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segunda-feira, 1 de maio de 2023

A Virgínia da Bretanha (crónica de Alfredo da Ponte)

 


A Virgínia da Bretanha

Num destes dias tive de ir ao Wall Mart, um pouco antes das oito da manhã. Estas conveniências de comércio aberto a balançar com os nossos horários de trabalho simplificam-nos a vida, de tal maneira que, se algum dia há um desequilíbrio neste sistema, para muita gente será uma visão do fim do mundo. Uma adaptação que muitas vezes não damos o devido valor. Graças a estas vantagens, quem não gosta de estragar tempo, segue as regras do ditado: “É de manhã que começa o dia”.

Ao entrar na loja deparei-me com a Virgínia, que vinha a sair com dois sacos de compras. Reconheci-a, claro! Mas, ao que parece, ela reconheceu-me muito mais, por ter naquela altura o meu nome debaixo da língua, e soltá-lo a bom som, mesmo ainda quando se encontrava a cerca de dez metros de distância de mim.

- Eh, Alfredo, há que anos eu não te vejo!...

- Sra. Virgínia, sempre nova!... Parece uma rapariga de vinte anos...

- Eh, hóme, isto já não é o que era...

- A mim, parece-me, que além do que era é muito mais.

Uma gargalhada dos dois lados, que durou a caminhada de ambos até ficarem frente-a-frente. Nisto, ela deixou o solo segurar os sacos, e no mesmo instante me atirou seus braços, lançando-os à minha volta.

Não resisti. Tive de fazer o mesmo. Apertou-me com metade da sua força, e o abraço demorou perto de dez segundos - o tempo suficiente para me deixar sem jeito, num espaço onde todos passam, e que sem fazer caso, toda a gente vê. Ninguém fala, mas português critica, e faz enredos.

-Os teus pequenos estão bons? Credo, já devem estar tão grandes!... a tua mulher, também...

Que sim, respondi. Perguntei-lhe pelo marido, e ela, então, contou-me que o seu companheiro havia partido deste mundo, há pouco mais de dez anos.

Lamentei, fazendo os gestos de dor, tentando mostrar a cara triste, enfim: usando aquelas expressões que devemos apresentar em momentos como aquele.

Reviveu comigo aquele dia triste, em pouco mais de um minuto; e enquanto ela falava, apreciei-a de alto a baixo sem más intenções.

Terá sido impressão minha, ou a Virgínia, realmente, não envelheceu. Tem oitenta e seis anos, com os dentes todos que Deus lhe deu. Na cabeça, o tom doirado domina de longe a cabeleira rija e farta, e as rugas ainda hesitam quando pensam em atacar-lhe. É uma sortuda.

A Virgínia é de estatura pequena, mas muito viva. Sempre assim foi. Impunha respeito aos colegas de trabalho, e seria capaz de lançar um soco, ou uma punhada, sopapos ou pontapés, fosse a quem fosse, sem avisar.

Na sua Bretanha, em São Miguel, era campesina. Por isso, na América sempre cuidou do seu quintal nas horas vagas, tirando dele a mais variada colheita de frutas e vegetais.

Por sua vez, o marido, por aquilo que ela me dizia, há pouco mais de vinte e cinco anos, cuidava das lides domésticas. Porque se reformara aos cinquenta e tal, estava em casa à espera da terceira idade da mulher para lhe fazer companhia. Embora estivesse a tomar conta da casa, era ele quem vestia as calças, porque a Virgínia só usou saias toda a vida. É de realçar o fato das calças do Manuel andarem sempre bem seguras ao corpo, porque para além de usar cinto, ele não saía à porta da rua sem lhe acrescentar os suspensórios.

Nas horas vagas, quando as lides caseiras estavam adiantadas, o Manuel dedicava-se à leitura. Gostava muito de ler, sem nunca lamentar a pouca escola que teve. Possuía em casa uns dez livros, e já os havia devorado várias vezes, porque não tinha mais nada para ler. Até as publicações semanais de O Jornal, em cada semana era lidas duas ou três vezes.

Quando a Virgínia me contou isto, eu prometi oferecer-lhe alguns livrinhos. Daqueles que já não me faziam falta.

Dito e feito. Uns dias depois entreguei à Virgínia cerca de uma dúzia. O marido consolou-se, e a alegria dele, descrita pela esposa, foi como se estivesse nas ilhas, naquele tempo, recebendo uma saca de roupa da América, com “candins” e tudo. Não se fartou de agradecer.

Agarrou-se, com unhas e dentes, pelo menos por uma semana, ao trabalho do Dr. Mário Moura, intitulado “Os moinhos da ribeira Grande”. Depois, chegou ao meu conhecimento que ele queria ter uma conversa comigo, para falarmos de levadas, rodizes, eixos, pedras, milhos e farinhas. Tudo fiz para que esta reunião não se realizasse. Será que ele pensava que eu era moleiro? Moleiro, não; fuseiro, sim, com todo o gosto. Com muitas graças a Deus, livrei-me da conversa das mós.

O Manuel quando era rapazote brincou muitas vezes nos arredores do moinho de vento do Pico Vermelho, na Ajuda da Bretanha. Aquele que há poucos anos foi restaurado e, como hoje se vê, faz-nos lembrar do Moulin Rouge de Paris, pelas suas cores, claro; onde predomina o vermelho em cima do branco. Já, agora, podiam adicionar-lhe o azul. Ás velas, talvez. É que se formos a aprofundar as coisas vamos acabar ao lado da teoria que defende que as raízes dos bretões micaelenses vieram da Bretanha francesa; e os inhames de Portugal Continental, que sendo também raízes, foram os portugueses que ensinaram os bretões a cultivar.

Com cinquenta e tal anos de América, a Virgínia só foi aos Açores uma vez, e diz à boca-cheia que não tem saudades nenhumas. Para ela pouco importa se a Ajuda e o Pilar são outras duas freguesias independentes, tal como já eram os Remédios desde 1960. Para ela tudo isto é, e sempre há-de ser, a Bretanha. João Bom também está lá metido. Porque é João Bom. Se fosse João Mau, haveria de ficar para os lados de Rabo de Peixe.

O Manuel vê a coisa de maneira diferente. Nas três vezes que lá foi, sozinho, descuidou-se das datas de regresso, e as viagens de retorno lhe saíram muito mais caras.  

Numa daquelas vezes em que lá se encontrava, um amigo convidou-o a ir ao mercado das rezes, na Ribeira Grande, num domingo de manhã. Isto, lá pelos finais da década de setenta.

Aceitando, com todo o gosto, o homem ficou maravilhado com o movimento do mercado agrícola, pelas seis da manhã, devido ao alvoroço das gentes e com os altos pregões dos vendedores. Porém, o que mais o impressionou foi que dali a pouco mais de meia hora já estava tudo calmo!

Dali, da praça, atravessaram a rua e foram ao mercado dos porcos. Outro alvoroço. Um endoidecimento.

O amigo do Manuel comprou quatro leitões. Quatro “marrãos do norte”, como se dizia; e o Manuel fez questão de comprar um. Todo pretinho, menos as orelhas e a rabiça, que era pequena. Se a Virgínia soubesse, fazia um grande leilão, e dava-lhe com o marrão pela cara, até lhe partir o nariz!

Dali, foram à loja do Amâncio, às favas. Meiozinho de vinho a cada um, e um prato de favas para os dois.

Marrãos para baixo, marrãos para cima. Estando mais calmo, Manuel pensou que não poderia trazer o porquinho para a América. Mas era tão riquinho, e desejava que não lhe acontecesse mal nenhum. Por isso decidiu oferecê-lo ao amigo, que já tinha quatro.

Afinal, como eram todos irmãos, deviam crescer juntos. Bendita porca foi aquela de Água de Pau, que fez questão de furar o Pico para ir à Ribeira Grande – a terra das oportunidades.

Para não perdermos mais tempo com esta estória, importa-nos deixar claro que estes descuidos do Manuel da Bretanha eram causados pelos frequentes ataques da saudade. Se a Virgínia não fosse capaz de controlar a situação em cada momento de desastre, o Manuel teria perdido o sentido da vida, há muitos, muitos anos.

Duas semanas depois de eu ter entregue os livros à Virgínia, num daqueles dias, ela chegou ao trabalho maldisposta.

Perguntei-lhe se estava tudo nos conformes. Ela olhou para mim furiosa, e avançou na minha direção com ar de guerreira. Inspirou fundo, e despregou-se com esta conversa:

- Tu, nunca mais me tragas livros p’ró meu home!... Ele mete-se a ler o dia todo, e as coisas de casa ficam por fazer... Eu tive uma briga com ele por causa disso...

Eis mais um exemplo de como um benfeitor se transforma em culpado de certos dramas familiares.

Condenei-me, então, a mim mesmo, e fiz todo o possível para a Virgínia soltar um sorriso. Pregou-me um empurrão, e desatou à gargalhada. Viva! A Virgínia estava de volta!

Nestes escassos minutos do reencontro com a Virgínia vieram tantas recordações à mente. Se eu tivesse dado fio à meada teria várias horas de conversa que me trariam anos de boas recordações. Mas como o tempo é marcante e cada segundo conta, tive de pôr termo ao diálogo, com a desculpa de ter que ir trabalhar.

A verdade é que estes escassos minutos, que nem chegaram a quatro, trouxeram-me um pouco de felicidade para o dia todo. Talvez nem a própria conversa tenha sido a responsável, ficando em seu lugar o primeiro sorriso, ou a gaitada. A festa da Virgínia. Sim, foi isso:

A festa que a Virgínia fez quando me viu proporcionou-me um dia feliz.

Haja saúde!

 

Os inhames da Bretanha
Regalam o coração,
Alegram quem os apanha,
Fazem boa refeição!

No teu moinho de vento
Do milho se fez farinha.
Porque o pão era o sustento
Da nossa humilde casinha.

Os inhames e as batatas,
Quando está o tempo fresco
Valem as mesmas patacas,
São do mesmo parentesco.

 

Crónica de Alfredo da Ponte (EUA).

Diário dos Açores, 11-04-2023

 


sexta-feira, 28 de abril de 2023

Ao princípio, era a mitofagia (Pedro da Silveira)


 

AO PRINCÍPIO, ERA A MITOFAGIA

Conheci-o quando, dos quinze para os dezasseis anos, começava a rabiscar uns versos, orvalhados de lamúria romântica e humanitarismos à Kropotkine, que o almanaque da terra, precioso jazigo de devaneios e moralidades sediças, generosamente acolhia. No pacato burgo insulano, que os vapores ronceiros sugestionavam de Europa todos os quinze dias, ele era, sem dúvida nem contesto, alguém — literato festejado, membro das Forças Vivas. Publicara alguns trinta livros; era sócio de honra de várias academias e institutos eruditos (sobretudo heráldicos e arqueológicos). Nas capas desses livros, logo abaixo do nome do grande personagem, num discreto mas bem legível corpo 8, desfilava toda a sua glória. E, apesar da ironia do Sr. Luís da Rosa — «O Germano é sócio de todas as fanfaras deste mundo e vizinhanças» —, não havia por ali quem não tomasse a coisa muito a sério. Eu talvez mais do que qualquer outro dos basbaques locais. Pelo menos de maneira mais angelical...

Bem cara me custou à alma a cegueira idólatra!

Estou agora a lembrar-me do momento em que ele, o malandro!, encontrando-me na redação de O Distrito Autónomo, me elogiou o estro. Chamou-me «ridente promessa»; que, se continuasse, não deixaria de chegar às paragens do Parnaso. Receitou-me Junqueiro e Bilac. Mas nada de futuristas!

«Loucos, meu preclaro amigo, uns loucos! Arte nova?... Aquilo não é Arte! Ora veja, por exemplo, os versos do nosso Cabral: “O meu Charuto”. Aquilo sim! Sentimento. Brilho. Os futuristas... Loucos e mais nada!»

Concordei. Que havia de fazer eu, aprendiz de sentimental, senão concordar? E continuei a venerá-lo, a venerá-lo cada vez mais. E a escrever sonetaços, agora em alexandrinos laboriosos, suando no esforço de trepar as ladeiras do Parnaso.

Até que um dia...

O grande personagem anunciara-me, displicente, a próxima publicação de um novo livro. O último, dizia. Qualquer coisa de muito transcendente, sobre a covardia de Pôncio Pilatos, com descrições da paisagem da Judeia («aguarelas sentimentais »...), rabis, camelos e muitas outras coisas.

Faltava apenas polir umas passagens. Dentro de um mês, os prelos botariam cá para fora a maravilha.

Pois bem. Aí vai. Embora ainda hoje me custe confessar que caí neste logro; que fui levado à certa; que durante dois anos aceitei como verdade incontroversa a grandeza daquele farsante de província. (Sirva-me de consolação a certeza de que não fui o único parvo. Que muitos, ainda hoje, a catorze anos da morte dele, aceitam a sua grandeza.)

Era costume juntarem-se, à tarde, no escritório do grande homem, os literatos da cidade. Também eu, apesar de verde, frequentava o conspícuo cenáculo. Naquele dia cheguei talvez mais cedo. Ele foi lá dentro. Então, lobriguei, sobre a secretária, uns manuscritos. A letra, conhecia-a, era a dele. O grande livro, pensei. E fervi de incontida curiosidade. Aproximei-me mais e...

Raios! Fiquei passado. Eram artigos, assinados com pseudónimos vários, a respeito do livro. Em cada um, ao alto da primeira folha, o nome do jornal insulano a que se destinava. E depois a procissão dos adjetivos — tudo de génio para cima!

A garganta apertou-se-me. A cabeça, parecia-me que rodava, suspensa, no ar. Seria verdade o que os meus olhos tinham visto? Ou não passava de trapaça do Eiramá? Tive pena de mim mesmo. Abalei porta fora — e nunca mais lá pus os pés.

Levei dias a matutar na coisa. Interrogava-me, angustiado. Depois, já mais calmo, reli os livros dele e não lhes encontrei a magia de outrora. E foi com verdadeiro acinte vingativo que, passada a crise, me atirei a ler uns tantos autores modernos, dos poucos que adregavam arribar àquelas paragens insulanas. Gostei — e aderi. Mas por quanto tempo aquilo me doeu. Surgia-me uma celebridade, e eu — na retranca. Ídolos, nunca mais! Do muito que então li contra os bonzos de que o burlão era na ilha o símbolo, guardei na memória algumas tiradas de respeito. Mas, mais do que isso, me impressionaram dois versos de Edmundo de Bettencourt:

Quero pedir-vos adeus sem nenhumas ternuras,
sem pena e repugnado, ó antropofagias obscuras!

Substituí antropofagias por mitofagias (o autor que me perdoe o abuso), e quando me sinto ameaçado por novos ídolos, recito-os como conjuro. E, duvidando sempre, até de mim mesmo se me acodem velocidades de subir ainda ao alto do Parnaso que tente escalar com os meus insonsos alexandrinos, consigo supor que estou vivo!...

 

Pedro da Silveira, “Ao princípio, era a mitofagia” in O Século Ilustrado, Lisboa, 14-05-1955, p. 9

 ***

[…] Cheguei a este texto de Pedro da Silveira por uma «breve» no Diário Insular, que atribuo claramente a João Afonso, dando conta do «início da colaboração» do florentino n’O Século Ilustrado. Tal colaboração consistiu, todavia, apenas nesta página, que resulta do convite feito a escritores para «contar uma história»; por exemplo, Mário Cesariny de Vasconcellos escreveria duas semanas depois.

A curiosa «história» de Silveira reporta-se ao ambiente literário da Angra do Heroísmo da década de 1930, quando ele ali foi estudante de liceu e seminário já envolvido em primícias literárias e visitando figuras em destaque. O literato designado como Germano é, creio bem, Gervásio da Silva Lima (1878-1945), também referido por Pedro no prefácio às Ilhas Desconhecidas como pomposa figura da cidade que recusou a Vitorino Nemésio ir cumprimentar Raul Brandão, pois este lhe parecia um emigrante que voltava à sua terra sem vintém. Mas esta é também deveras uma história edificante, prevenindo-nos dos malefícios de idolatrias de qualquer espécie e pinta, ou dos graves erros de avaliação pessoal que tantas vezes, e em tantos tempos da vida, praticamos inadvertidamente. Para bom entendedor...

Vasco Rosa, “Centenário de Pedro da Silveira, XXIII – Ídolos, nunca mais!, disse ele” in Diário dos Açores, 22-04-2023

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

A Viola e a Viagem, Mar&Ilha

A Viola e a Viagem, Mar&Ilha

 


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credits

releases August 4, 2022

All the musical arrangements in this album were made by Mar&Ilha (Sara Miguel, Marcos Fernandez, Jorge Canarinho Silva and Rui Silva)

Recorded in Lava Homes, mixed and mastered by Ricardo Torres and Daniel Santos - 2022

Album photos by Austèja Liu
Album design by Edmond Haider


Mar&Ilha

Mar&Ilha é um projeto musical conceptualizado por Sara Miguel para celebrar a viola da terra em toda a sua versatilidade, criado em 2019, a convite da Miratecarts para comemorar, em concerto, o primeiro Dia da Viola da Terra, no Auditório da Madalena do Pico.

O sucesso da atuação levou à repetição do concerto que, após a pandemia, ressurge como projeto de continuidade, passando, em 2021, de trio a quarteto. Dele fazem parte, além da cantora portuense Sara Miguel, o guitarrista galego Marcos Fernandez, o tocador de viola da terra picaroto Jorge ‘Canarinho’ Silva e o percussionista e artesão de adufes beirão Rui Silva, todos residentes na ilha montanha.

https://praiaexpresso.com/2021/10/20/marilha-em-volta-a-diaspora-em-viola-na-temporada-cultural-2021/ 




SINA

 

Nas linhas da minha mão

Cabe um dia e mais um dia,

O segredo e os mistérios

De outra caligrafia

 

E os traços com que desenho

Um perfil a inventar

Trazem na sua incerteza

Um vago rumor de mar.

 

Sete notas, um compasso

Dó ré mi fá sol lá si,

Sete voltas ao destino

E ao sonho que percorri

 

Há um pássaro poisado

Na pauta do meu olhar,

Como quem fica à espera

De um barco por abalar

 

E nas cordas afinadas

Por um tom que desconheço

Tudo vibra em sobressalto

Como se fosse um começo.

 

Urbano Bettencourt

 

Mar&Ilha no Festival de Música Terra dos Barcos, em Santo Amaro, agosto 2022
https://www.facebook.com/media/set?vanity=mareilhapico&set=a.848037219938840


Mar&Ilha com Urbano Bettencourt no Festival de Música Terra dos Barcos, em Santo Amaro, agosto 2022




CARREIRO, José. “A Viola e a Viagem, Mar&Ilha”. Portugal, Folha de Poesia, 28-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/a-viola-e-viagem-mar.html



sábado, 25 de setembro de 2021

Jácome Armas, Conjunto Homem




Conjunto Homem é tanto uma experiência literária como um ensaio filosófico. Um pensamento que tem como referências L. Wittgenstein ou Gonçalo M. Tavares e que articula de forma original conhecimentos da lógica formal, da psicologia e das neurociências. Apresenta-se como uma simples demonstração da incapacidade do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma crítica ao racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma tentativa de utilização de recursos estilísticos em provas da lógica formal e científicas.

 

“A Companhia das Ilhas apresenta Conjunto Homem Jácome Armas”, http://companhiadasilhas.pt/wp-content/uploads/2015/12/press-kit-Conjunto-homem.pdf [Upload: 2015-12-02]

 

 

Carta 1 Da Natureza para o Homem

 

Caro Homem, disse a Natureza, sabias que o teu maior erro foi teres inventado o espelho?

 

(E o Homem sentiu-se estúpido: não sabia.)

 

Mas não, disse a Natureza.

 

(E o Homem sentiu-se ainda mais estúpido: tinha sido enganado.)

 

Então a Natureza disse: O teu maior erro foi teres coberto o Mundo com espelhos. Agora, sem te aperceberes, sempre que olhas pela janela e tentas pintar o que vês, acabas por pintar-te a ti próprio. No fim, ainda levantas o quadro e dizes: O Mundo.

 

(O Homem ouviu, calou-se e saiu convencido de que ia provar à Natureza que era capaz de ver o Mundo e todas as suas cores.)

 

(Até hoje o Homem falhou.)

 

Jácome Armas, Conjunto Homem (ilustrações de Pedro Solá)

Lajes-Pico, Companhia das Ilhas, 2014, p. 11

 

Olhar para o mundo nunca consiste numa relação neutra de apreensão. Para ver não basta abrir os olhos, para compreender não basta traduzir essa percepção para uma representação consciente. O ver está já condicionado pela representação e esta nunca é alheia à experiência do objecto. Os condicionamentos implicam-se e multiplicam-se, numa relação que não é estritamente cumulativa ou linear.

 

Pretender possível que a experiência humana tenha um acesso luminoso ao mundo na sua essência seria negar a própria ideia de cultura. Enquanto cultura, a experiência dá tanto a ver quanto deturpa para que o visível caiba dentro da percepção, das linguagens e das representações.

 

Esta relação entre a representação e o real surge como o problema central do livro Conjunto Homem de Jácome Armas (nascido em 1985, especializado em física teórica). É um livro híbrido e inquieto: nem ensaio nem poesia, mas um espaço problemático onde os temas são tratados com a liberdade de pensamento e de experimentação que ambos proporcionam.

 

No plano temático, a sua principal virtude é não reduzir o problema ao binómio representação/objecto, mas mostrar que ele implica um terceiro termo: o sujeito, o ser humano, entendido como sentimento e espaço de experiência representacional.

 

Neste sentido, perguntar pelo mundo é perguntar pelo homem e pelas suas linguagens, do mesmo modo que perguntar pelo homem significará inevitavelmente perguntar pelo mundo no qual se inscreve e com o qual interage. Interrogar a razão será desembocar no sentimento, interrogar o sentimento será desembocar nos limites da representação e da própria ideia de verdade. Perguntar pelo objecto é interrogar o sujeito, interrogar o sujeito é deparar-se com o objecto:

 

«Proposição 15 As janelas da tua casa são transparentes.

 

(De fora, o Mundo pode olhar para dentro e ver o estado da tua casa. Não tão bem quanto tu: a casa é grande e o alcnce do Mundo também tem limites. Àquilo que tu chamarias Sentimento o Mundo chamaria humor.)

 

Þ As entradas dos sentidos são duplas: se vês o Mundo o Mundo também te vê a ti e, claro, vês-te a ti próprio.»

 

Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12

 

 

O livro, de tom aforístico, é um trabalho de interrogação sobre a própria linguagem. Embora se estruture segundo o esquema aparentemente lógico de um encadeamento argumentativo (Definição, Proposição, Conjectura, Exemplo, etc.), ele subverte de facto a linearidade do discurso dedutivo, afirmando uma arbitrariedade lógica só acessível ao discurso da poesia:

 

«Lema 14 O humor nunca desaparece.

 

(Mesmo que feches todas as janelas o mundo vê sempre uma paisagem: as janelas fechadas.)»

 

Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12

 

 

Dedicado, entre outros, a Gonçalo M. Tavares e Wittgenstein (e assumindo com isso as dívidas e as influências), o livro adopta a dimensão de uma pesquisa que a si mesmo recusa as condições de verificabilidade. Tratar-se-á mais de construir os problemas do que de enunciar respostas, ou de não enunciar outras respostas que não aquelas que possam elas mesmas ser sujeitas à dúvida e à revogação.

Diferente será a questão de saber qual o critério de verdade (ou de qualidade, assumindo a preponderância do discurso literário no livro) a partir do qual a validade das teses é susceptível de ser avaliada. O género ensaio tem sempre como critério implícito de verdade a argumentabilidade das teses, a garantia de que elas sejam contra-argumentáveis. A literatura pode prescindir da argumentabilidade, acolhendo a possibilidade da aporia ou da contradição interna. Talvez resida aqui um dos principais méritos deste livro de Jácome Armas: ele escapa-se e questiona os critérios e a autoridade de ambos os registos.

 

Helder Gomes Cancela, blogue Contra Mundum Crítica, 2014-10-16

 

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Para abrir, isto não é um artigo de crítica. Nem o Fazendo se dá a ares de espaço para resenhas, nem este escriba tem bagagem intelectual para uma análise crítica aprofundada a este livro, não obstante o facto de ter o seu autor em grande estima pessoal e condições praticamente nulas para escrever sobre o seu trabalho com um mínimo razoável de objectividade.

A primeira vez que li Conjunto Homem, quando o Jácome o acabou de escrever há alguns anos, entusiasmou-me sobretudo o humor acutilante da sua escrita e a refinada crítica ao New Age que está subjacente, luta em que nos unimos passados alguns anos da puberdade. A minha reduzida capacidade de analisar o objecto que tinha em mãos na altura (na verdade eram só algumas folhas agrafadas) deixou-me ao lado de outras ideias bem mais interessantes que o livro contém. Felizmente a recente edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadas, de ume a oportunidade de o reler com uma perspectiva mais alargada (e conhecimentos que, embora muito superficiais, sempre me permitem identificar melhor as referências às ideias dos “ilustres” a quem o livro é dedicado).

Esses ilustres são Gonçalves M. Tavares, António Damásio, Godel, Wittgenstein, Russel, Oliver Sacks e Freud, e o Jácome garantiu-me que foi a eles a quem roubou as ideias. Apesar desse saque estamos perante algo muito diferente de uma mera colagem de ideias alheias. A reciclagem é total e, embora formalmente construído como uma demonstração matemática, está (felizmente) muito longe da tradição textual académica.

Trata-se, na forma, de uma demonstração lógica, constituída por proposições, axiomas, teoremas, etc., estilisticamente entra no plano poético (por vezes da parábola), e tematicamente no fi losófico, mas na realidade todas estas regras são subvertidas. Essa é uma das valências, objecto híbrido por natureza o bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso. Conjunto Homem está dividido em três partes – Lógica, Percepção e Sentimento – e usa dois personagens principais como estereótipos – um matemático e um guru – que, pela sua visão redutora do mundo, vão sendo maltratados ao longo das páginas (com, diga-se de passagem, excelente efeito no domínio da exemplificação). Há um movimento que se vai criando durante o livro, parte da frieza racional no início e desemboca nos afectos. Os artifícios formais da demonstração e o encadeamento sequencial dos vários quadros que nos vão sendo apresentados cria, inicialmente, a ilusão de uma rigidez matemática, ilusão essa que se desconstrói a si própria até que nos desembrulha um ideal profundamente humanista. Uma apologia às relações humanas e do homem com a natureza, que se move entre os extremos do binómio razão/sentimento.

Neste sentido há um paralelo do livro do Jácome com a obra principal de Baruch Espinoza, Ética, que é inevitável (para lá das mais óbvias parecenças formais). O livro de Espinoza também se desenvolve como uma demonstração geométrica. Começa com conceitos “simples” sobre Deus e a natureza que se vão construindo e complexificando cada vez mais, chegando cada vez mais próximo duma descrição filosófica do que é o ser humano até que atinge aquilo que era a intenção inicial do autor: uma justificação lógica do dever ético; um apelo racional à ética nas relações humanas. O do Jácome consegue ser mais poético. Esconde quase sempre toda a bagagem filosófica e científica da qual parte, e dissolve-a por várias camadas de significado. No fi m chega a algo muito simples, e muito bonito.

 

Pedro Lucas, jornal Fazendo, 2014

 

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Wittgenstein, numa tentativa de construir uma linguagem desambígua e universal, concluiu que há determinadas coisas que o Homem pensa e sente cuja expressão não poderá́ ser levada a cabo através da recorrência ao discurso lógico e coerente, mas sim à poesia. Um homem que se dedique à matemática – o Matemático – é um homem que domina o pensamento lógico. Se pudéssemos atribuir a este uma forma geométrica, diríamos um quadrado, não pela forma da sua silhueta, mas pela forma como vê o Mundo: uma estrutura rígida com ângulos rectos. Mas enquanto o Matemático pensa ser capaz de lidar com um crescente grau de complexidade, simplesmente porque é capaz de escrever numa folha de papel o símbolo ∞, existe outro tipo de homem – o Guru – para o qual ∞ não é mais do que um mero limite, inalcançável pela lógica. Conjunto Homem apresenta-se como uma simples demonstração da incapacidade do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma crítica ao racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma tentativa de utilização de recursos estilísticos em provas da lógica formal e científicas.

 

Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer, “Saída: CONJUNTO HOMEM, de Jácome Armas”, in Comunidades, 2014-09-03




Sobre o autor:

Nascido no Faial, em 1985, Jácome Armas é, atualmente, um dos mais brilhantes físicos europeus. Licenciou-se em Engenharia Física pela Universidade de Aveiro, com uma passagem pela Irlanda, para estudar Física Teórica durante um ano no Trinity College, em Dublin, ao abrigo do programa Erasmus. Completou o Mestrado em Estudos Avançados em Matemática Aplicada na Universidade de Cambridge, Inglaterra, e o Doutoramento em Física Teórica no Niels Bohr Institute, na Dinamarca.

A sua vida é um bom exemplo de como o mundo se transformou numa pequena aldeia graças ao desenvolvimento tecnológico. A viver na Dinamarca, ensina Física Teórica na Universidade de Amesterdão, na Holanda. Há cerca de 10 anos, fundou o projeto “Science & Cocktails”, que potencia eventos onde se pode falar de ciência enquanto se ouve música, aprecia arte e desfruta de um bom cocktail, e que tem expressão na Dinamarca, na Holanda, na Bélgica e na África do Sul. Faz tudo isto com o Faial e os Açores sempre no pensamento.

Em 2014 a Companhia das Ilhas editou o seu livro Conjunto Homem, um ensaio filosófico que ilustra bem o seu ímpeto de descrever o mundo não apenas sob a perspetiva da ciência. Mais recentemente, já em 2021, a prestigiada editora britânica Cambridge University Press anunciou a publicação de Conversations on Quantum Gravity, livro onde Jácome Armas entrevista 37 físicos sobre a busca pela teoria da gravidade quântica.

 

Maria Pinheiro, “Jácome Armas – Espero, um dia, criar um centro de estudos avançados no Faial ou no Pico” in Tribuna das Ilhas, 2021-04-21 




 


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https://www.tsf.pt/programa/sinais/emissao/jacome-armas-4014094.html



CARREIRO, José. “Jácome Armas: Conjunto Homem”. Portugal, Folha de Poesia, 25-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/jacome-armas-conjunto-homem.html