quinta-feira, 6 de março de 2014

QUE TODOS VIVAM A SUA MORTE ENQUANTO É TEMPO (Natália Correia)


         
           
7 POEMAS DA MORTE E DA SOBREVIVÊNCIA
        
VI
         
Ao Francisco Sousa Tavares
           
Que todos vivam a sua morte enquanto é tempo
afagando-a como uma flor na consciência.
Desprendê-la que a desprenda o canto.
Que o canto é já sobrevivência.
Morre-se de pé com múltiplos espantos.
Florações que em nós perscrutam o mistério
embebidos nas luzes que acenderam
o nosso rosto num mundo mais etéreo.

Possui-se a morte progressivamente
como um corpo antes de ser tocado.
E tão fundo nosso sonho o penetrou
que nos gestos ficou continuado.
   
Natália Correia, Poemas, 1955
      
           
[…] Por sua vez, Natália Correia, ao construir uma poesia na qual predomina o intuito de fazer a palavra tornar audível o que fala no silêncio, apresenta a linguagem não como um elemento que afasta os seres humanos da integração total com o mundo, mas como algo direcionado a abrir os olhos para perceber “realmente” o mundo, sendo a mais poderosa forma de expressar o que está cristalizado pela natureza, realidade institucionalizadora. Os conflitos existenciais problematizados por sua obra levam em consideração o papel do poeta no mundo, atribuindo-lhe o poder de refletir sobre sua condição como ser humano. A linguagem “fala” em nome do homem naturalmente mudo, “rasgando” o silêncio da condição humana. Em alguns poemas, usa-se a redondilha maior, métrica das cantigas populares, para ironizar a complexidade das relações de sentido neles apresentadas.
Do mesmo modo que os fragmentos do poema de Natália nem sempre transmitem a sensação de leveza, a sintaxe contínua, nesse universo particular de expressão do ser lírico, também nem sempre revela tensão. É o caso de “Que todos vivam a sua morte enquanto é tempo” (1993, v. 1, p. 120), o sexto dos “Sete poemas da morte e da sobrevivência”, uma das secções da obra Poemas (1955).
Tematizando a morte, este poema é mais explícito em relação ao elemento de que trata. […] O poema de Natália não é tão duro quanto o de Orides, apesar de ser apresentado como um dos “Sete poemas da morte e da sobrevivência” e de inscrever logo no primeiro verso o signo “morte”. Ambiguamente, a escolha lexical confere suavidade ao referido signo, atribuindo-lhe propriedades de “vida”: “afagando-a”, “flor”, “desprendê-la”, “sobrevivência”, “florações”, “gestos”, “continuado”. Além disso, um tom erótico também é tecido na segunda estrofe, na comparação entre possuir a morte e “um corpo antes de ser tocado”.
A sintaxe contínua entre a maioria dos versos, com exceção do terceiro, do quarto e do quinto, permitiu ao poema construir uma teia de relações, modalizando a ação de viver a morte, associando a concretude do rosto à abstração do mistério perscrutado pelas florações, comparando a adjacência da morte à possibilidade de o corpo ser tocado e remetendo ao corpo em disforia a vivacidade do sonho do ser pluralizado “nós”. A forma plural do ser é, aliás, a mesma de “Sete poemas do pássaro”, reforçando, pela indiciação da coletividade na qual se organizam e à qual se vinculam os seres humanos, a universalidade da morte.
      
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 84-87
        

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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/06/VI.poema.da.morte.e.da.sobrevivencia.aspx]

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