segunda-feira, 17 de março de 2014

RICOCHETE (Natália Correia)

    
 NATÁLIA CORREIA
         
         
RICOCHETE

Que margens têm os rios?
para além das suas margens?
Que viagens são navios?
Que navios são viagens?

Que contrário é uma estrela?
Que estrela é este contrário
de imaginarmos por vê-la
tudo à volta imaginário?

Que paralelas partidas
nos articulam os braços
em formas interrompidas
para encarnar um espaço?

Que rua vai dar ao tempo?
Que tempo vai dar à rua
onde o relógio do vento
pára na hora da lua?

Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
que num soluço suspenso
chora cá dentro por nós?
         
Natália Correia, Passaporte, 1958
         
         
         
Se em “De perfil” a anamorfose* realiza-se semanticamente, em “Ricochete” (1993, v. 1, p. 202-203), da obra Passaporte (1958), ela se revela no discurso, em sua circum-axilidade construída pelos questionamentos duplos colocados em avesso entre si.
O poema é desenvolvido sob a forma de um eixo, o dos referidos questionamentos, tal como cresce uma árvore em torno do caule, sem apresentar um lado frontal. As repetições de questionamentos seguem a estética surrealista de rutura com a lógica e constroem uma obscuridade alimentada pelas rimas finais em alternância. O título corresponde à ação ou ao acontecimento reflexo que responde a outra ação ou acontecimento; quer dizer: resposta. Trata-se de uma circum-axilidade não meramente semântica, mas principalmente formal. Se fosse semântica, seria simplesmente circularidade, mas ocorre algo a mais, na dimensão da escrita. Por isso, chama-se de circum-axilidade, que é o desenvolvimento ao redor de um eixo da escrita.
    
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista 
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 175-176
        
_________________
(*) Anamorfose, um termo advindo das artes plásticas e que significa desvio em relação à parte frontal, uma espécie de obliquidade. Adaptando o conceito à literatura, para Natália, tal como ela mesma escreve no prefácio de O surrealismo na poesia portuguesa(1973, p. 11), a anamorfose almeja a “depravação da perspetiva lógica”.
           
       
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Audição de “Ricochete” (excerto adaptado).
Música: Popular ("Não se Me Dá Que Vindimem" e "Meninas, Vamos à Murta" – Beira Baixa).
Intérprete: Ana Laíns (in CD Quatro Caminhos, Difference, 2010).
   

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).

          


  
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/17/ricochete.aspx]

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