sexta-feira, 31 de julho de 2015

"Nova poesia" e "poesia nova" (Gastão Cruz)




"Nova poesia" e "poesia nova"
Gastão Cruz

Quando procuramos hoje uma "nova poesia portuguesa", a primeira coisa que poderá surpreender-nos é a inexistência de autores, já suficientemente visíveis, com idades situadas entre os vinte e os trinta anos.
Alguns dos principais nomes que viriam a formar a magnífica constelação de poetas revelados na segunda metade do século XX, ou mesmo um pouco antes, se recuarmos até à década de quarenta, afirmaram-se cedo; alguns exemplos: estreando-se aos vinte e três anos (Perseguição, 1942), Jorge de Sena publica aos vinte e sete o seu primeiro grande livro, Coroa da Terra (1946); Sophia, aos vinte e cinco, Poesia (1944); Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos (1948), também aos vinte e cinco; Ramos Rosa afirma-se, a partir de 1951, nas páginas da Árvore, com vinte e sete; Cesariny publica, com a mesma idade, Corpo Visível (1950); Fiama e Luiza Neto Jorge têm, respectivamente, vinte e três e vinte e dois anos em 1961 (Morfismos e Quarta Dimensão, que não são sequer as suas primeiras obras); Nuno Júdice, a primeira estreia marcante da década de 70, torna-se imediatamente, aos vinte e três anos, com A Noção de Poema (1972), um poeta conhecido; Luís Miguel Nava ganha, aos vinte e um, o Prémio Revelação da APE de 1978, com Películas (1979).
É certo que um dos poetas presentes neste número de Relâmpago - e dos mais representativos, Luís Quintais ‑ alcançou, com vinte e sete anos, uma relativa projecção, quando o seu primeiro livro, A Imprecisa Melancolia, foi publicado simultaneamente em português e em tradução castelhana, depois da obtenção do Prémio Aula de Poesia de Barcelona, em 1995. E que também Daniel Faria, desaparecido em 1999, com vinte e oito anos, deixou um considerável e, sem dúvida, importante conjunto de poemas, distribuído por três livros principais, tendo o último, e acaso o mais relevante, Dos Líquidos, saído postumamente, em 2000. Objecto de uma discreta consagração, logo após a morte, o seu lugar, no panorama da poesia portuguesa mais recentemente revelada, parece não ter parado de consolidar-se, o que, suponho, continuará a acontecer.
Onde estão, porém, neste momento, os poetas portugueses com idade inferior a trinta anos? Ainda por publicar? À espera de serem descobertos nas páginas de livros mal divulgados? E por que não existem, quase, vozes poéticas femininas jovens?
Esperemos que venha a haver, em breve, resposta factual para estas perguntas.
Se não podemos falar, propriamente, de jovem poesia, falemos então de nova poesia portuguesa. E a primeira questão que se coloca é a seguinte: será a nova poesia uma poesia nova?
Ruy Belo, um dos poetas que mais penetrantemente pensaram o fenómeno poético (e será conveniente voltar a sublinhar, contra a sectária miopia de certos detractores, a extraordinária importância da sua obra teórica e crítica, constituída, quer pelos textos reunidos no volume, recentemente reeditado, Na Senda da Poesia, quer pelos prefácios aos seus próprios livros de poemas, sem dúvida, ao lado das de Sena e Ramos Rosa, uma das que mais contribuíram para uma verdadeira reflexão sobre a poesia moderna e contemporânea, em Portugal), defendeu, num ensaio fundamental, de 1961, "Poesia Nova - Tentativa de Caracterização da Poesia", que poderia ser lido com proveito por alguns poetas actuais, como "característica essencial de toda a poesia a novidade".
Sabemos como a produção do novo, como pressuposto de validação da obra de arte, não somente do poema, passou a ser vista com suspeição, em tempos mais ou menos recentes, marcados por essa espécie de contra-reforma que tem dado pelo nome de pós-modernidade.
Todavia a exigência de novidade não foi exclusiva do modernismo ou das várias vanguardas novecentistas: novo foi Sá de Miranda (cf. Jorge de Sena, "Reflexões sobre Sá de Miranda ou a arte de ser moderno em Portugal", in Da Poesia Portuguesa, Ática, Lisboa, 1959), novos foram Cesário Verde ou Camilo Pessanha - novo terá de ser, hoje, qualquer poeta que queira escrever alguma coisa capaz de superar o descritivismo morno, a observação rasteira do que o cerca (ou ele decide que o cerca), a má (ou menos má...) prosa disfarçada de poema.
Um sector do que podemos chamar "nova poesia portuguesa", ou, talvez mais exactamente, o teorizado r de uma poesia "sem qualidades", Manuel de Freitas, tem procurado impor um conceito de poesia que, recusando as "qualidades" que terão andado associadas à chamada poesia moderna, tal como a conhecemos desde meados do século XIX, lhes contrapõe a ausência delas ("Estes poetas não são muita coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos", diz-se no prefácio do organizador, M. de Freitas, à pequena antologia Poetas sem Qualidades), ecoando a curiosa tese de Joaquim M. Magalhães, precisamente num artigo de exaltação da poesia de M. de Freitas, de que "vieram os finais do séc. XIX e quase toda a extensão do séc. XX estragar tudo isto e pôr os leitores a milhas da poesia" (Público, 3/8/2002).
Não poderia falar de "nova poesia portuguesa" sem me deter um pouco na estranha postura de Manuel de Freitas, dado o protagonismo que, em contradição flagrante com uma pouco convincente encenação de marginalidade, a sua intervenção vem assumindo. Trata-se de uma actividade que no plano crítico se baseia, por norma, em meras execuções sumárias, como, por exemplo, a que de Nuno Júdice procura fazer no prefácio à antologia referida, sem qualquer fundamentação ou desenvolvimento de pontos de vista, numa recusa sistemática de toda a poesia que não esteja de acordo com a sua inconsistente teorização (e, com a quase exclusiva ressalva de J. M. Magalhães e de alguns poetas do grupo do próprio M. de Freitas, nenhuma estará), o que conduziu mesmo à espantosa afirmação, referida a Herberto Helder, de que "a um génio tudo se perdoa" (até o pecado de ter "dado voz a uma quase esmagadora intemporalidade"). Não parece, obviamente, que, por não se enquadrar na poética preconizada por M. de Freitas, Herberto careça do seu perdão.
Voltemos à afirmação de J. M. Magalhães. Também para tal encontramos resposta noutro ensaio do mesmo livro de Jorge de Sena, "Sobre Modernismo": "No fundo, e hoje e aqui, a questão do "modernismo" é a questão do tão chorado abismo entre as artes e o povo. Sem dúvida que é digno verter lágrimas dessas, tentar encher de lágrimas o abismo. Diga-se de passagem que se tem procurado enchê-lo com palavras, ainda que humedecidas, e com mediocridades, ainda que bem intencionadas."
Na verdade, temores como esse de "pôr os leitores a milhas da poesia" só conduzem, como, por vezes, sucedeu nos tempos a que Sena se refere, ao culto da mediocridade, da banalidade, à ausência de risco, ao recuo perante qualquer veleidade de invenção verbal, em suma, a uma poesia (realmente) "sem qualidades".
Não creio que, na prática, seja isso o que se tem passado, pelo menos nos melhores casos, com a "nova poesia". O trabalho poético, o ofício cantante, a aplicação artesanal, não estão sequer excluídos da escrita de dois ou três dos poetas que aceitaram figurar sob a designação de "poetas sem qualidades": José Miguel Silva, Rui Pires Cabral ou mesmo Manuel de Freitas (aliás não integrado na antologia), pelo menos no seu melhor livro, Game Over, procuram, sem dúvida, fugir ao amadorismo a que o seguimento à letra da defesa de uma poesia "sem qualidades", tão desajeitadamente teorizada, forçosamente conduziria. O prefácio a Poetas sem Qualidades reclama-se, aliás, de Baudelaire e de T S. Eliot, inexcedíveis artesãos da poesia - e bem conscientes da necessidade de que o poeta seja um fabbro.
Bons artesãos, nos seus bons momentos, talvez uma maior ousadia na produção de imagens, uma dimensão metafórica mais ambiciosa, alguma desconstrução textual, lhes elevasse a "temperatura poética", para me servir da expressão de Ruy Belo, ainda do ensaio "A Poesia Nova", do qual seria agora oportuno citar o seguinte: "Temos, portanto, que a palavra, tomada no sentido lato que lhe dá Frei Luís de Leão, apresenta essas duas maneiras de ser: uma, no pensamento; a outra, na boca. A primeira, o sermo interior da Escolástica, natural; a segunda, posta, inventada, feita. É dentro deste último sector que, como estamos a ver, se recruta a palavra sobre a qual nos vimos debruçando. Palavra surpreendida no momento de soar e não no momento de estar. Palavra dinâmica, instável. Palavra de arte. E a palavra de arte é sempre uma palavra surpreendida, apanhada em flagrante delito de criação." Talvez a poesia de Carlos Bessa, com um discurso mais desconstruído e mais imprevisível no domínio das imagens, pratique com especial eficácia esse" delito".
Ao observarmos a "nova poesia portuguesa", não podemos deixar de notar a diversidade e a quantidade de casos dignos de atenção. Uma geração (releve-se o uso do impreciso, mas inevitável, conceito) que pode ostentar obras tão diferentes como, por exemplo, as de Luís Quintais, José Tolentino Mendonça, José Mário Silva, José Ricardo Nunes, Carlos Bessa ou Rui Coias, apresenta uma dinâmica que inevitavelmente impressiona, sobretudo se compararmos a actual proliferação de nomes (outros ainda poderiam, provavelmente, ter sido acrescentados aos que figuram nas páginas deste número de Relâmpago, que não pretende, de forma alguma, estabelecer o cânone da "nova poesia portuguesa") com a muito menor abundância de poetas interessantes surgidos na fase imediatamente anterior, aproximadamente entre 1980 e 1995. Não será fácil destacar, nesse período, muito mais de cinco nomes: Luís Miguel Nava, Paulo Teixeira, Fernando Luís Sampaio, Adília Lopes, Fernando Pinto do Amaral - todos nascidos entre 1957 e 1962 (Luís Filipe Castro Mendes, AI Berto, Fátima Maldonado, Manuel Gusmão, entre outros, cujas obras se afirmaram também entre 80 e 95, pertencem, verdadeiramente, a gerações anteriores).
Além de Manuel de Freitas, outros dois poetas têm exercido actividade crítica, com alguma regularidade ou extensão, José Ricardo Nunes e Pedro Mexia, tendo o primeiro reunido, em 9 Poetas para o Século XXI (2002), abordagens das obras poéticas de Carlos Bessa, Daniel Faria, João Luís Barreto Guimarães, Jorge Gomes Miranda, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Paulo José Miranda, Pedro Mexia e Rui Pires Cabral, o que faz dele o principal estudioso da poesia da sua geração.
Tanto J. Ricardo Nunes como Pedro Mexia cultivam, em geral, o poema curto, contido, procurando uma sobriedade de escrita que é comum a José Mário Silva. Se - e, de novo, como diz Ruy Belo - "nunca a extensão do poema foi garantia de alta temperatura poética", é igualmente certo que o poema menos extenso requer uma forte carga expressiva, uma concentração de energia, uma intensidade, sem as quais dificilmente funcionará. Ruy Belo: "Dois ou três versos convenientemente isolados ferem-nos mais, muitas vezes, do que abundantes versos, em contínuo perigo de descambarem na prosa."
O "perigo de descambarem na prosa" espreita, por vezes, os versos, quer em poemas curtos, quer em mais longos, de alguma da actual produção poética portuguesa - e já não me refiro apenas à "nova poesia". O desejo de tornar os textos acessíveis, de poupar esforço ao leitor, tem dado, por vezes, origem a uma poesia light, constituída por apontamentos ligeiros, pequenas piadas, observações inócuas do quotidiano, com o consequente definhamento da linguagem poética.
É evidentemente possível escrever grande poesia a partir do "real quotidiano": têm-no feito poetas tão diversos como Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Fiama Hasse Pais Brandão, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros. Numa carta de 1915, dirigida a Armando Cortes-Rodrigues, diz Fernando Pessoa: "Chamo insinceras às cousas feitas para fazer pasmar, e às cousas, também – repare nisto, que é importante - que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção de gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer deles pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir."
A ausência de uma "fundamental ideia metafísica", de "um profundo conceito da vida", associada à incapacidade de transfiguração do real, é o que, em geral, compromete a validade de uma poesia a que em Espanha se tem chamado "de la experiencia" e que, entre nós, alguns têm procurado imitar. Como escreveu também Ruy Belo: "A palavra poética é universal porque abstracta. Embora haja um facto concreto na sua origem, não está vinculada a esse facto. É mais e é coisa diferente desse facto. Despida das circunstâncias que rodearam o seu nascimento, existe como mensagem de uma experiência não só do poeta mas de todos os homens. Por isso estes podem reconhecer nessa palavra a sua própria palavra." Ou, como ironicamente comentava um poeta espanhol: "Mucha experiencia, poca poesia".
Felizmente apercebemo-nos de que, em alguns dos novos poetas portugueses, é cada vez maior a consciência de que a poesia tem de ser algo mais do que o mero cliché de uma marginalidade de papelão, com as constantes e inevitáveis referências ao álcool, aos bares, etc., ou a simples observação directa do que ocorre no centro comercial, no supermercado ou no café. Neste mesmo número de Relâmpago existem elucidativos exemplos da ultrapassagem do puramente acidental, mesmo por parte de poetas cujos textos procuram normalmente cingir-se a uma realidade low profile, desprovida, a um primeiro olhar, de quaisquer atributos especiais. Penso, particularmente, em José Ricardo Nunes ou em Rui Pires Cabral, o primeiro enveredando por uma certa leitura simbólica do mundo circundante, mesmo quando o ponto de partida do poema é, por exemplo, um "Mercado", o segundo procurando descobrir uma dimensão metafísica em acontecimentos vulgares e assegurando que "a realidade/defenderá até à morte/os seus mistérios".
Noutros mundos se moveu, desde o começo, a poesia de Luís Quintais. E encontramos, na sua obra mais recente, quer em Angst (2002), provavelmente, com Dos Líquidos de Daniel Faria, um dos dois mais importantes livros da "nova poesia", quer na sua presente colaboração nesta revista, uma respiração metafísica cada vez mais ampla, a busca de "uma perfeição de palavras". Tentando decifrar "uma atmosfera de encanto e morte" ou invejando "o remorso de Onegin", a poesia de Quintais procura uma interpretação para o mundo, reflecte sobre "a importância misteriosa de existir" de que falava Pessoa: "aqui sonhas a tua origem e o teu fim/aqui repousas o eixo do fátuo enigma./Nada foste. Nada és, animal cego e piedoso."
É numa zona afim desta, embora com um tom muito diferente, que se desenvolve a poética de José Tolentino Mendonça. A sua poesia aproxima-se com humildade do real, como eloquentemente nos diz numa arte poética que faz lembrar as de Sophia: "A poesia é um procedimento humano, uma maneira que mimetiza outras ainda mais puras, um gesto que repete o arco de outro gesto: coisas tão simples como varrer um pátio ou lançar o balde ao poço ou traçar caminhos num bosque. A poesia não é feita de invenção, mas de repetição. (...) O lugar ínfimo da poesia é o lugar que no mundo ocupa o espírito."
Afectado por uma "imprecisa inquietação", por entre "a vazia escuridão", "os redemoinhos imperceptíveis", "como se estivesse para ser morto/às mãos do próprio Deus", "enquanto a alma repete a pergunta eterna", Tolentino Mendonça vê a vida com um dramatismo crescente: uma “combustão” de que o amor é um dos ingredientes. E creio que esta "combustão", esta intensidade emotiva e expressiva, contraria, de alguma maneira, a modéstia do papel meramente repetitivo da realidade mais pura que Tolentino Mendonça reivindica para a poesia.
Não me é possível, nem é esse o objectivo desta reflexão sobre os novos percursos da poesia portuguesa, deter-me no trabalho de cada um dos autores mais recentemente revelados. Como já disse, o panorama é vasto e diversificado. Mas penso que se justifica uma referência particular a Rui Coias, pelo lugar isolado que me parece ocupar.
Num momento em que muita poesia revela algum empobrecimento em termos de imaginação, de criação metafórica, de espessura verbal, o livro que Rui Coias publicou em 2000, A Função do Geógrafo, e que tem evidente continuidade nos poemas com que colabora nesta revista, delineou um rumo diferenciado e autónomo, que talvez se inscreva numa nova zona surrealizante da poesia portuguesa, marcada por uma diversa, acaso mais controlada, confiança no poder das imagens, enraizadas em lugares concretos reproduzidos pela memória: "Farei da memória a função do geógrafo".
Se não quiser deixar-se arrumar no armazém das inutilidades fúteis (e não há nada menos inútil do que a poesia), uma "nova poesia" não poderá deixar de ser uma "poesia nova" – a "palavra de poesia" que, no ano já remoto de 61 , Ruy Belo redefiniu e caracterizou como essencialmente metafórica. É dessa palavra que, em tempos bem recentes, nos falou igualmente, neste poema admirável, Daniel Faria:

Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco da palavra com as mãos

Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai





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RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A porta escura da poesia (Fernando Pinto do Amaral)




A porta escura da poesia
Fernando Pinto do Amaral

All I know is a door into the dark.
Seamus Heaney

Realmente es muy parecida la forma
que todos tenemos de sentirnos originales.
Luis Carda Montero


1. Tal como ao contemplarmos o aspecto de um céu que ao longo de um dia deixa de ser azul e se vai povoando de nuvens até se tornar cinzento (ou vice-versa), é quase sempre difícil detectar com exactidão o momento em que ocorrem certas mudanças de atmosfera ou de clima, se considerarmos a evolução do ambiente político, estético, literário, etc. Trata-se de processos lentos e graduais, de cujos resultados nos apercebemos inevitavelmente a posteriori, diante dos efeitos provocados por essas alterações, primeiro quase imperceptíveis e depois mais evidentes.
Não sei se os anos 90 terão marcado alguma fronteira desse género, mas se a distância é ainda muito pouca, é difícil resistir à tentação de olhar à nossa volta, mesmo sabendo como esse olhar é ainda precário, mesmo sabendo que só após algum tempo a nossa percepção se tornará um pouco mais nítida.
Dito isto, começaria por sublinhar dois aspectos que me parecem resultar de uma observação do panorama poético actual, no que toca às gerações mais recentes: em primeiro lugar, quero destacar o mérito de algumas vozes surgidas na última década do século XX, estando de acordo com José Ricardo Nunes quando, na introdução ao livro em que estuda nove desses autores - aliás presentes neste número da Relâmpago -, afirma que "a qualidade das obras destes poetas [...] parece desmentir algumas vozes que persistentemente vêm recusando encontrar na mais jovem ou recente poesia portuguesa sinais de sólida renovação"1. Em segundo lugar, sobressai a ausência de uma corrente dominante, que prevalecesse sobre outras ou fosse capaz de se lhes impor, afirmando-se hipoteticamente como vanguarda. De facto, coexistem hoje diversas linhas, cujas diferenças compõem um mosaico suficientemente fluido e plural para que pudéssemos destacar apenas uma delas, numa paisagem à qual por comodidade periodológica se tem chamado pós-moderna.
Olhando um pouco para trás, pode dizer-se que desde o Orpheu toda a nossa maior poesia evoluíra quase sempre, melhor ou pior, segundo linhas de ruptura e tentativa de ultrapassagem da geração anterior - a presença como uma reelaboração do modernismo, os neo-realistas contra a presença, os surrealistas contra o neo-realismo, a Poesia 61 ou a Poesia Experimental pondo em causa alguma poesia dos anos 50, etc. -, num processo que tem vindo a esbater-se ou mesmo a desaparecer ao longo das últimas décadas. De resto, a própria lógica da formação de grupos e movimentos entrou em declínio e a poesia actual encontra-se disseminada por obras individuais cujo desenho global dá corpo a uma pluralidade de universos singulares. Em todo o caso, pode sublinhar-se com alguma ênfase que os poetas mais recentes não escrevem directamente contra a geração anterior, indo colher influências a um largo espectro cultural, que muitas vezes relaciona a poesia com outras formas de expressão - o cinema, a música, as artes visuais, etc. Além disso, eles tendem a integrar nas respectivas obras todo o lastro de um passado e de uma tradição literária, que surge modulado e matizado consoante as suas obsessões pessoais e segundo perspectivas por vezes carregadas de uma ironia tanto mais subtil quanto se mostra capaz de reflectir e de refractar o desconforto em face dessa herança - a herança de um século que terminou e em cuja poesia se coloca agora outro problema, o da maior ou menor originalidade da criação poética individual.
De facto, a nossa época talvez esteja a reformular a questão da originalidade, que para os românticos implicava uma entrega à subjectividade e que para as vanguardas envolvia sobretudo uma atitude de pesquisa ao nível dos efeitos de linguagem. Ora, nos nossos dias o que se passa é que cada autor procura marcar a sua diferença por meios talvez mais subtis, sem cultivar com a mesma veemência os efeitos de originalidade mais gritantes - o que nos tem levado a uma situação algo paradoxal, já que os poetas, não atribuindo tanta importância ao facto de serem considerados originais, estão a ser, num certo sentido, ainda mais originais, por estarem a romper com a tradição da ruptura que terá vigorado até aos anos 60/70.
2. Talvez este género de reflexões não nos adiante muito quanto à indagação do lugar que a poesia ocupa hoje na literatura e na sociedade em geral: quanto aos hábitos de leitura, dir-se-ia que, apesar de a situação em Portugal se mostrar comparativamente melhor do que noutros países onde se lê menos poesia, terá ocorrido, ao longo de todo o século XX, uma certa perda de importância desse género literário, uma certa diminuição da sua visibilidade pública. No entanto, a propósito desse tema já tão discutido, gostaria de realçar dois pontos fundamentais - por um lado, não penso que a poesia corra o perigo de se tornar demasiado minoritária, porque, embora alguns poetas escrevam quase em circuito fechado e sejam conhecidos por uma escassa percentagem de leitores, a poesia não entrou em nenhum limbo e, mesmo de um ponto de vista estritamente mediático, o seu território continua a atrair alguma atenção crítica nas páginas dos jornais de referência2.
O segundo ponto a destacar prende-se com as causas dessa vocação minoritária que a poesia foi assumindo e que, por sua vez, radicarão em duas ordens de factores - uma intrínseca, inerente à própria matéria da poesia, digamos assim, e a outra derivando de questões sociológicas. Começando por esta última, é impossível negar que, em face do que sucedia há 30 ou 40 anos, as pessoas dispõem hoje de maior quantidade de estímulos susceptíveis de atrair a sua sensibilidade, de alargar o seu mundo e de ocupar o seu tempo, repartindo-o de maneiras mais diversificadas do que antigamente. Neste contexto, é inevitável que o peso relativo da poesia tenha sofrido alguma redução, mas isso não me parece, em si mesmo, particularmente preocupante.
Quanto aos motivos intrínsecos que poderão ter afastado alguns leitores ao longo do século XX, dependeram de um registo de linguagem por vezes menos acessível a uma fácil comunicação, tornando algumas obras mais herméticas e menos propensas a cativar um grande número de pessoas. Faço apenas uma constatação - que não implica qualquer juízo de valor -, mas, de facto, desde as correntes simbolistas de finais do século XIX que os poetas ganharam maior consciência da natureza verbal da sua arte e se distanciaram mais das expectativas do público, processo que, mutatis mutandis, também ocorreu noutras artes no século XX, como no caso da música atonaI ou da pintura abstracta.
De qualquer modo, não creio que para a generalidade dos poetas mais novos estas considerações sejam muito pertinentes, precisamente porque nos últimos tempos esse gosto pelo hermetismo parece menos exacerbado. Outra questão será a que nos leva a reflectir sobre o espaço ocupado pela poesia dentro do próprio campo das obras literárias, ou seja, o problema de tentar saber o que pode hoje distinguir a poesia em comparação com outros géneros literários. A esse respeito, não constitui novidade para ninguém afirmar que o século XX misturou bastante as tradicionais fronteiras genológicas, sendo hoje por vezes difícil separar com nitidez a poesia, a narrativa, o ensaio e outros textos quase inclassificáveis. Basta percorrer as páginas de alguns dos nossos prosadores ou alguns poemas que comportam uma dimensão narrativa para verificarmos como tais limites se tornaram inoperantes e nos passaram a servir, sobretudo, para os efeitos práticos de arrumação dos livros nas estantes das bibliotecas. No fundo, dispomos hoje da liberdade de seguir o conselho dado por Irene Lisboa, quando escrevia, na abertura do seu livro Outono Havias de Vir (1937, sob o pseudónimo de João Falco): "Ao que vos parecer verso chamai verso / e ao resto chamai prosa". Ao lermos uma boa parte dos poetas actuais, é assim que teremos de proceder, embora certos efeitos de ritmo, de métrica, de rima e de sonoridade em geral se mantenham com maior relevância na poesia do que na maioria da prosa.
3. Ainda a respeito do papel hoje desempenhado pela poesia, gostaria de recordar um texto algo polémico (e quase programático de um certo grupo, o dos "poetas da experiência") da autoria do poeta e ensaísta espanhol Luis García Montero, no qual, ao prefaciar em 1992 um volume de outro poeta – Felipe Benítez Reyes3 -, se refere aos poetas mais novos como praticantes de uma "poesia depois da poesia", quase uma pós-poesia, talvez por influência do prefixo pós- noutros contextos contemporâneos. Na sua perspectiva, isso significa que as vanguardas, tendo levado às últimas consequências isso a que chama a "sacralização da tarefa artística" (p. 11), chegaram a um ponto-limite, a partir do qual surgiu a necessidade de uma concepção mais sensata da arte. Desse modo, a poesia passa a funcionar num registo diferente, mais próximo de uma realidade empírica eventualmente partilhável com o leitor. Assim, e segundo García Montero, "o poema é um artifício convencional (como um Estado político, uma sociedade ou um jogo de futebol) que obedece a certas regras e precisa de estar à altura do leitor para se tornar verosímil (...). Na poesia da experiência, o poema é entendido como um território apto a criar uma experiência viva, um simulacro aberto à possível identificação do leitor" (p.13).
É claro que quando García Montero alude a uma poesia que possa resultar "verosímil", coloca-se o problema de saber de que tipo de verosimilhança se trata, porque, se nos cingirmos à noção mais comum para a narrativa - histórias que poderiam ter acontecido, que são semelhantes a uma hipotética verdade -, então isso restringiria consideravelmente o terreno da poesia. Creio, no entanto, que neste caso a verosimilhança deve ser olhada em sentido lato, sobretudo como um modo de fazer com que um poema seja capaz de induzir no leitor uma sugestão emocional ou um efeito de verdade, permitindo configurar uma zona de contacto apta a reflectir, ou melhor, a refractar um universo, e a transfundir para o leitor um eco - embora sempre distorcido, infiel ‑ da experiência veiculada pelo poema. Tal atitude não obriga, porém, ao confessionalismo ou a uma transposição biográfica, já que, mesmo para estes poetas ditos "da experiência", subsiste obviamente uma separação entre a personalidade do autor e a voz que enuncia ou protagoniza muitos dos seus poemas. Assiste-se, portanto, em diversa poesia actual - e talvez isto seja igualmente válido para Portugal -, a uma flutuação do sujeito lírico, a essa tendência para transformar o poema num texto ficcional, embora impregnado pela verdade de quem o escreve.
Esta questão prende-se com o conceito de poesia, hoje, e neste caso é o próprio Felipe Benítez Reyes a dar-nos a seguinte definição: "Poesia é a sensação que pode ser produzida por um bom poema" (p .13). Creio que poderia subscrever facilmente esta ideia - que valoriza essencialmente um efeito de leitura -, mas parecem mais discutíveis outras reflexões do mesmo Felipe Benítez quanto à natureza dessa sensação. É que, do seu ponto de vista, "a sugestão emocional provocada por um bom poema não é diferente (…) da que pode ser provocada pelo primeiro golo de um bom bourbon, a contemplação de umas pernas bonitas ou o cair da tarde numa bela paisagem. Quer dizer: uma sugestão intensa e fugaz que acaba por fazer da vida um assunto interessante e complexo" (p.16). Aqui, haveria que ressalvar uma diferença estética específica que individualiza a literatura, e que reside no facto de ela actuar em nós graças à linguagem verbal, o que não sucede com os outros casos citados por Felipe Benítez. As emoções comunicadas por um texto nascem sempre da associação de certas palavras umas às outras, e sobretudo por sentirmos que só aquelas palavras poderiam estar ali, naquelas posições especiais, como se não pudesse ser de outro modo. Ou seja, a linguagem da experiência não poderá, afinal, prescindir de uma intensa experiência da linguagem, para se transformar em poesia.
4. Igualmente relacionada com esta questão muito actual para os poetas mais novos, portugueses e de outras culturas - refiro-me ao equilíbrio sempre de algum modo instável entre palavras e emoções, e à capacidade de umas e outras serem ainda comunicantes -, está uma tendência também relativamente recente da poesia norte-americana, à qual se tem chamar do "expansive poetry": integrando numerosos poetas da nova geração, a expansive poetry costuma ser definida pela sua desconfiança face às vanguardas, mas também pela sua vocação geralmente narrativa e pelo relativo menosprezo da pesquisa puramente técnica, a favor de uma ênfase no sentido, carregada de fortes elementos dramáticos e narrativos. Afastando-se das correntes que exploram sobretudo os efeitos de linguagem, mas longe também do confessionalismo mais derramado, os poetas ligados à expansive poetry manifestam, além disso, uma certa predilecção por formas poéticas regulares, utilizando a métrica ou a rima de um modo flexível4.
Um dos melhores representantes desta atitude tem sido, a meu ver, o poeta Dana Gioia (n.1950), de quem passo a transcrever na íntegra o seguinte texto:

The stars now rearrange themselves above you
but to no effect. Tonight,
only for tonight, their powers lapse,
and you must look toward earth. There will be
no comets now, no pointing star
to lead where you know you must go.

Look for smaller signs instead, the fine
disturbances of ordered things when suddenly
the rhythms of your expectation break
and in a moment's pause another world
reveals itself behind the ordinary.

And one small detail out of Place will be
enough to let you know: a missing ring,
a breath, a footfall or a sudden breeze,
a crack of light beneath a darkened door.5

Numa rápida leitura da estrofe inicial, encontramos desde logo a noção de que havia, num tempo anterior, um ponto de referência - neste caso as estrelas, que, ao combinarem-se entre si, dariam origem a uma constelação orientadora, para a qual o poeta poderia dirigir o olhar em busca de um caminho. No entanto, se bem que esse movimento celeste ainda ocorra e as estrelas se tenham voltado a ordenar entre si, tal processo não origina nenhum efeito particular e, acima de tudo, não actua sobre o sujeito com nenhum poder, deixando-o a sós com a terra e com os seus elementos, longe da influência de quaisquer corpos celestes onde fosse possível discernir um norte. Todavia, apesar disso, o sujeito sabe para onde deve ir (v. 6) e continua a alimentar uma convicção quanto à finalidade desse percurso, embora tendo perdido qualquer bússola celeste que lhe indicasse um rumo definido.
Na segunda estrofe, deparamos com as consequências dessa falta de orientação, e o poeta é por isso aconselhado a procurar os mais ínfimos sinais terrestres, a descer aos mínimos pormenores que pareçam apresentar-se subtilmente diferentes ou perturbadores da ordem habitual. Desse modo se cria uma relação entre as expectativas do sujeito e os acontecimentos inesperados que vêm alterar tais expectativas, dando origem a nada menos que um "outro mundo" - um mundo que existe à superfície das coisas, que respira com elas, que é inerente à sua própria substância, mas que apenas consegue revelar-se para lá de tudo o que é considerado mais vulgar ou habitual, embora parta exactamente daí.
A tarefa do sujeito consistirá, portanto, em saber auscultar a orquestração quase imperceptível desses sinais à primeira vista insignificantes - tal como nos diz a última estrofe. Então, para encontrar o caminho, bastará reparar com atenção numa qualquer dessas pequenas alterações à ordem habitual das coisas visíveis: uma aliança que desapareceu, o sopro de uma respiração que não sabemos de onde vem, o ruído de passos que ecoam na noite, uma brisa que chega de súbito e nos roça ao de leve, enfim, tudo isso que no último verso se exprime como um pressentimento luminoso, uma luz muito rápida - "a crack of light" -, algo que mal se deixa entrever e logo se escoa sob uma porta obscurecida, uma porta por onde talvez nunca cheguemos a entrar.
5. Para terminar, direi que talvez um poema como o que acabo de ler possa simbolizar a posição que nesta viragem de século e de milénio é a de alguns novos poetas perante a escrita, e sobretudo o tipo de ligação que essa escrita é capaz de criar com o real e com as nossas percepções desse real: por um lado, sabemos que se perdeu a ilusão de um poder superior em cuja força se baseava a descoberta de um rumo, de uma orientação quase sagrada para o acto poético, mas simultaneamente sabemos também que, mesmo remetidos ao pequeno mundo das pequenas coisas que nos rodeiam, permanece inscrita uma espécie de lei que ainda comanda os nossos sentidos e os faz estremecer com alguns ínfimos sinais, detectáveis à superfície das coisas mais concretas, mas abrindo nelas uma porta obscura, que corresponde ao que há de desconhecido em nós mesmos e no mundo. Só esse desconhecido vale a pena quando se trata de poesia - e é dele que nos continuam e continuarão a falar os poetas ao longo do século XXI.


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1. José Ricardo Nunes, 9 Poetas para o Século XXI, Coimbra, Angelus Novus, 2002, p. 8. Como espelho possível dessa renovação, pode referir-se, por exemplo, a recente antologia Anos 90 e Agora (Famalicão, Quasi ed.), organizada por Jorge Reis-S.
2. Veja-se a recente polémica entre a crítica dita "universitária" e a crítica considerada "jornalística".
3. Luis García Montero, "La poesia después de la poesía", prefácio a Felipe Benítez Reyes, Poesía (1979/87), Madrid , Hiperion, 1992. Ver também, quanto a este assunto, o livro do mesmo García Montero e de Antonio Muñoz Molina, Por qué no es útil la literatura?, Madrid, Hiperion, 1993.
4. Veja-se a este respeito, por exemplo, o livro de Kevin Walzer, The Ghost of Tradition: Expansive Poetry and Pastmodernism, Story Line Press, 1998.
5. Este poema foi retirado do livro Daily Horoscope, Greywolf, St. Paul, 1986.



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RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Alguns aspetos da poesia contemporânea (António Guerreiro)

RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.



Alguns aspetos da poesia contemporânea*
António Guerreiro


Faute d'aura, au moins éparpillons nos effluves
Henri Michaux

De maneira mais ou menos informal e quase sempre tendo em vista esboçar, no campo literário, uma imagem de época, começaram a aparecer, nos últimos tempos, referências a um conjunto de novos poetas (que começaram a publicar há menos de uma década), responsáveis pela figura de uma "nova poesia" portuguesa. Evidentemente que nos movemos aqui num terreno vago e cheio de armadilhas. Antes de mais, porque esta noção de época surge desprovida do rigor de uma categoria historiográfica e não corresponde senão a um modo de temporalização da história imposto por uma noção jornalística de atualidade; em segundo lugar, porque fazer corresponder imediatamente a "nova poesia" aos poetas que começaram a publicar nos últimos anos (a década é a medida convencional de que geralmente nos servimos para este tipo de balanços) não é um critério que sirva para pensar qualquer espécie de historicidade da poesia: "nova" é também a poesia de alguns autores que, vindos de um tempo anterior, não se limitam a prolongar a obra; em terceiro lugar, porque este exercício acaba por resultar em listas de nomes que só conseguimos reunir usando critérios arbitrários e quase sempre "ad hoc". E, no entanto, mesmo conscientes de que assim é, habituámo-nos a conjeturar desta maneira, a trabalhar com estas hipóteses, dando forma, muitas vezes, ao que ainda não existe. Falando à maneira de Heidegger (e encorajados pelo facto de que, em Portugal, em termos genéricos, os poetas têm sido sismógrafos muito mais apurados do que os romancistas), procuramos detetar na poesia que se vai escrevendo e publicando uma "Stimmung", uma tonalidade, uma atmosfera epocal, mesmo sabendo que ela se revelará niveladora e monocromática.
Exercício diferente é aquele que consiste na verificação, mais ou menos contabilística, de novos nomes e novos livros. Aí, estamos num plano meramente quantitativo, ao qual só damos um significado estatístico. Falar da "nova poesia" significa que houve um momento em que se começou (digamos que a entidade que começou talvez não seja assim tão indefinida, mas também não é obra de um só indivíduo) a compor uma figura representável a partir de certos poetas e certos livros. Três antologias vieram propor visões de conjunto e dar alguma ordem ao que se apresentava ainda muito disperso: a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1997), de Pedro Mexia, Anos 90 e Agora (2001), de Jorge Reis-Sá e Poetas sem Qualidades (2002) de Manuel de Freitas. Se as duas primeiras têm um alcance mais ou menos panorâmico, cumprindo a função tradicional de facultarem uma representação abreviada de um universo alargado e diversificado, já a terceira adota uma visão marcadamente crítica, parcial e parcelar, procurando dar uma configuração muito precisa ao conjunto de nove poetas selecionados: são os "poetas sem qualidades", designação que o autor da antologia legitima, no prefácio, dando-lhe a consistência de uma quase-categoria crítica.
A ideia que entretanto se foi impondo (este número da Relâmpago é uma prova disso) de que um vasto conjunto de poetas tem vindo, nos últimos anos, a alterar o traçado do anterior mapa da poesia portuguesa, tal como ele tinha sido desenhado a partir do início dos anos 70 até quase meados dos anos 90, não surgiu, de um momento para o outro, como uma evidência. Pelo contrário, muitos destes novos poetas, tirando raros casos, tiveram uma receção muito discreta e só recentemente, quando se começaram a elaborar visões de conjunto (não apenas as que tiveram tradução nas antologias publicadas; também aquelas, informais, que fazem facilmente o seu percurso num universo tão minoritário como é o dos leitores de poesia), começaram a ser objeto de mais atenção, nos jornais e publicações que têm páginas de crítica literária. Há aqui algumas razões extraliterárias a ter em conta: as revistas mais ou menos especializadas são escassas e, nos jornais, o espaço dedicado à crítica é cada vez menor e impõe o modelo da recensão curta que pouco mais é do que uma notícia da saída do livro. Este modelo privilegia evidentemente a divulgação em detrimento da crítica e, por consequência, privilegia os livros que não existem senão para serem divulgados, em detrimento dos livros que não existem senão para serem objeto de leitura crítica. Um poeta, hoje, sabe que dificilmente pode romper este círculo, e aquilo a que temos vindo a assistir, enquanto fenómeno também novo, é a uma reconfiguração dos meios e dos modos de circulação da poesia. E o que é um facto é que se continua a editar muita poesia em Portugal, e ela continua a ter um grande peso na instituição literária (ao contrário do que se passa noutros países da Europa, onde se tornou um domínio quase esotérico).
Mas, para percebermos o que se passou com a receção da maior parte destes poetas, e para encontrarmos uma explicação plausível para que o efeito de conjunto tenha levado algum tempo a ganhar forma, precisamos também de ter em conta razões eminentemente intraliterárias. Antes de mais, há hoje um grande ecletismo, coexistem experiências que seguem tradições completamente diferentes, e a lógica geracional deixou, em grande parte, de servir como critério de ordenação: o contemporâneo segue vários caminhos paralelos, mostrando, aliás, de maneira eloquente, que a historicidade específica das obras literárias não se compadece com os métodos da clássica história literária, mas requer, como pretendia Benjamin, uma interpretação intemporal. E há, depois, uma outra razão: aquilo de que estamos sempre à espera e reconhecemos com facilidade é o poeta que se anuncia - ou é anunciado - como grande poeta, como uma irrupção triunfante. Por isso é que a metáfora da "revelação" tem servido para designar esta espécie de epifania. Ora, sendo muito embora impossível arranjar categorias unificadoras que funcionem como princípio de descrição da poesia mais recente, é no entanto possível dizer que há um "ethos" predominante: a modéstia como princípio constitutivo da autoconsciência do poema, a ausência de pretensões quanto ao que pode a poesia. Estamos aqui sob os auspícios de uma musa pobre, nos antípodas daquela que propiciava o "grande estilo". Esta inclinação para um tom voluntariamente menor prescinde das elevações que tornam a poesia mais facilmente audível.
Neste ponto, cruzamo-nos com a categoria dos "poetas sem qualidades", forjada por Manuel de Freitas. Se lhe quisermos dar um sentido meramente descritivo, retirando-lhe a dimensão programática - e, portanto, ao serviço da afirmação de um juízo de valor - que o autor da antologia lhe atribui, ela torna-se apta a designar muito mais do que os nove poetas antologiados. Mas sobre o que é que incide, verdadeiramente, uma tão genérica designação como esta, dos "poetas sem qualidades"? O prefácio é bastante esclarecedor, desde a primeira frase: trata-se de estabelecer uma relação de compromisso dos poetas com o seu próprio tempo, de dar à poesia a função de captar a contemporaneidade, assumindo assim uma historicidade sem complexos. Esta atitude implica, evidentemente, a rejeição dos vários puritanismos formais (sejam eles o formalismo esteticista ou o formalismo da reflexividade da poesia), assim como uma enorme desconfiança em relação a muito do lirismo da expressão subjetiva, visto como exercício inócuo, fascinado pelos seus consabidos efeitos. Prossegue-se, assim, uma das linhas da tradição moderna, aquela que segue as vias do anti-lirismo e do prosaísmo.
O que é que significa esta pretensa relação da poesia com o seu tempo? A questão, sabemo-lo muito bem, está longe de ser evidente, como nos mostra o facto de poetas tão diferentes uns dos outros terem reivindicado essa relação. A estética negativa de Adorno, com todo o seu arsenal dialético, defendendo a autonomia da arte e, por conseguinte, valorizando as obras que mais resistem ao processo de "reificação" social, não fez senão tornar as coisas bastante mais complexas do que o senso comum pode imaginar. Começamos a perceber melhor o que está em causa na questão da temporalidade a que surgem ligados os "poetas sem qualidades" quando lemos numa passagem do prefácio uma alusão a um pequeno texto em prosa, de Baudelaire, intitulado "La perte d'auréole". Conta-se, nele, a história de um poeta que perde a sua auréola no meio do tráfego do "boulevard" e recusa-se a voltar atrás para apanhá-la. Conhecemos a interpretação que Walter Benjamin fez desta parábola baudelairiana: ao perder a auréola, o poeta converte essa perda em ganho e desce do seu pedestal imaginário para vir ocupar um lugar no meio da multidão. Este poeta que, ao perder a auréola, passa a ser um poeta da prosa e deixa de ser uma paródia da figura trágica do poeta "buveur de quintessence", faz uma corajosa imersão na sua época, como quem dá um salto mortal. Trata-se verdadeiramente de uma experiência crítica: porque é uma relação conflituosa com a época que assim se inicia; porque este acontecimento expõe-no a si mesmo, sem "auréola", e expõe a poesia, retirando-lhe toda a base cultual, confrontando-a com o radical prosaísmo da época. Retirada ao culto que constituía o Ideal, a poesia desidealiza-se e perde aquilo a que Benjamin chama "aura". A conceção benjaminiana da aura supõe que nunca a arte chega ao estado de completa desauratização porque o processo artístico é sempre um processo de recomposição aurática, como mostram, de maneira eloquente, as "iluminações profanas" do surrealismo. Mas, na sua fidelidade a uma poética baudelairiana da imersão na contingência e na existência, subtraída a toda a posição cultual, sem idealização possível, Manuel de Freitas corre o risco da posição normativa que o deixa desarmado perante certas situações. É assim que, evocando a "intemporalidade" da poesia de Herberto Helder como um contraexemplo ou uma refutação daquilo que torna exemplares os nove poetas selecionados, o antologia dor, de maneira irónica (e mostrando-se consciente de algumas falácias do seu discurso), acrescenta: "Mas a um génio tudo se perdoa" (o «poeta-génio», recordemos, é precisamente a figura que Benjamin opõe ao poeta baudelairiano que perde a auréola).
Esta injunção obriga-nos a pensar que a contemporaneidade do poeta em relação ao seu próprio tempo é um problema complexo, e não estaremos à altura dele se não percebermos duas coisas fundamentais; 1) que o índice temporal de um poema faz apelo a um nível que não é só o que se manifesta à superfície; 2) que a poesia não se pode limitar a querer estar em ligação direta com a sua época; pelo contrário, se ela não quiser sucumbir à mera estetização, ao poetismo despotencializado, tem de afirmar uma não adesão crítica ao contemporâneo. Baudelaire fez-nos perceber isto muito bem, ao introduzir uma diferença radical entre "moderno" e "contemporâneo"; e, para Mallarmé, o moderno não é o que é atual, mas antes uma forma de virtualidade do tempo: um "presente" ausente porque está constantemente a furtar-se.
Os "poetas sem qualidades", não apenas aqueles que Manuel de Freitas inclui na sua antologia, mas também alguns outros que, sem esforço, tal categoria abrange, inserem-se numa tradição moderna que tem em Baudelaire a sua figura tutelar. O imperativo baudelairiano assim formulado: "Vous n'avez pas le droit de mépriser le présent", encontra uma reactualização que implica, ao mesmo tempo, a recusa de uma consideração puramente formal da poesia. Por outro lado, a poesia que reconhecemos neste modelo é radicalmente urbana, qualquer que seja o seu objeto. Encontramos aqui algumas características suscetíveis de provocar fortes resistências: a constante aliança com a prosa (o que significa também uma especial atenção ao prosaísmo da época), a passagem da lírica à discursividade, a ausência de compromisso com aquele "rigor" formal de que falava Valéry, a atenção à língua do quotidiano e à própria dimensão social da vida quotidiana. Lendo os novos poetas que podemos situar no interior deste quadro, percebemos facilmente que dele resulta boa e má poesia, que as coisas, felizmente, são complicadas e que, em última instância, é sempre a experiência da linguagem que define a poesia. Por isso é que um discurso de legitimação como o de Manuel de Freitas, no citado prefácio, comporta este risco: na medida em que constrói uma "poética" a partir de experiências singulares que não aspiravam, à partida, a uma tal elaboração programática (individual ou coletiva), ele introduz um mecanismo de valorização que incide especialmente sobre algo abstrato, sobre a tendência e o diferencial estilístico. Dito de outro modo: a ideia de uma "poesia sem qualidades" pode tornar-se bastante mais interessante do que alguma da dita poesia. E, nesse caso, estamos perante um discurso de legitimação passível (e digo "passível" porque se nos ativermos estritamente à referida antologia não é o que acontece, de facto) de ser posto ao serviço de um filisteísmo poético que só presta atenção ao elemento pragmático do poema.
Do lado oposto, quem acusa este tipo de poesia de não se afastar suficientemente do imediato, de se moldar pela banalidade da vida quotidiana, esquece-se muitas vezes que, neste caso, o golpe da magia poética, quando é conseguido, consiste precisamente em interromper aquilo que está diante dos nossos olhos, em provocar um ato de estranhamento que faz com que apareça como uma forma de experiência aquilo que estava escondido na repetição banal. Esta interrupção, que é um estado de exceção na regra da quotidianidade, revela as asperezas  que o hábito tinha alisado. Este quotidiano reclama a descoberta, a invenção, a construção. Desvelar-lhe o rosto é sempre mais difícil do que parece e significa descobrir o significado trágico do presente que não temos o direito de desprezar. Movemo-nos aqui num terreno onde, ao contrário do que alguns pensam, nem todos os gatos são pardos, onde continuam a ser facilmente reconhecíveis as mais fortes produções da poesia. Não esqueçamos que foi também no seio da realidade mais trivial que Baudelaire produziu um novo «heroísmo», ligado a uma radicalidade crítica perante o presente. Se tivéssemos de remeter estes novos poetas portugueses para uma disciplina do saber, diríamos que grande parte deles estão mais do lado da sociologia do que da linguística ou da filosofia.
Deste ponto de vista, a poesia surge completamente exposta, liberta de todos os resquícios idealizantes, ostentando as suas fraquezas até quase à negação de si própria, nos exemplos extremos. Como é fácil perceber, há aqui uma relação de continuidade com alguns nós fortes da modernidade. Por outro lado, nalgumas das suas características, esta poesia mais recente parece dar continuidade a uma poética surgida nos anos 70 (a qual teve desenvolvimentos diferentes, como sabemos) e que os textos teóricos de Joaquim Manuel Magalhães consolidaram quase como programa e também como reação à abstração formalista de alguma poesia anterior. Porém, questões que aí se tornaram importantes, como aquelas que decorriam de um «regresso ao real», fazem hoje pouco sentido. Agora, o real está aí, como uma presença inescapável, é dele que se parte e não a ele que se regressa.

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* Este texto, por contingências várias, foi escrito à distância de toda a bibliografia, primária ou secundária. Na ausência dos livros, seria recomendável não escrever uma linha. A não ser que aceitássemos essa distância como condição do nosso discurso e seguíssemos um caminho que não requer a presença dos textos e que tenta elaborar a memória que temos deles. Tentámos, assim, enunciar uma série de princípios gerais que fornecem o quadro para uma leitura de uma parte, que julgamos significativa, da poesia portuguesa mais recente. Nestas condições, preferimos não nomear poetas, a não ser aqueles que são responsáveis pelas antologias a que fazemos referência (e que, portanto, só surgem enquanto antologiadores).