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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade

Poemas de Eugénio de Andrade Lidos Pelo Autor, 1972

 

LETTERA AMOROSA

 

Respiro o teu corpo:

sabe a lua-d’água

ao amanhecer,

sabe a cal molhada,

sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,

sabe ao sol dos rios,

sabe a rosa-louca,

ao cair da noite

sabe a pedra amarga,

sabe à minha boca.

 

Eugénio de Andrade, Mar de setembro, 1977 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017


 ***

Adentrando pelo título, observa-se em “Lettera Amorosa” a configuração de uma carta de amor que, de certa forma, é o próprio corpo lido pelo poeta que o sabe de cor e que o colore para o leitor usando o branco (lua, cal, luz) e o rubro (sangue, cair da noite).

A construção em redondilhas é responsável pela simetria do poema que sugere a perfeição do corpo físico evocado. Tal construção, de fácil assimilação, envolve o leitor num movimento rápido e ritmado, fazendo-o se sentir, também, sabedor do corpo/poema. Às vogais fechadas do primeiro verso (Respiro o teu corpo), sucedem, ao longo do poema, vogais abertas (sabe, d’água, molhada, nua, rosa-louca, pedra amarga) que funcionam como a entrega do corpo físico/textual ao poeta/leitor.

A repetição do verbo “sabe” no início dos versos 2/4/5/6/8/10/11 promove um anelo graças ao ritmo dado ao poema. A recorrência é um “modo tático pelo qual a linguagem procura recuperar a sensação de simultaneidade” e demonstra que “se está a caminho e que se insiste em prosseguir” (BOSI, 2000, p. 41). Assim, por meio da reiteração do som/palavra materializa-se a vertigem do ato de exploração/leitura amorosa do corpo/poema.

A cada “sabe” o significado se condensa em saber e sabor que o poeta degusta, sinestesicamente, com os olhos e a inteligência. Na tradição filosófica do haiku, o sentir “é alguma coisa que está entre o pensamento e a sensação, o sentimento e a idéia” (PAZ, 1991, p. 197). Essa disposição oriental encontra-se no primeiro verso, no qual há a integração do poeta/leitor com o corpo/texto assim que ele o “respira”, ou seja, a sensação olfativa é distribuída ao paladar (sabor) e ao intelecto (saber).

As imagens elementares da terra (cal), da luz, do vento (brisa), da água (rio) são evocadas para compor uma pluralidade na unidade harmônica do corpo/natureza/texto. Diz Eugénio que “a terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulharam desde a infância no mundo mais elemental” (1990, p. 288). Assim, as metáforas elementares são, nesta poesia, imagensgeratrizes, pois geram uma nova imagem adjetivada, muitas vezes dissonante racionalmente, mas sensivelmente harmônica.

É exemplar a imagem “luz mordida” que funde a abstração da claridade ao ato concreto de morder, o qual contém o escuro da boca fechada e a fome, imagem erótica do desejo. Já “brisa nua” humaniza a natureza à medida que torna visual o elemento “ar” por meio da sensação táctil: ao associar o frescor da brisa ao descritivo nua, o poeta potencializa a sensação ao máximo, gerando a imagem de um arrepio. A normalidade sofre um abalo com a cópula da imagem arrepio (imagem-gerada pelas imagens-geratrizes) ao sabor, gerando uma imagem virtual da língua sobre o corpo. Lembrando Bosi: “A realidade da imagem está no ícone. A verdade da imagem está no símbolo” (2000, p. 46).

A imagem do nenúfar “lua d’água ao amanhecer” recria, a partir dos elementos luz (contido em lua) e água, uma reação quase química no poema, dando-lhe claridade (no branco da flor) e umidade (no orvalho do amanhecer). Não se pode esquecer que na filosofia oriental “o orvalho, a névoa, as nuvens e outros vapores estão associados ao fluido feminino” (PAZ, 1979, p. 94). Nessa fusão surge o corpo desejado transfigurado pelo corpo poemático: branco e molhado, acordando para o poeta/leitor. Essa imagem é reiterada na seguinte: “cal molhada” é a parede branca das construções portuguesas escorrendo a água da chuva, como o corpo fluindo e sugado no poema.

Mas, a tela eugeniana recebe, ainda, pinceladas de um vermelho vivo, dos “sangue dos rios” e “rosa-louca”. Na primeira imagem, o sangue como essência da vida potencializa a água doce dos rios, símbolo da vida para Bachelard, que pulsa/corre nas veias humanas como o rio no seu leito. Nessa recriação, todo o sabor sensível e intelectual do movimento erotizado da vida. Já em rosa-louca, a efemeridade conferida ao termo rosa junta-se ao adjetivo que representa o desespero da paixão, materializado na passagem do dia para a noite, do branco para o vermelho da flor. E, passagem, também, do doce para o “amargo” da “pedra” que representa a frieza do fim e a possibilidade do sabor e concretude em sua boca.

 

Geruza Almeida, “Eugénio de Andrade: um duplo erótico”. Labirintos (UEFS), v. 2 , p. 1 - 16 , 2007. ISSN: 19808895.

 

 

Poderá também gostar de:

 



“Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-18. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/lettera-amorosa-eugenio-de-andrade.html



quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Urgentemente, Eugénio de Andrade

Ilustração do poema “Urgentemente”, por Sónia Oliveira.
(in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013)

 

URGENTEMENTE

 

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

 

Eugénio de Andrade, Até amanhã, 1956 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017



 


I - Linhas de leitura do poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade

 

Este poema é uma mensagem da urgente construção do amor, da permanência na unidade, imperativa em todos os tempos e lugares e, por isso, meta-histórica e universal.

 

Os elementos do discurso que a nível morfológico revelam a intensidade do apelo:

«É urgente» (vv. 1,2,3,7,9,13);

A utilização dos verbos «inventar», «multiplicar» e «descobrir» reforçam não só a ideia de urgência, mas também da necessidade de construção e de multiplicação desse amor...

 

Os elementos que recriam o amor:

«Um barco no mar» (que pode simbolizar a salvação);

«inventar alegria»;

«multiplicar os beijos, as searas» (aumentando a amizade, a felicidade e a fraternidade para que frutifiquem como as searas);

«descobrir rosas e rios e manhãs claras» (a beleza das rosas, a presença do outro, a alegria da claridade da manhã);

«permanecer» (não desistindo da construção desse ambiente de fraternidade e de amizade):.

 

Os conceitos que se opõem ao amor:

É necessário destruir (por serem contrárias ao amor): «certas palavras»; «ódio, solidão e crueldade»; «alguns lamentos»; «muitas espadas»;

É preciso acabar com o «silêncio» e com a «luz impura».


Valor semântico-simbólico de alguns vocábulos:

barco: a viagem, a salvação;

espadas: guerra, ódio, violência;

silêncio: solidão, falta de comunicação;

rosas: beleza, pureza, amizade;

manhãs claras: alegria, pureza, paz.

 

Divisão em partes e assunto de cada parte:

O poema pode dividir-se em quatro momentos, de acordo com a organização estrófica e com os verbos utilizados.

 

A primeira estrofe surge como apelo geral à urgência (da descoberta das «rosas e rios / e manhãs claras») pois só ele pode salvar (ser «um barco no mar»);

 

na segunda estrofe, o apelo liga-se à necessidade de «destruir» tudo o que impede a construção desse amor – dessa liberdade (portanto, a urgência da destruição de «certas palavras» como «ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas»);

 

na terceira parte, surge a necessidade de «inventar», «multiplicar» e «descobrir» o que é belo e dá sentido à vida – alegria, beijos, searas, rosas e risos e manhãs claras – e que permite construir ou reconstruir um mundo mais autêntico e fraterno (em síntese, a 3ª estrofe marca a necessidade da invenção da «alegria» e do amor – «multiplicar os beijos, as searas»);

 

a última estrofe justifica, de modo mais explícito, a postura ética assumida, já que a imagem simbólica do silêncio abafa a mensagem das palavras («cai o silêncio nos ombros») e a luz perde o seu carácter benfazejo para se tornar impura, causando a dor. Portanto, na última estrofe, em forma de conclusão, o poeta volta a referir o que impede o amor e faz «doer», para dizer que não se pode desistir, perder a esperança, que é forçoso «permanecer».

 

Linguagem:

Linguagem rica, variada e sugestiva;

Funções apelativa e emotiva;

Vocabulário utilizado (É urgente, amor, barco, inventar alegria, multiplicar os beijos, rosas e rios, permanecer...) transmitindo a ideia de busca do amor, de construção de paz e de liberdade;

Objetivo a atingir: convencer da urgência do amor...

 

Recursos estilísticos:

anáfora (vv. l, 2,3)

repetições

metáfora (v. 2)

hipérbole (vv. 3-6) (vv. 11-12)

aliterações /s/ (vv. 3-6)

aliterações/r/(vv. 7-10)

antíteses (destruir / inventar) (amor / ódio)

personificação (v. 12)

sinestesia («descobrir rosas e rios»)

 

O poema à luz do título da obra (Até Amanhã).

Sem amor não há futuro...

Até Amanhã garante essa margem de esperança e reafirma a persistência na invenção do amor...

 

(adaptado de: Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano, pp. 187, 406, 407; Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 127-128)

 

 

II - Lê atentamente o poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade, e responde, de modo estruturado, às perguntas abaixo apresentadas.

 

1. Este é um poema que com certeza já conhecerás. Revisita-o através desta análise.

1.1. Propõe uma interpretação simbólica para o elemento “barco no mar”.

 

2. Explica o sentido do verso “É urgente destruir certas palavras”, clarificando o que “É urgente destruir”.

3. Interpreta a terceira estrofe, tendo em conta o valor simbólico e metafórico das palavras.

4. Relê a quarta estrofe.

4.1. Explicita o significado dos dois primeiros versos “Cai o silêncio nos ombros,/ e a luz impura até doer”, relacionando-os com o conteúdo da estrofe anterior.

4.2. Mostra como estes dois versos se poderão articular com a linha de leitura “Representações do contemporâneo”.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 36 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Green God" e "Canção", de Eugénio de Andrade, 2021-04-1. Atividade e Recurso Complementar disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/36


III – Comentário de texto

Elabore um comentário global do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- tema e sua relação com o eufórico/disfórico;

- expressividade das formas verbais;

- simbologia dos nomes;

- recursos estilísticos relevantes.

 

Proposta de correção do comentário de texto:

Neste poema de Eugénio de Andrade ressalta um tom apelativo e são vários os elementos discursivos que revelam a sua intensidade.

Tendo como tema fundamental o apelo que lança a toda a humanidade, não será de estranhar que se percecione, desde o título, um grito que reclama a harmonia. Além do mais, é visível a oposição entre os aspetos negativos e os positivos, contrapondo-se, deste modo, os elementos eufóricos e disfóricos.

Além da repetição sistemática do vocábulo "urgente", os verbos "inventar", "multiplicar" e "descobrir" sugerem, também, a necessidade de expandir o amor e contribuem para reforçar a ideia que defende desde o início: espalhar a harmonia no mundo, começando pelos homens.

Há, ainda, outras expressões que remetem para a necessidade de fazer prevalecer o amor sobre a humanidade. É o caso da expressão "um barco no mar", a sugerir a salvação, uma vez que esse sentimento também pode salvar o Homem da destruição iminente; o mesmo é sugerido pelas expressões "inventar alegria", "multiplicar os beijos, as searas", "descobrir rosas e risos / e manhãs claras" que, para além de simbolizarem o eufórico, servem igualmente para despertar a vontade de aumentar a amizade, a felicidade e a fraternidade.

A última expressão simboliza ainda a beleza, a alegria e a presença do outro.

O verbo "permanecer" conota a insistência e a necessidade de se construir um ambiente fraterno e amigável.

Todavia, há muitos elementos que sugerem a oposição ao amor e que, por isso, é preciso destruir, destacando-se o "ódio / solidão e crueldade / alguns lamentos / muitas espadas", o "silêncio", a "luz impura". De facto, a negatividade ou disforia que envolve este vocabulário serve para destacar, novamente, a vantagem da sobreposição do amor, em detrimento destes aspetos negativos que pairam no mundo.

E se os vocábulos usados sugerem o disfórico, os verbos também adquirem valores opostos. Assim, “inventar" e "permanecer" remetem, respetivamente, para a necessidade de voltar a construir a amizade e a fraternidade, partindo dei nada para ai não existir impureza, e para a ideia de persistência, de luta constante, para que a esperança não se apague e "a luz impura" se imponha "até doer". Já o verbo "destruir" encerra uma conotação negativa, embora no contexto se reporte à destruição de todos os aspetos impeditivos à implantação desse amor, assumindo, deste modo, um valor positivo.

Há outros termos que convém descodificar, dado que o seu valor semântico se associa à mensagem que se pretende transmitir. Destaque-se, por exemplo, o substantivo "barco" como símbolo da viagem que permitirá a fuga e a consequente salvação, enquanto "espadas" Indicia sentimentos contrários e sugere a guerra, o ódio, a violência; a palavra "silêncio" remete para o isolamento, a solidão, a falta de comunicação; já "rosas" conotam beleza, harmonia, amor, pureza e os "risos" e as "manhãs claras" apontam para a felicidade, a alegria e a paz.

Sendo Eugénio de Andrade considerado o artista da palavra, não é de estranhar que utilize uma linguagem rica e variada, selecionando o vocabulário que lhe permita transmitir o seu apelo e as razões por que o faz. Além do mais, serve-se de um conjunto de recursos de estilo que servem a sua intencionalidade: a anáfora e as repetições, a traduzir a insistência do apelo; as antíteses, para apresentar duas realidades distintas e permitir a opção pela mais benéfica para a humanidade; as aliterações em "s" e em "r", a sugerirem a reflexão e a preocupação; as hipérboles, usadas primeiramente como forma de acentuar a destruição e depois para acentuar a urgência do amor; a metáfora, que serve para imprimir o valor simbólico à mensagem.

Em conclusão, poder-se-á afirmar que todos os processos usados pelo autor concorrem para clarificar a mensagem que o poema encerra: sem amor não há futuro nem harmonia no mundo. O próprio título da obra "Até amanhã" conota a esperança e a persistência da necessidade de inventar e construir o amor.

 

Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003. ISBN: 972-41-3415-6

 



 IV - Oficina de escrita criativa 

O seguinte fragmento trata-se de uma transcrição incompleta do poema de Eugénio de Andrade.  Completa-o de forma expressiva. 


É urgente o Amor,

É urgente ……….…….

 

É urgente destruir certas palavras

……….……,

alguns ……….……,

muitas ……….…….

 

É urgente ……….……,

multiplicar ……….……,

é urgente ……….……

e ……….…….

 

……….……

……….…….

É urgente o amor,

É urgente ……….…….

 

 

Poderá também gostar de:



Urgentemente, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-17. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/urgentemente-eugenio-de-andrade.html



quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Poema à mãe, Eugénio de Andrade


 

POEMA À MÃE

 

No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe.

 

Tudo porque já não sou

o menino adormecido

no fundo dos teus olhos.

 

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura.

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos.

 

Mas tu esqueceste muita coisa;

esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha — queres ouvir-me? —

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal…

 

Mas — tu sabes — a noite é enorme,

e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas.

 

Boa noite. Eu vou com as aves.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 



 

Linhas de leitura do “Poema à mãe”, de Eugénio de Andrade

O poeta sente-se dividido entre a necessidade vital de cortar o cordão umbilical que prendia a criança à esfera protetora da mãe e a pena de ter de o fazer.

Por isso, o seu discurso é meigo, persuasivo, justificativo, e não um grito impetuoso de adolescente que rompe abruptamente com as amarras da servidão.

O fantasma da traição filial persegue o sujeito, que se debate com a dificuldade de se desembaraçar do abraço superprotetor e narcísico de quem devia conceber a maternidade como uma dádiva ao mundo e não como a posse egoísta de um objeto. Daqui a consciência da relação filial como um amor infeliz (v.11), em face da incompreensão do natural crescimento. As queixas, ainda que duras (v. 10), acerca dessa incompreensão, expressas através de imagens visuais do retrato adormecido (v. 4) e da perda das rosas brancas no retrato da moldura (vv. 12-13), são compensadas pela reiteração de fidelidade filial, apesar das mudanças verificadas; «às vezes ainda sou o menino / que adormeceu nos teus olhos; // ainda aperto contra o coração / rosas tão brancas / como as que tens na moldura.» (vv. 23-27)

As rosas brancas da inocência, se bem que perdidas, ainda são nostalgicamente recordadas, juntamente com os sinais auditivos da voz materna, associada à memória do conto popular: «ainda oiço a tua voz: Era uma vez, uma princesa».

E, apesar do impulso natural de crescer e da sedução dos novos «leitos onde o frio não se demora» (v. 7) apesar da imensidade da noite, a emancipação adolescente é negativamente conotada com a exploração dos olhos pelas aves (v. 34).

Por isso, ao sair da moldura (v. 33) do quadro infantil, ao deixar as rosas (v. 37) da inocência, ao partir com as aves (v. 38), o sujeito guarda no seu interior a voz materna como símbolo da persistência de um passado. 

(Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 122-123)

 ***

Note que a diferença fundamental é a atividade passada do Eu/Tu em confronto com a fixidez (confinada ao espaço da «moldura») do presente.

Note o conservar do passado «dentro de mim» (v. 36), ou seja, a transformação dada apenas como exterior («todo o meu corpo cresceu» (v. 32)). Assim se justificará a presença dessa mãe irremediavelmente perdida, mas mantida presente, como a chama de Vesta1, em toda a obra de Eugénio de Andrade.

(In Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 76)

__________

Vesta – brilhante e pura como a chama que a simboliza, é a mais bela das divindades romanas. Para os Latinos personifica a Terra e o Fogo; mas os Romanos conservaram-lhe apenas a segunda atribuição, reduzindo-a, todavia, ao lume exclusivamente familiar e dos templos. (in Mitologia Geral I, Mª Lamas, Ed. Estampa, 1991, p. 362)

 

 

Maria dos Anjos Fontinhas
(mãe de Eugénio de Andrade)

 

Texto de apoio

O trabalho contínuo de transubstanciação que a poesia eugeniana realiza da própria sensação de perda do instante − frequentemente agregada à dor da separação da mãe − revela-se em imagens fugidias e evanescentes como essa (bem como os “sonhos tresmalhados” do poema), ou como, por exemplo, as “pedras” lançadas ao horizonte em “Abril”, poema imediatamente posterior a “Os amantes sem dinheiro”, no qual novamente encontramos uma criança em meio às primeiras descobertas:

Abril

Brinca a manhã feliz e descuidada,

como só a manhã pode brincar,

nas curvas longas desta estrada

onde os ciganos passam a cantar.

Abril anda à solta nos pinhais

coroado de rosas e de cio,

e num salto brusco, sem deixar sinais,

rasga o céu azul num assobio.

Surge uma criança de olhos vegetais,

carregados de espanto e de alegria,

e atira pedras às curvas mais distantes

– onde a voz dos ciganos se perdia.

(ANDRADE, 1966, p. 66)

Embora o cenário seja de infância e de êxtase paradisíaco, em que a própria manhã de “Abril” brinca junto à criança, enleada aos elementos da paisagem “no cio”, há o contraponto da fugacidade do tempo. A estrada impõe a movimentação do espaço e nela “ciganos” passam a cantar, cujas vozes já se perdem na “curva”. “Ciganos”, sem morada permanente, são passageiros como as “aves” e, no poema, produzem música que se confunde com imagem, já que o menino lança pedras ao espaço como se pudesse, literalmente, enxergar o som subindo aos ares. Música e imagem são novamente distinguidas como unidades essenciais da poesia e, desintegradas aqui, operam, assim como a “ave” no poema anterior, um retorno à enformação básica da palavra poética, permitindo que o leitor tenha acesso à emoção pura, à intuição, a uma dada excitação espiritual ou perceção sensorial que estão na base de qualquer formação simbólica.127

Desse modo, o poema poderia sugerir a visão do menino-poeta diante da descoberta de sua vocação, que atira pedras à música-imagem, como se pudesse tocá-la, e vislumbra um horizonte em ascensão, desmanchando a plenitude de “abril à solta nos pinhais”.

Dentre todas essas imagens fluidas e recorrentes, a “ave”, sendo o elemento nuclear nesse livro, encaminha, assim como o “fruto” no volume anterior, a uma visão da conceção poética eugeniana. Se considerarmos a themata da arte poética tal como listada por Lubomir Dolezel128, a “ave” oferece uma reflexão bastante vasta sobre os domínios e alcances da linguagem poética, além de apontar para o problema da criatividade, já que ela frequentemente se associa à mãe, figura identificada, desde o prefácio, como principal motivação do poético nesse segundo livro da coletânea.129

No quarto poema do livro, “Canção para minha mãe”, em que a figura materna é diretamente nomeada, encontramos novamente a imagem de um pássaro, porém ligado agora a uma cena de outono e esterilidade − ainda que a criança apareça juntando os cabelos destrançados da mãe, triste a cantar. Dos braços dessa mulher escorriam “frutos maduros de outono” e “águas mortas de abandono”: “Era o tempo das gaivotas / mas o mar tinha secado”, e depois: “Gaivotas não as havia / e o mar tinha secado.” (1966, p. 67).130

O ambiente de esterilidade e ceticismo também está presente em “Apenas um rumor”, poema 20, em que a “palavra” é equiparada ao “rumor” de um bando de “gaivotas”:

Apenas um rumor

... E no teu rosto aberto sobre o mar

cada palavra era apenas o rumor

de um bando de gaivotas a passar.

(ANDRADE, 1966, p. 88)

A expressão adverbial “apenas” denota a fragilidade e talvez a impermanência do canto e do instante pleno. Esse poemeto assemelha-se aos versos do poema 19, intitulado “Outro poema para o meu amor doente”: “Outono − pássaro de melancolia/ num céu sem cor que não promete nada” (1966, p. 87), em que o “céu”, como o “mar” do poema acima, afigura-se como espaço de abertura, mas que, desta vez, não encontra o fluir expansivo da “ave”.

Em “Canção breve”, encontramos uma referência indireta aos “gestos” do poema “Os amantes sem dinheiro”, agora inseridos no contexto de um amor triste e antigo, que poderia muito bem incluir a relação materna:

Tudo me prende à terra onde me dei

[...]

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança ou o calor

de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

(ANDRADE, 1966, p. 71)

“Amor a escorrer melancolia” lembra a imagem da mulher triste de “Canção para minha mãe”, de cujos cabelos, braços e pernas também escorriam, como vimos, elementos melancólicos, como “frutos de outono” e “águas mortas de abandono”. Os “dedos com restos de ternura” e o “triste amor que há em saber que a vida pouco dura” trazem à cena a imagem do pássaro a nascer dos dedos dos amantes e a sensação de passagem e transformação que o poema “Os amantes sem dinheiro” suscita, de modo que, tanto naquele quanto neste poema, a figura materna permanece como elemento fulcral, mesmo quando não nomeada.

Do mesmo modo, “Elegia”, poema 13, parece se dirigir à mãe e às lembranças desse amor doído, já que estabelece diálogo direto com “Poema à mãe”, 15 do livro:

[...]

Ainda sabemos cantar.

Só a nossa voz é que mudou:

somos agora mais lentos,

mais amargos,

e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha

de um corpo a latejar de plenitude.

Tu quebraste-lhe o ritmo

ao partires um a um

os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:

setembro traz ainda

um fruto em cada mão.

Mas os homens, as aves e os ventos

já não bebem em ti a direção.

(ANDRADE, 1966, p. 77)

Novamente há alusões aos “gestos”, porém aqui acompanhados de ceticismo e melancolia. As “aves” reaparecem, assim como os “ventos” e os “frutos” do poema de abertura do livro (“Conselho”), entretanto, já deslocados do antigo e prometido furor poético, apontando agora para os desgastes dos mecanismos outrora associados à plenitude na infância e à relação materna: “Os homens, as aves e os ventos/ já não bebem em ti a direção”.

O primeiro verso do trecho selecionado acima também poderia sugerir relações com a mãe do poema, frequentemente associada à “primeira música” que tanto motiva a gênese de sua poesia. Contudo, as condições favoráveis à poesia agora são descritas em termos de cansaço e esgotamento. Há uma mudança de direção dos mecanismos de inspiração. A “mãe” não provê mais o “fruto”, embora ele ainda esteja presente em “cada mão”. Há uma certa “quebra de ritmo” e quebra dos “ramos da juventude” que oferecem agora ao eu lírico uma reflexão dolorida sobre os efeitos da velhice, do esquecimento, da distância natural entre mãe e filho.

Em “Poema à mãe”, 15 do livro, as queixas sobre a relação viciada entre mãe e filho são explícitas: o sujeito lamenta o esquecimento por parte de ambos, em que talvez haja se perdido o conhecimento do “verdadeiro ser” que os dois experimentaram intensamente durante o período pleno de descobertas e encantos. Esse conhecimento profundo e rico já não cabe mais na imagem rígida e intacta de um “retrato”.

menino que “ama as rosas brancas”, signo de pureza que remete à inocência da infância131. Ele ainda ouve a “voz”, o cantar da mãe, mas o presente é distinto e requer novos gestos. O sujeito então se despede e, em um ato de transfiguração de signos do passado, ou de rasura do “retrato”, permuta “as rosas brancas” por “aves”. Eis dois signos que se associam tanto à relação materna, como vimos, quanto ao cantar poético132, sempre vinculado à questão da memória neste livro.133

A memória é referida por meio de um paradoxo: de um lado é representada por retratos, recordações rígidas e imóveis que mal interferem no presente; e de outro por certas imagens “móveis” do passado, como as “aves” a se desprenderem dos gestos, capazes de evocar certa lembrança do poético, da vivência da totalidade dos elementos, da movimentação da palavra, cuja natureza metamórfica atualiza a experiência e supera a corrosão do tempo, apreendendo a multiplicidade da vida. Assim, por meio de um signo concreto como “aves”, a poesia eugeniana sugere o abstrato material da memória em suspensão, capaz de ser mobilizado pelo fazer poético. Nesse espaço silencioso e confuso “voam” imagens e sons primitivos que segredam os primeiros milagres. No impreciso ponto de encontro entre o presente e o passado acham-se as aves suspensas de outrora, vigiando a promessa de um dia se realizarem.

Ao despedir-se da mãe e dizer que segue “com as aves”, o eu lírico toma a determinação de sair da “moldura” do retrato para transfigurar-se em canto. Afirma a sua vocação de poeta e opta pelo caminho incerto e instável das “aves”, porém de imensurável libertação.

Por conseguinte, na imagem que a mãe tem do filho já não cabe o erotismo de “leitos onde o frio não se demora”, tanto quanto a perda da juventude da mãe se tornou insuportável ao filho (como o verso “tu quebraste [...] os ramos todos da tua juventude” do poema anterior também sugere). Contudo, tal esquecimento (tanto da mãe que esquece que o filho cresceu quanto do filho que também esquece que ela envelheceu) é superado pelo canto: “Queres ouvir-me? / Às vezes ainda sou o retrato [...] / ainda aperto contra o coração rosas tão brancas [...] / ainda oiço a tua voz. / Não me esqueci de nada mãe”.

O eu lírico simbolicamente mata a mãe, deixando-lhe as “rosas brancas”, como em um ritual fúnebre, mas somente para poder rememorar e recriar tudo de novo no espaço do poema. Na permuta das “rosas brancas” por “aves”, o canto atualiza a rica experiência do passado, mobilizando a memória, que oferece resistência à implacabilidade do tempo quando vivida de maneira a atuar sobre o presente. Assim, o canto pretende reconfigurar o passado e atribuir-lhe novos sentidos pertencentes à vida adulta, de modo a manter-lhe a potência criadora.

Em Eugénio de Andrade, as representações da memória confundem-se com as representações da palavra poética, o que evidencia a conexão profunda entre o processo de rememoração e o fazer poético. A palavra depende da plenitude vivida pelo sujeito, que, motivado pelo amor e pela entrega, colhe os registros de um presente absoluto. A memória preserva os instantes ontológicos − pois é a memória que constitui o ser − , e o germe da palavra nasce para o poeta: levanta voo como aves, penetra os espaços, assim como a “luz”, “o rumor”, “o canto dos ciganos” sumindo ao longe. Das imagens revisitadas pelo sujeito poético depreendem-se elementos fugazes, que partem do momento registrado para penetrar em uma espécie de hiato que a memória produz na relação entre o passado e o presente.

É a consciência do próprio ato poético que estabelece a união ontológica entre os tempos de outrora e os tempos recentes, para que o sujeito instaure o sentido de sua própria existência. A confeção da poesia é feita a partir dessas correspondências estabelecidas pelo sujeito poético, que, ao atuar sobre as memórias, resgata esses elementos transitórios como elos entre o passado e o presente, e reconstitui, em seu cantar, a unidade perdida, experimentada na infância.

Desse modo, a palavra poética marca essa ausência, ao mesmo tempo que refaz o passado paradisíaco: preenche e produz ausência, sempre. Eugénio de Andrade firma a sua vocação de poeta ao reconstituir-se como sujeito liberto da mãe e ao tomar consciência do próprio ato do fazer poético, o qual demanda mobilização da memória e atuação sobre ela. É para esse novo espaço de consciência que segue o poeta em perpétua busca de sua própria sentença: “Boa noite. Eu vou com as aves!”. 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

  

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Poema à mãe, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-16. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/poema-mae-eugenio-de-andrade.html



terça-feira, 15 de novembro de 2022

É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade

 


 

É todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas — uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa do Adro.

Minha mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas mesmo que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.

Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e a faca embrulhados num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir — é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.

Ora um dia, quando me aproximei da arca — sabe-se lá se para dar a entender a minha mãe que queria pão — estava lá em cima uma coisa que eu nunca tinha visto. Em bicos de pés, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que sucedeu foi maravilhoso: de dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe cantar. A mãe era nesse tempo uma mulher triste.

Da casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse quarto que a mãe me ensinou a rezar:

Senhora Sant’Ana,

Tapai-me cum véu,

que eu sou pequenino,

levai-me prò Céu.

Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:

— Ó Ti Ana! Ti Ana!

Faça-me um favor!

Que é? — perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:

— Empreste-me a pele

pra fazer um tambor!

Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim.

Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. — Ó mãe, mãe… — Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. — Ó mãe, mãe… — E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. — Ó mãe, mãe… — E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. — Ó mãe, mãe… — O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. — Ó mãe, mãe…

E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.

 

Eugénio de Andrade, prefácio a Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

LINHAS DE LEITURA

—A importância deste texto vem do registo de elementos de uma memória arcaica, presente nos versos do livro que precede e na globalidade da obra de Eugénio de Andrade.

Note nele:

—a presença da mãe como ligada à Terra e ao natural;

—a origem na infância, e na perca do contacto exclusivo com a mãe, da alternância entre prazer e des­prazer, alegria e lágrimas;

— as cantilenas religiosas e as rimas populares que continuam o ritmo embalador desta primeira infância de conchego maternal, e que vão manter-se no começo do poetar adulto (cf. «Canção»);

— a casa sentida como lugar de euforia enquanto permite a fusão com a mãe (cf. estado pré-natal), e de angústia quando a mãe está ausente e inacessível;

—o grito infantil que ninguém ouve e o consequente encerrar do Eu no interior da casa, metáfora do próprio corpo. Note que a desolação exterior (entrevista pelas frinchas da porta) se transfere para o interior; isto leva a que a «paisagem» exterior (cf. «Paisagem»), de extrema contenção, se reflicta no interior, fechado, reprimido – condicionando uma atitude futura, muito marcada na obra de E. de A., de olhos «rasos de água», lágrimas contidas, horizontes não nascidos mas «à beira de» nascer, à espera, na espera.

 

(Paula Morão, Poemas de Eugénio de Andrade. Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, pp. 72-73)

 

 

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“É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-15. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/e-todo-um-mundo-confuso-eugenio-de.html