sábado, 14 de março de 2015

O Zero que sofria de doença poética





 A TRISTE HISTÓRIA DO ZERO POETA

A si mesmo se dedica

Numa certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.

Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»

(Nos livros e nas seletas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)

Um «Oh!» lírico & profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!

E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;

além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;

e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!

A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...

Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.

E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!

Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»...

Manuel António Pina, O Pequeno Livro da Desmatemática



Audição do poema: aqui e aqui.

No poema «A triste história do zero poeta» o protagonista é o algarismo Zero, que revela uma densidade psicológica e afetiva muito distante da objetividade numérica, mas muito perto da vivência humana.
A manifestação do forte desejo de realização de «um sonho secreto» (Pina, 2001: 18), «fugir para o alfabeto» e tornar-se um «O» (note-se, aqui, a aproximação expressiva entre a forma do algarismo «0» e da letra maiúscula «O»), bem como a vontade de «dizer ao mundo» quer os «sonhos de glória, esperanças, / ânsias, melancolia, / recordações de criança», quer «um grande vazio de tipo existencial / e de uma caixa que um tio / lhe pedira para guardar; // e ainda as chaves do carro / e uma máscara de entrudo…» – porque «Não tinha bolsos, coitado, / guardava na alma tudo!» – fazem deste «zero dado à poesia» uma figura simultaneamente dramática e cómica.

Sara Reis Silva, “Coisas que não há que há: a escrita poética para a infância de Manuel António Pina” in Actas do 6º Encontro Nacional (4º Internacional) de Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração. Braga, Universidade do Minho, outubro 2006.










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