domingo, 5 de janeiro de 2014

E EIS QUANTO RESTA DO IDÍLIO ACABADO (Camilo Pessanha)


   
   
NO CLAUSTRO DE CELAS 

Eis quanto resta do idílio acabado, 
— Primavera que durou um momento... 
Como vão longe as manhãs do convento! 
— Do alegre conventinho abandonado... 

Tudo acabou... Anémonas, hidrângeas, 
Silindras — flores tão nossas amigas! 
No claustro agora viçam as ortigas, 
Rojam-se cobras pelas velhas lájeas. 

Sobre a inscrição do teu nome delido! 
— Que os meus olhos mal podem soletrar, 
Cansados... E o aroma fenecido 

Que se evola do teu nome vulgar! 
Enobreceu-o a quietação do olvido, 
Ó doce, ingénua, inscrição tumular.
Camilo Pessanha



TEXTOS DE APOIO
  
E eis quanto resta do idílio acabado. Lilás Carriço (1977)
Realismo e Simbolismo em ClepsidraJoão Camilo (1984)
Amor, companheirismo e conhecimento intersubjetivo. A melancolia e os seus objetos. João Paulo Barros de Almeida (2009)
Análise temático-concetual da Clepsidra de Camilo Pessanha sob o signo da ViagemIvo Cota (2013)

  

«E EIS QUANTO RESTA DO IDÍLIO ACABADO»
Sempre a frustração resultante da efemeridade de tudo ‑ que o poeta simboliza nas hidrângeas, silindras em contraste com as ortigas, as cobras ‑ o nada a que a vida, com as suas desilusões, se resume. Começa com a presentificação que empresta ao soneto um certo tom confessional não vulgar na sua poesia. Os tempos verbais passado e presente alimentam este clima. Uma recordação saudosa ‑ 1.ª quadra vai sendo tocada de ligeiro tom de troça como vemos ao terminar. Por vezes o ritmo abranda e o vocabulário é escolhido ‑ fenecido... olvido. Vive o presente a pensar no passado.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977), p. 349.
  
  
*
  
  
REALISMO E SIMBOLISMO EM CLEPSIDRA
Se a alternância da atitude nostálgica e contemplativa com a atitude de interrogação aparece como uma característica incontestável da poesia de Camilo Pessanha, o vaivém entre a realidade interior ou a situação individual, particular, e a realidade exterior ou a situação de ordem mais geral também deve ser posto em evidência. Os dois processos confundem-se de resto por vezes, pois são utilizados simultaneamente.
No Claustro de Celas”, por exemplo, inicia-se com um verso que se refere a uma situação psicológica particular ou a um estado das relações entre duas pessoas: «Eis quanto resta do idílio acabado». Em seguida o sujeito do poema evoca a «Primavera que durou um momento...» e lamenta-se, com nostalgia: «Como vão longe as manhãs do convento!» O verso seguinte «‑Do alegre conventinho abandonado…») repete com obsessão, explicando-a (e tomando a referência mais precisa), a evocação do terceiro verso da quadra. Como se vê, para dar a dimensão desejada à afirmação do primeiro verso, em que se anuncia de maneira direta o fim do idílio e se sugere o sentimento pessoal (nostalgia, lamento, tristeza) do sujeito do poema a propósito dessa rutura, o poeta evoca a realidade exterior, o cenário em que se tinha desenrolado o tempo de idílio. A Primavera é aqui não só a estação do ano, mas também e sobretudo um tempo simbólico de plenitude e felicidade. E a distância temporal («Como vão longe as manhãs do convento») permite também essencialmente exprimir a mudança que se verificou entretanto (da felicidade à infelicidade). Essa mudança ‑ o fim do idílio, a rutura ‑ é assinalada pela evocação do «alegre conventinho abandonado», frase na qual o adjetivoalegre e o diminutivo conventinho exprimem nostalgicamente o tempo de felicidade e em que abandonado introduz o sinal do contraste, da mudança que entretanto se verificou. O poeta fala da realidade exterior, mas a maneira como fala dessa realidade evoca, simbolicamente, sobretudo a modificação verificada na realidade privada, nos sentimentos e na vida interior. Na segunda quadra a frase «Tudo acabou...» repete, pelo seu carácter de afirmação direta, a ideia do primeiro verso (o fim do idílio). Mas de novo é através da evocação do cenário exterior da ação, do lugar do idílio, que o poeta exprime, metonimicamente e simbolicamente, o contraste (vivido dolorosamente) entre o passado e o presente. Antes, quando o idílio durava, as flores eram «tão nossas amigas»; agora, separados e ausentes os dois protagonistas do idílio, no claustro «viçam as ortigas» e «Rojam-se cobras pelas velhas lájeas». Se a evocação contrastada do cenário em que se desenrolou o idílio não servisse antes de mais nada para sublinhar simbolicamente a diferença entre o tempo antigo de felicidade e o tempo atual de tristeza, tal evocação talvez não se justificasse aqui. O poeta só é levado a evocar o quadro exterior do tempo de idílio porque ele permite, através do sublinhar das diferenças, exprimir a situação individual e a realidade interior, acentuar a solidão e a tristeza atuais. É isso que explica que as duas frases em que diretamente se refere a rutura e a mudança (o primeiro verso do poema e a frase «Tudo acabou...») sejam seguidas da evocação da paisagem que foi testemunha e cúmplice do idílio e que agora consumada a separação, se encontra ao abandono. O poema explica-nos, no entanto, as razões da rutura, da mudança, do fim do idílio: ela (embora o poema não seja explícito a este respeito, não temos razões para pensar que se refere a um homem... ) morreu. Compreendemos também que o sujeito do poema (protagonista e sobrevivente do idílio) voltou ao lugar da felicidade antiga e que as cobras e as ortigas cobrem a «inscrição» do nome já «delido» da amada; maneira ainda de sublinhar a passagem do tempo, a diferença entre o passado e o presente. A alusão direta aos olhos que «mal podem soletrar, / Cansados...» põe em relação clara a realidade exterior e a subjetividade que a interpreta, tornando explícita uma relação apenas implicitamente expressa antes. Mas a descrição do comportamento é simbólica e ao referir-se ao seu cansaço e ao «aroma fenecido» o sujeito do poema sugere sobretudo a infelicidade atual, a passagem dolorosamente sentida do tempo, a sua nostalgia e o sentimento de impotência perante a morte. A alusão à realidade interior e à realidade exterior alternam, explicam-se mutuamente, e acabam por confundir-se no fim do poema, quando aquele que conheceu o amor assinala a sua presença sobre o local da felicidade antiga.
[…]
De que maneira é que a poesia de Camilo Pessanha fala da pessoa?
A poesia de Camilo Pessanha, porém, não se limita a evocar a «pessoa» designando-a pelo que ela tem de «tipo» ou pelo «papel» que lhe cabe desempenhar na estrutura social e nas relações com as outras pessoas. Num caso pelo menos Camilo Pessanha fala (duas vezes) do «nome» da amada; mas não cita esse nome «delido» e «vulgar» (No Claustro de Celas), o que prova de novo que o que conta é a situação evocada e a figura evocada no que elas têm de redutíveis à experiência comum, aos valores da comunidade em que se integram o escritor e o leitor.
João Camilo, «Realismo e Simbolismo em Clepsidra», Boletim de Filologia, tomo XXIX, 
Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa, 1984, pp. 298-300, 308.
  
  
*
  
  
AMOR, COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
Também no soneto, «Eis quanto resta do idílio acabado», pressupõese uma relação amorosa correspondida, mas que a morte aniquilou. A sua felicidade, de «um momento» embora, é sugerida pelo termo pastoril «idílio», pela sua metáfora «Primavera» que é reforçada pela colorida beleza das «amigas flores», «Anémonas, hidrângeas,/ Silindras», pelo espaço em que idílio e flores desabrocharam «alegre conventinho abandonado», cujo diminutivo ressuma ternura, e pelos epítetos da inscrição tumular, na invocação final: «Ó doce, ingénua, inscrição tumular.».
«Doce e ingénua» seria a amada e doce e ingénuo o idílio. Mas foi fugaz a felicidade, e é esta efemeridade que conta; a felicidade não é recuperada ou revivida pela recordação, os olhos estão cansados: é o que o primeiro dos versos destaca  «Eis quanto resta do idílio acabado» o nome tumular da amada a esbaterse, entrevisto por entre «urtigas» e «cobras» serpenteando por entre as ruínas do claustro.
[…]

A MELANCOLIA E OS SEUS OBJETOS
O momento do derrame melancólico não é o do deflagrar da tragédia, chocante, violento, mas o momento posterior, o das suas consequências e da sua perdurabilidade em ruínas e vestígios. Alguns poemas iniciamse, marcando explicitamente esse momento reflexivo posterior (por exemplo, «Depois da luta e depois da conquista», «Eis quanto resta do idílio acabado», «Quando voltei encontrei os meus passos», «Depois das bodas de oiro», «Parei a cogitar», «Porque o melhor, enfim»). A fixação nos vestígios do que foi, na decomposição do orgânico no inorgânico tem como contrapolo, remontando o fluxo da vida, o deterse na fase embrionária, latente da vida: as cores represadas no limbo e os abortos parados, embebidos no líquido morto de vasos de laboratório no «Poema final». A vida, a existência é um breve e doloroso intervalo entre extremidades onde mora o não ser;
‑ a efemeridade das flores, a secreção de morte que libertam com o desmanchar da sua beleza (as «Anémonas, hidrângeas,/ Silindras, – flores tão nossas amigas!», decoração conivente com o idílio, desaparecidas e substituídas pelas urtigas, planta agreste, repulsiva, em «Eis quanto resta do idílio acabado»; a «Dália a desfolharse  o seu mole sorriso…», o seu deperecimento suave, levemente irónico, levemente resignado, em «Foi um dia de inúteis agonias.»; «Putrescina: ‑ Flor de lilás./ Cadaverina: ‑ Branca flor do espinheiro!», as flores despidas das suas galas pela ação purificadora do sal e do sol, reduzidas à podridão, em «Roteiro da Vida»);
‑ a errância, o errar sem saber ou não querer saber para onde se vai, o «não sei por onde vou, sei que não vou por aí», o estar bem onde não se está («Que eu desde a partida,/ Não sei aonde vou.», «Nem sei de onde venho»).
Sentimento e Conhecimento na Poesia de Camilo PessanhaJoão Paulo Barros de Almeida, 
Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, pp. 89, 112-113
  
  
  
  
ANÁLISE TEMÁTICO-CONCETUAL DA CLEPSIDRA DE CAMILO PESSANHA SOB O SIGNO DA VIAGEM
Neste poema a noção de viagem não é tão evidente como no poema anteriormente abordado. Aparentemente o tema da Viagem é aqui incompatível. No entanto, atentando à estética simbolista do autor, em que o signo e a imagem são a essência da produção poética, não devemos esquecer que no poema anterior a viagem ganha forma somente sob o signo do caminho. Assim, e recordando o carácter temático-conceptual deste ensaio, teremos que atentar na temática do presente poema para chegar à viagem.
No Claustro de Celas” é um poema que primariamente estabelece um contraste entre o Antes e o Agora. Assim, a viagem deve ser entendida, não no seu sentido convencional, mas como uma viagem temporal, que pressupõe uma mudança entre esse Antes e esse Agora, valorizando o Passado (tónica temática da poesia de Pessanha). As imagens ganham agora relevo para estabelecer esse contraste: o Passado é referido através de imagens cujas conotações são positivas, embora apareçam aparelhadas com a ideia de passado sem retorno (“idílio acabado”, “Primavera que durou um momento”, “alegre conventinho abandonado”, “Tudo acabou… Anémonas, hidrângeas, / Silindras – flores tão nossas amigas!”). Em contrapartida, as imagens que retratam o presente têm sempre uma conotação negativa, aparecendo ligadas à decadência do que outrora prosperou e sem qualquer vocábulo amenizador aparelhado com essa conotação negativa (ao contrário do que acontece com as imagens do passado): “No claustro agora viçam as ortigas, / Rojam-se cobras pelas velhas lájeas”, “Sobre a inscrição do teu nome delido!”, “E o aroma fenecido”. A viagem é, assim, vista uma vez mais como algo negativo, conduzindo à decadência, roubando o passado ao sujeito poético e arrastando-o para um futuro que o mesmo teme e desconhece.
Secundariamente, o poema sugere ainda uma relação amorosa que se perdeu com o Tempo, um amor que foi arrancado ao sujeito poético pela nefasta e inevitável viagem temporal. Digo amor devido à escolha vocabular de Camilo Pessanha no primeiro verso do soneto: “idílio”; podendo transmitir apenas a ideia de sonho e/ou fantasia, este vocábulo remete também para um tipo de poesia amorosa em contexto bucólico, podendo por isso sugerir “amor simples e puro” que no caso do presente poema terá sido arruinado pela morte (“Ó doce , ingénua, inscrição tumular”). Uma vez mais a viagem surge com uma conotação destruidora e negativa, agravada pela sua inevitabilidade e impossibilidade de retorno. O porvir é por isso um destino sempre temido pelo poeta, para o qual o mesmo se vê involuntariamente e interminavelmente arrojado.
Trabalho realizado para a cadeira de Literatura Portuguesa III, Universidade de Évora.
 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/05/no.claustro.de.celas.aspx

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).

 
   “SANTOS, HERÓIS E MONSTROS: O CLAUSTRO DA ABADIA DE SANTA MARIA DE CELAS”, DE CARLA VARELA FERNANDES




No contexto das comemorações recentes dos 800 anos da fundação da abadia cisterciense de Celas, perto de Coimbra, gostaríamos de recomendar uma obra recente da Profª. Carla Varela Fernandes dedicada aos capitéis historiados da abadia cisterciense, únicos dentro da escultura da arte gótica em Portugal.

Depois de uma breve introdução sobre a fundação da comunidade monástica pela rainha Sancha, uma das famosas irmãs de Afonso II, e alguns comentários interessantes sobre a cronologia e planta de Celas – à espera do seu estudo de arqueologia da arquitectura, na medida em que parte da igreja em si pode ser anterior ao século XVI -, o estudo foca-se na iconografia dos capitéis. Esta escultura de organização complexa, talvez desenhada com o propósito de corresponder a rituais processionais da comunidade monástica, representa não só várias passagens do Novo Testamento, como também monstros e figuras subversivas como bailadeiras, santos importantes para um cenóbio cisterciense como S. Bento e S. Bernardo, um Santiago Cavaleiro de Cristo que corresponderá a uma versão precoce do Santiago Mouros – justificado pelo facto de Celas se encontrar num dos Caminhos de Santiago – ou a representação curiosa do Voo de Alexandre, uma representação única de um excerto do “Romance de Alexandre” em Portugal com poucos paralelos na Europa, para não falar de vários pormenores deliciosos como a representação raríssima de uma ponte medieval. E, como cereja no topo do bolo, o trabalho da autora nas reservas do Museu Nacional de Machado de Castro permitiu identificar outros dois capitéis originais do mosteiro, incluindo um com o escudo de armas da patrona desta construção, Berengária Aires de Gosende, o que permite datar a obra no último quartel do século XIII. 

Argumentado sempre com grande erudição ao comparar constantemente a iconografia local com exemplos de toda a Europa Ocidental e ao pensar nela como um “corpus” em constante evolução – sempre refrescante quando é tratada frequentemente de forma mais estanque -, o estudo de Carla Varela Fernandes constitui-se como um contributo assinalável para compreender uma das jóias “escondidas” da escultura medieval em Portugal.




(Última atualização: 2022-08-03) 

]

Sem comentários: