colho a manhã como uma flor à beira mágoa desfolhada um malmequer azul na cor.
O malmequer da liberdade que bem me quer como ninguém o malmequer desta cidade que me quer bem que me quer bem!
Nas minhas mãos a madrugada abriu a flor de Abril também a flor sem medo perfumada com o aroma que o mar tem flor de Lisboa bem amada que mal me quis que me quer bem!
José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)
Acreditamos ser este um dos poemas mais belos que já se compôs para um fado, mesmo entre os muitos que o próprio Ary dos Santos escreveu.
Antes de nos determos no poema propriamente dito, cabe aqui comentar sobre a ligação entre o poeta e o fado.
Poderia parecer uma incongruência que um poeta tão revolucionário e tão avesso ao regime salazarista como foi Ary dos Santos viesse a compor poemas para o fado, gênero conhecido por esse mesmo regime como a “canção nacional”.
No entanto, Ary dos Santos soube compreender, como muitos outros poetas, que o fado, embora utilizado pelo regime ditatorial como um dos seus símbolos máximos, nada mais era, na verdade, que a manifestação mais pura da alma lisboeta, do seu povo e da própria cidade de Lisboa enquanto locus cultural.
Só que enquanto outros poetas tiveram seus poemas adaptados ao fado, ou vieram a escrever para o fado, tendo o fado tradicional e amétrica que o rege como primordiais, Ary dos Santos escreveu para o fado quase sempre sem imaginar a música que iria moldar suas palavras. Dessa forma, fugindo à métrica tradicional do fado – a redondilha maior ou a menor – Ary dos Santos acabou por renovar o fado, trazendo para o gênero, não só novos temas, mas mesmo quando trabalhando com temas já firmados no gênero, fazendo-o de forma diversa, mas, também trazendo através de seus poemas a oportunidade de que se criassem novas músicas para o gênero.
Mas, voltemos ao poema em questão.
Aqui, Ary dos Santos traça de forma magistral o entrosamento entre o ser humano lisboeta (aqui na sua versão masculina), a madrugada e a liberdade, sendo esse um poema que foi composto depois do abril de 1974.
O poeta agarra “a madrugada como se fosse uma criança” e vê o “corpo da cidade” como se fosse “uma videira de esperança”, esperança essa que leva o “homem da cidade” a trabalhar sem cansaço, ainda que o faça “por força da vontade”, ou seja por não ter outro destino – tema quase que imprescindível para um fado.
O poeta – incorporado em “homem da cidade” – segue pela madrugada de Lisboa terminando por “desaguar no Rossio”, numa das melhores metáforas que já se fez da noite lisboeta, pois quer se venha do Bairro Alto, da Lapa, de Alcântara, de Alfama, ou da Avenida da Liberdade, passa-se pelo Rossio.
Além disso, o “homem da cidade” trabalha desde cedo, mas o faz com alguma alegria, pois agora tem liberdade.
E vão surgindo outros elementos do fado, embora Ary dos Santos os aborde de forma bem diversa da tradicional: “lua cheia de Lisboa”; “velada canoa”; “gaivota”, e; “maré”. A lua se deslumbra e só então reflete navela, enquanto que a gaivota derrota o mau tempo, reflexo do povo, que como se fosse a maré a subir, invade a cidade em sobressalto, metáfora incrível da liberdade trazida pela Revolução de 1974.
A partir daí assistimos a um ciclo metafórico através do qual amadrugada se converte em manhã, passando esta a flor, que vai ser “desfolhada” – provável evocação de um dos seus maiores êxitos como letrista – transformando-se em um malmequer azul. Mas não se trata de uma flor qualquer, e sim do “malmequer da liberdade”, da flor de Abril”, da “flor sem medo”. E o ciclo é fechado com a integração da liberdade – novo parâmetro do povo português – ao mar – parâmetro de sempre do povo português, transformando-se Lisboa de cidade que malquis o poeta (a Lisboa da ditadura) em cidade que o quer bem (a Lisboa da liberdade).
Possivelmente nenhum outro poeta da sua geração, em nenhum outro momento, tenha sabido colocar em palavras tão bem a integração entre um “Portugal que foi” e um “Portugal que vai ser” como Ary dos Santos o fez nesse poema. E o facto de ser um poema que foi composto para um fado consegue concretizar de forma ainda mais eficaz essa integração.
Foi vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, paquete, estivador. Libertário e explosivo, acabaria por se tornar um dos mais populares poetas e letristas do seu tempo. Recordamos José Carlos Ary dos Santos nos 80 anos do seu nascimento
Ary dos Santos (7 de Dezembro de 1936 - 18
Janeiro de 1984) afirmou com veemência a sua virilidade de poeta. Pela voz de
Simone de Oliveira fez a apologia do corpo e do prazer femininos («Desfolhada
Portuguesa», 1969), certamente por distracção da Censura, arrebatando o primeiro
lugar no Festival RTP da Canção. Quatro festivais depois, arrasava a tourada na voz de Fernando Tordo e, na mesma
faena, vencedora, investia sobre a primavera marcelista e apelava à
resistência. As suas origens aristocrático-burguesas também não foram poupadas,
como testemunha o conhecido poema «O Burguês», figura tratada a ferros
sarcásticos. A salvo ficou A Bandeira Comunista (1977), corajosa e muito
pessoalmente hasteada: «o meu comunismo vem-me por via Czarista!».
Ary dos Santos: o nome – do poeta e declamador carismático, conhecido do
grande público como autor das letras de algumas das mais populares canções das
décadas de ’60, ’70 e começos de ’80 – não faz jus a uma personalidade
explosiva, irreverente, de humor sulfúrico e de grande turbulência imaginativa,
capaz mesmo de fazer detonar «O Bombista».
Nasceu em Lisboa, um ano antes daquele que sempre afirmou. Quando, com
apenas 16 anos, sai de casa em ruptura com o pai, traçara já, num soneto de um
livro dedicado à mãe («pela infinita dor de a ter perdido» pouco antes), um
programa de vida: «E canto na certeza do porvir,/ Que todo o mundo é meu e eu
vou partir/ À conquista dos reinos da poesia!». Mal sonhava o jovem Zé Carlos
que a poesia tinha reinos, uns mais nobres que outros. Natália Correia, que
manterá com ele uma relação de amor-ódio, não se cansará de lho lembrar.
Insuficientemente amadurecido, claro, esse primeiro livro que quis apagado
da sua bibliografia, Asas (1952), antecedendo bastante Liturgia do Sangue
(1963), considerada a sua estreia literária efectiva, incubava já o seu tom
excessivo e rasgado, o seu estilo transgressor, a rasar o libertário.
Compreensivelmente, quando em 1966 Natália Correia preparar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica,
celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário, Ary dos Santos não poderá ser
dispensado.
À saída de casa seguiram-se anos financeiramente difíceis, de embates
quotidianos, e sucederam-se empregos: vendedor de máquinas de pastilhas
elásticas, paquete na Sociedade Nacional de Fósforos, escriturário no Casino
Estoril e estivador (a crer no seu testemunho, nem sempre fiel). «Isto vai meus
amigos isto vai/ um passo atrás são sempre dois em frente» – dirá mais tarde no
poema «O Futuro», de «Tríptico do Trabalho». Chegou a
frequentar as Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa, mas
«com toicinho e talento ambas partes» (palavras do seu «Auto-Retrato») e uma
criatividade extraordinária, Ary dos Santos depressa as trocou pelo mundo da
publicidade, área que em Portugal revoluciona, alcançando reconhecido êxito.
A criação poética, com comprazimento no ludismo verbal e disponibilidade
metafórica, decorre paralela a uma vida profissional com cobranças difíceis e
artes de espantar. Adereços Endereços (1965), Fotos-Grafias (1970), As Portas Que Abril Abriu (1975), O
Sangue das Palavras (1978), 20 anos de Poesia (1983)
são algumas das obras daquele que reuniu num único terceto as três linhas que
reconhecidamente perfazem o todo que é a sua poesia: a interventora, a satírica
e a lírica: «Poeta de combate disparate/ palavrão de machão no escaparate/
porém morrendo aos poucos de ternura».
Tinha em preparação um livro de poemas intitulado As Palavras das
Cantigas (publicação póstuma, 1989), onde reuniu os melhores poemas
dos últimos quinze anos, e um outro intitulado Estrada da Luz – Rua da
Saudade, que pretendia que fosse uma autobiografia romanceada, mas não
houve tempo. O excesso, a solidão e o gim foram a mistura explosiva.
«Quando eu morrer – afirmou um dia – vai ser em glória. Vai a classe
operária toda ao meu funeral, e eu sentado no muro do cemitério, a vê-los
passar!». O desígnio cumpriu-se quase inteiramente.
Teresa Carvalho, "Ary dos Santos. Um transgressor à conquista dos reinos da poesia", https://ionline.sapo.pt/537479, 2016-12-09
O Café Chegam uns meninos de mota, Com a china na bota e o papá na algibeira São pescada marmota que não vende na lota Que apodrece no tempo e não cheira Porque o tempo É a derrota Chegam criaturas fatais Muito intelectuais tal como a fava-rica Sabem sempre de mais, Escrevem para os jornais com canetas molhadas na bica E a inveja (sim, a inveja!) É quanto fica Como quem está num chá dançante Duas velhas de penante depenicam uma intriga Debicando bolinhos vários Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga Chegam depois boas maneiras Com anéis e pulseiras e sapatos de salto São as bichas matreiras que só dizem asneiras São rapazes pescado do alto E o que resta É pó de talco Chegam depois os vagabundos Que por falta de fundos não ocupam a mesa Têm olhos profundos, Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza Mas o troco É a pobreza Chegam finalmente os cantores Os que fazem as flores neste mundo de gente São os modernos trovadores Que adormecem as dores numa bica bem quente Como quem está num chá dançante Duas velhas de penante depenicam uma intriga Debicando bolinhos vários Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga Chegam depois boas maneiras Com anéis e pulseiras e sapatos de salto São raposas matreiras que só dizem asneiras Sâo rapazes pescado do alto E que resta (Evidentemente que é) Pó de talco Chegam depois os vagabundos Que por falta de fundos não ocupam a mesa Têm olhos profundos, Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza Mas o troco É sempre a pobreza Chegam finalmente os cantores Os que fazem as flores neste mundo de gente São os modernos trovadores Que adormecem as dores numa bica bem quente
José Carlos Ary dos Santos fez história em Portugal. Deu
a voz a muita poesia portuguesa mas, e acima de tudo, compôs imensas canções que
fizeram do fado ser quem é atualmente. Acima de tudo, um género musical
identitário, com um repertório relativamente amplo e bem conseguido. Para este,
contribuiu muito o génio criativo, que, para além de proporcionar quatro
canções que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção, deu o mote
para o sucesso da carreira de fadistas consagrados atualmente, como Amália Rodrigues ou
Carlos do Carmo. Esquecido por via da sua morte precoce, é portador de um
legado que importa ser relembrado e bem louvado.
José Carlos Pereira Ary
dos Santos nasceu em Lisboa, no dia 7 de dezembro de 1937. Seria nesta mesma
cidade que viria a partir, aos 46 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1984.
Nasceu numa família de raiz aristocrata, descendentes do Conde de Palmela e do
Visconde de Manique, importantes figuras nobiliárquicas no século XIX. Começou
a sua formação no Colégio Infante Sagres, mas o seu comportamento irrequieto e
rebelde levá-lo-ia a ser expulso. Um breve período num colégio jesuíta a norte,
em Santo Tirso, permitiu que regressasse a Lisboa, onde estou no Colégio São
João de Brito. A morte da sua mãe e a relação distante com o pai – saiu de casa
ainda adolescente – obrigou-o a procurar o seu sustento como escriturário no
Casino Estoril e no ramo das vendas e da publicidade, onde usufruiu de algum
sucesso criativo. Ainda chegaria a ingressar na Faculdade, em Direito e, algum
tempo depois, em Letras, mas deixaria por terra os seus intentos académicos.
Lançaria, porém, o seu primeiro livro em 1963, com pouco mais de vinte anos,
com a coletânea de poesia “A Liturgia do Sangue”, assim como a peça “Tempo da
Lenda das Amendoeiras” no ano seguinte. A poesia seria algo incentivado pela
sua família desde cedo mas Ary não gostava do que escrevia, tanto que se
chateou quando a sua família publicou “Asas” (1953) quando este tinha somente
14 anos. Seis anos depois, a sua vida conheceria um novo contributo ao seu
caráter irascível quando se juntou à Comissão Democrática Eleitoral e ao
Partido Comunista, com quem pôde usufruir de sessões de poesia que cativaram o
seu gosto pela escrita e declamação.
A poesia e, a
juntar a esta, a música seriam as vias pelas quais chegaria a um público cada
vez mais amplo, ajudando a renovar o panorama da música portuguesa. Em muito
contribuiu ter composto quatro canções bem-sucedidas para o Festival da Canção.
“Desfolhada Portuguesa” (1969, interpretada por Simone de Oliveira), “Menina do
Alto da Serra” (1971, na voz de Tonicha), “Tourada” (1973, cantada por Fernando
Tordo), e “Portugal no Coração” (1977, dada a conhecer pela banda Os Amigos,
que juntou nomes como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Ana Bola) foram os
quatro êxitos que compôs, com um tom ousado para então, que tocava em temas
sensíveis e até tabu então. A estes, juntou-se uma relação de colaboração com
Tordo que ascendeu a mais de 100 poemas para músicas. “Estrela da Tarde”,
“Lisboa Menina e Moça” ou “Cavalo à Solta” são algumas das canções que viriam a
advir dessa frutífera parceria, às quais se juntaram outras, como “Os Putos” ou
“Quando um Homem Quiser”, aqui com a voz de Paulo de Carvalho.
Músicas como “Fado do
Campo Grande”, “Um Homem na Cidade”, “Namorados de Lisboa” ou “Fado Varina”
dariam um contributo forte para a consolidação do fado como género musical e
fariam parte de uma compilação de outra voz bem conhecida, a do fadista Carlos
do Carmo, num álbum de seu nome “Um Homem na Cidade” (1977, toda ela com
composições de Ary dos Santos). A particularidade da sua composição passava por
um registo leve mas cuidado, atento àquilo que seria, para si, a voz de um povo
e o que este merecia. “Ary Por Si Próprio” (1970) e, já depois da queda do
Estado Novo, “Poesia Política (1974) e “Ary por Ary” (1979) exemplificam essa
voracidade. A sua criação fora da música também merecia alguma atenção por
parte da televisão, como a representação de “Azul Existe” no Teatro Tivoli a
ser transmitida na RTP. A notoriedade que conseguiu fez com que se movimentasse
muito dentro do país, recitando poesia e envolvendo-se em eventos
protagonizados com outros cantores de intervenção, como Zeca Afonso ou José Mário Branco.
Nesta fase, já
havia chegado o 25 de abril, que marcou o fim do regime ditatorial e o início
da democracia, que abriu portas à afirmação da esquerda, à qual Ary dos Santos
procurou emprestar a sua voz e, por vezes, a sua presença em manifestações e
até assaltos de forças mais radicais. Tinha sido visado pela Censura,
nomeadamente com a publicação de livros de poesia como “Adereços, Endereços”
(1965), “Insofrimento in Sofrimento” (1969) e “Fotos-grafias” (1971), revendo
os ganhos de abril com “As Portas que Abril Ganhou” (1975). Cada vez mais
se foi tornando numa figura incontornável da cultura portuguesa enquanto foi
redigindo mais centenas de poemas e gravando inúmeras declamações, tanto de
prosa como de poesia, com nomes consagrados da música nacional, como José Mário Branco ou
até António Victorino d’Almeida, e os intérpretes Amália Rodrigues (destaque
para “Cantigas de Amigos, álbum de 1971 que também contou com a participação da
autora Natália Correia) e Tony de
Matos. Um dos destaques a solo desta senda discográfica foi a leitura de “O
Sermão de Santo António aos Peixes”, do Padre António Vieira, uma das obras de
referência do barroco português. Antes da sua morte se fazer chegar, prepararia
uma antologia dos últimos quinze anos da sua carreira lírica com “As Palavras
das Cantigas” (lançado postumamente em 1984) e não chegaria a concluir a sua
autobiografia, mais romanceada que meramente fictícia, em “Estrada da Luz – Rua
da Saudade”.
Seria vítima dos seus
vícios, do tabaco e, especialmente, do álcool e de gim, tendo sido vítima de
uma cirrose no início do ano de 1984. Foi uma perda inconsolável para a cidade
de Lisboa e para Portugal, mas a capital do país sentiu-a como ninguém deste
seu filho, que, mesmo sendo um choque para a falange mais conservadora do país
– era homossexual -, granjeou um estatuto marcante para a cultura popular. Em
Alfama, foi dado o seu nome a um largo e foi homenageada a sua residência de
longa data, na Rua da Saudade – rua que iria dar nome ao seu retrato literário.
As homenagens por parte de ex-colegas seus tornaram-se incontáveis, sendo
vários os discos de homenagem ao seu trabalho e à sua pessoa, nomeadamente de
Fernando Tordo ou de Carlos do Carmo. O “poeta do povo” chegaria à honra de
grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, no meio de todas essas
considerações.
Ary dos Santos
permanece, ainda hoje, como uma referência na composição musical em Portugal
nos meados do século XX. Influenciou a música popular, desde as típicas baladas
até ao fado, para além de se esforçar por aproximar a poesia do povo. O seu
envolvimento político e social é disso exemplo, socorrendo-se dos seus dotes
criativos para criar e entoar a poesia como música, com uma pujança que
ressoava na voz estridente de Ary. A sua memória, por mais que esquecido seja o
seu nome, permanece bem viva, ainda ao som dos atuais fadistas, mas também de
outros artistas lusófonos, admiradores da sua veia lírica. Uma veia que criou e
declamou com a força de poucos e com a virtude de ainda menos.
Não importa sol ou sombra camarotes ou barreiras toureamos ombro a ombro as feras.
Ninguém nos leva ao engano toureamos mano a mano só nos podem causar dano espera.
Entram guizos chocas e capotes e mantilhas pretas entram espadas chifres e derrotes e alguns poetas entram bravos cravos e dichotes porque tudo o mais são tretas.
Entram vacas depois dos forcados que não pegam nada. Soam brados e olés dos nabos que não pagam nada e só ficam os peões de brega cuja profissão não pega.
Com bandarilhas de esperança afugentamos a fera estamos na praça da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça e fazermos da tristeza graça.
Entram velhas doidas e turistas entram excursões entram benefícios e cronistas entram aldrabões entram marialvas e coristas entram galifões de crista.
Entram cavaleiros à garupa do seu heroísmo entra aquela música maluca do passodoblismo entra a aficionada e a caduca mais o snobismo e cismo...
Entram empresários moralistas entram frustrações entram antiquários e fadistas e contradições e entra muito dólar muita gente que dá lucro as milhões. E diz o inteligente que acabaram as canções.
José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas
(organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho).
A canção tem uma letra que foi claramente entendida em Portugal como uma metáfora em que se comparava a tourada ao decrépito regime ditatorial do Estado Novo, a canção é uma crítica à sociedade portuguesa daquele tempo:
Entram velhas doidas e turistas entram excursões entram benefícios e cronistas entram aldrabões entram marialvas e coristas entram galifões de crista.
Na letra faz-se uma crítica ao snobismo e hipocrisia da sociedade:
Entram cavaleiros à garupa do seu heroísmo entra aquela música maluca do passodoblismo entra a aficionada e a caduca mais o snobismo e cismo...
Critica-se as contradições existentes na sociedade e os lucros de alguns:
Entram empresários moralistas entram frustrações entram antiquários e fadistas e contradições e entra muito dólar muita gente que dá lucro as milhões.
Na letra faz-se uma alusão à chamada Primavera marcelista, uma pretensa mudança efetuada no governo de Marcelo Caetano (mudavam os nomes, por exemplo, censura passou a ter o nome de "exame prévio", mas na prática pouco mudava):
estamos na praça da Primavera.
Não se percebeu como é que a censura vigente na época, não conseguiu entender a mensagem transmitida pela letra que era uma crítica mordaz/sátira ao regime.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tourada_(canção)
A contestação ao Estado Novo e o 25 de Abril foram os momentos mais marcantes no que diz respeito à música de intervenção. Temas como "Grândola Vila Morena", de Zeca Afonso ou a "Tourada" de Fernando Tordo, tornaram-se intemporais e fizeram história.
Canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a revolução de Abril de 1974 como canções de intervenção são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada , possuem uma mensagem universalista, livre de qualquer constrangimento social.
A canção de intervenção tem um valor pedagógico notável, na forma como alerta o povo para as prepotências existentes, que constrangem o seu dia-a-dia. Não raro, a verdadeira mensagem era "camuflada" nos seus versos para poder passar pelo crivo da censura.
Em 1973, mais uma vez ganhou o Festival RTP da Canção com “Tourada”, uma das letras mais polêmicas entre as que ganharam o grande prêmio em toda a história do Festival. Na verdade, entre as concorrentes deste ano contavam-se quatro canções de autoria de Ary dos Santos.
É preciso abrir aqui um parêntesis na trajetória de Ary dos Santos para comentar-se que embora ele tivesse encontrado vários intérpretes para seus poemas, nenhum deles – nem mesmo Amália Rodrigues – foi tão importante para sua obra como poeta como o foi Carlos do Carmo. Entre as inúmeras colaborações entre os dois destaca-se, sobretudo, “Estrela da Tarde”, uma das mais belas composições de toda a música portuguesa.
Carlos do Carmo define assim Ary dos Santos (Ary dos Santos: O Homem, o poeta, o publicitário: fotobiografia, Alberto Bemfeita, Lisboa, Caminho, 2003. p. 81): “... insubstituível, não me refiro só ao aspeto afetivo, à amizade, refiro-me igualmente ao lado profissional. Tenho a convicção de que, num momento muito particular da nossa história (Abril de 74) – sendo um momento de libertação, tem cicatrizes ainda hoje difíceis de avaliar dada a sua proximidade, e que envolvem inúmeras contradições de sentimentos, ódios, paixões, encantos e desencantos – Zé Carlos fez com que a canção portuguesa simples, a canção do quotidiano, que poderão chamar de ligeira, nunca mais fosse a mesma desde que resolveu escrever para ela. ... Tenho vindo a constatar que algumas das pessoas que escrevem para canções, têm talento, mas estão muito aquém do que ele escrevia.
… Dizia que era poeta e nada percebia de música, mas de facto ele era um músico excelente, pela capacidade que tinha de entender a harmonia das palavras nas canções.” E ainda: “O Zé Carlos e o Fernando Tordo formavam uma dupla perfeita. … Esses casamentos são raros, só acontecem a espaços. Por exemplo, no Brasil houve duplas assim: a do Vinícius de Morais com o Tom Jobim ... O Zé Carlos tinha um outro dom importante. Na Lisboa dele, para além do figurino arquitetónico da cidade, estava sempre associado o elemento humano.
As figuras de Lisboa, que ele sabia descrever espetacularmente, devia-se à sua grande capacidade de observação. Ele era o que nós vulgarmente chamamos de umaesponja. Absorvia tudo o que o cercava.
... Outra das suas facetas por que sempre tive enorme apreço era o lado frontal. A frontalidade com que assumia a sua homossexualidade: sem tabus nem esquemas. Assumida numa época muito difícil, de grandes transformações sociais na vida portuguesa. Foi uma atitude de coragem que o dignifica e que não é para qualquer homem.”