quarta-feira, 29 de maio de 2013

Estar numa ilha é um modo de vida


     








INSULARIDADE: ILHA − UTOPIA, ISOLAMENTO, ENCANTAMENTO

Desde os tempos primordiais que as ilhas e a vida nesses territórios isolados, de reduzida dimensão e perdidos nos oceanos, despertam curiosidade, favorecendo a imaginação, estimulando a criatividade e a escrita do romance. Na literatura e no imaginário Ocidental há lugar para ilhas que guardam tesouros, que são povoadas por raças e espécies de fauna e flora inusitadas, que acolhem florescentes reinos inacessíveis, que são santuários de civilizações extraordinariamente avançadas. Apesar de garantirem o acesso aos territórios insulares por vários meios e em qualquer altura − a maioria das ilhas e a vida que nelas acontece estão hoje ao alcance de qualquer um através da internet − as novas tecnologias revelaram-se, porém, incapazes de retirar a esses espaços um poder icónico que continua a garantir-lhes uma força atrativa consagrada pela literatura ao longo de séculos.
A condição especial desse tipo de territórios levou, por exemplo, Thomas More e José Saramago a transformar penínsulas em ilhas, criando as condições necessárias ao ensaio de novas soluções económicas ou políticas para a humanidade, no caso do primeiro, ou de caminhos alternativos, no caso do segundo.
Fisicamente apartados − o fundador da Utopia destruiu o istmo que ligava a ilha ao continente e fenómenos sobre-humanos determinaram a rutura da Ibéria face ao continente Europeu, obrigando-a a navegar, qual Jangada de Pedra, sem rumo no vasto Atlântico − ambos os territórios ganham dinâmicas internas que impõem, por si só, outras formas de organização.
Se em More essa nova ilha “afortunada” surgia com o propósito de pôr em evidência as falhas do sistema económico, político e social britânico, contrapondo-lhe um regime supostamente perfeito, em A Jangada de Pedra pretende-se questionar a opção portuguesa pela integração europeia. Não deveria Portugal optar por uma relação privilegiada com a Espanha, companheira de viagem, e com as suas antigas colónias? Eis a questão lançada por Saramago.
Como sobrevive e reage um europeu do século XVIII sozinho e entregue à natureza durante um largo período de tempo? É outra das interrogações a que a literatura que tem as ilhas por cenário pretende responder em Robinson Crusoé. Claro que a obra emblemática de Daniel Defoe não se fica pela abordagem dessa questão, uma vez que usa também a ilha como espaço propício à reflexão sobre temas tão primordiais como a condição humana ou a religião. O mesmo se passa com As Viagens de Gulliver, em que Jonathan Swift, fazendo o seu herói cumprir um périplo por ilhas com sistemas de poder e de organização diversos, volta a destacar a crítica ao comportamento político e humano da sociedade europeia do seu tempo. Em A ilha debaixo do mar, Isabel Allende propõe outra possibilidade de resposta associada à condição de ilhéu – espaço de consolação e de realização daqueles que nunca em vida podem ser felizes, os escravos. Conta a escrava Zarité, protagonista da obra, numa referência a essa ilha mítica:
Ainda ontem estive a dançar na praça com os tambores mágicos de Sanité Dedé. Dançar e dançar. De vez em quando, aparece Erzuli, a loa mãe, loa do amor e monta Zarité. Então vamos as duas a galopar visitar os meus mortos na ilha debaixo do mar. É assim (2009: 511).
     Pelo menos para os que vivem em continentes ou em ilhas cuja dimensão se lhes assemelha as regiões insulares surgem identificadas como realidades exóticas, em que serão possíveis modos de vida sonhados e um homem feliz num mundo encantado, maravilhoso, afortunado. Seja pela singularidade do seu microcosmos, pela presença constante de mar e céu ou pela intimidade e solidão que proporcionam, as ilhas têm habitado o imaginário dos povos desde a lendária Ítaca de Ulisses e Penélope. E hoje, mesmo sabendo que já não há ilhas por descobrir, o homem continua à procura, através das mais variadas formas de arte ou meios de construção e expressão simbólica, do espaço insular como território de refúgio, de surpresas e de realização do sonho.
     Mas para muitos autores, sobretudo para os que nelas vivem, as ilhas podem, pelo contrário, ser espaços de degredo e purgação, de sofrimentos e dor. Em As lhas Desconhecidas, Raul Brandão, um autor que viveu o drama do isolamento e das difíceis condições de subsistência no arquipélago durante dias numa visita ao Açores faz um retrato particularmente dramático da vida na região. Numa referência em particular ao Corvo escreve:
Sinto-me encerrado num presídio e a minha vontade é fugir: a vida monótona tem um peso com que não posso arcar. Já não suporto a existência natural. Nem poderia viver como os corvinos ali preso aos vivos e aos mortos, com o Tempo lá no alto a presidir a todos os atos necessários e fatais da vida rudimentar (2002: 21).
Ainda que enquadrada na explicação para a ausência de mendicidade e miséria, a sensação de cerco, especialmente vivenciada nas ilhas em consequência de uma exposição permanente ao olhar dos outros e à obrigação de uma absoluta submissão às leis e costumes coletivos, tinha já sido aludida por More:
[Na ilha da Utopia] Está cada um constantemente exposto aos olhares de todos os outros e vê-se na necessidade de trabalhar e de descansar segundo as leis e costumes do país. Desta vida pura e ativa resulta em tudo abundância. O bem-estar difunde-se igualmente por todos os membros dessa admirável sociedade, onde mendicidade e miséria são monstros ignorados (1978: 94).
Helena Marques, uma escritora madeirense contemporânea, também alerta para o peso do isolamento imposto à condição insular, justificando com essa circunstância a regular necessidade de “fuga” admitida pelo médico Marcos, personagem central de O Último Cais:
Ele acabou, contrafeito e reticente, por admitir a palavra fuga: pois então é de fuga que se trata, Marcos. Não de mim, amor, ou até confessa, um pouco também de mim. Mas sobretudo fuga do tédio, do consultório, do hospital, dos doentes, das visitas obrigatórias, dos passeios sempre iguais, das conversas sem surpresa, das mesmas caras e das mesmas cenas, ano após ano (1995: 25).
Ainda recentemente, e depois de uma viagem pelos Açores cujo relato parece pretender desmontar alguns dos mitos sobre a vida em ilhas, Joaquim Manuel Magalhães escreveu acerca das Flores: "Houve uma ilha em que nada tinha à minha espera nem nada encontrei. Apenas taxistas com carros poluentes, o cheiro da gasolina e os escapes do motor inundado os bancos de trás cujas janelas era impossível de abrir" (1993: 27), acrescentado um pouco mais adiante: "Vi uma ilha tão isolada e conflituosa no interior de si mesma, povoada além dos esperáveis sexismos, por ataques de casta e de racismo (a chegada de trabalhadores cabo-verdianos para a construção do talvez absurdo porto das Lajes é motivo de ignaras chacotas)" (idem: 28) .
Embora tenha espelhado em variadas das suas obras as dificuldades específicas da condição de vida na insularidade, em títulos como Paço do Milhafre, Mistério do Paço do Milhafre ou Corsário das Ilhas, Vitorino Nemésio parece mais conciliado com condição ilhoa, a que atribui, aliás, determinadas vantagens:
Um continente é uma coisa muito grande e incerta para mim. A ilha é mais curta. Sai melhor das águas. De longe parece um pão. Ao perto é o que é: uma rocha com casas; gente dentro. Em geral há muito peixe, alguma caça e pastagens. Como há pastagens, há carneiros e, havendo carneiros, há lã para a gente vestir. Pode-se morrer descansado numa ilha. A cova nem por isso é mais curta. (2000: 38).
Particularmente críticos sobre as condições de vida que a ilha proporciona e acerca de uma superestrutura (traços económicos, políticos e culturais prevalecentes) que condiciona o modo de ser insular são, de modo especial, dois dos principais escritores contemporâneos, João de Melo e José Martins Garcia. Se em O Meu Mundo não é Deste Reino e Gente Feliz com Lágrimas, João de Melo retrata a miséria da condição humana na sua freguesia natal na ilha de S. Miguel e a obrigação de sair para sobreviver, em O Medo, A Fome e Contrabando Original, Martins Garcia reporta-se tanto a esses temas como à permanente condenação do insular pela sua origem: vá para onde vá, leva a ilha consigo.
Afonso Alberto Pereira Pimentel, Identidade, globalização e açorianidade
(Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais: Dinâmicas Insulares). 
Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013, pp. 25-29.



       
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/05/29/Chrys.Chrystello.aspx]

terça-feira, 14 de maio de 2013

A EXALTAÇÃO DA PELE (Natália Correia)


 
                



O sentido da violência erótica violadora da interdição […] se explicita na declaração poética de outra portuguesa, Natália Correia, que une a vivência do excesso à consciência da dimensão telúrica da mulher:
         
A EXALTAÇÃO DA PELE
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
         
Natália Correia, Poemas, 1955
            
No poema, que já traz no título: “A exaltação da pele”, a inscrição da intensidade, com que se quer recriar a libido feminina desreprimida, se inicia com o desejo da experiência dos violentos movimentos da paixão. Em nome desse desejo, um eu feminino, sabedor de sua existência corpórea, abandona a pureza (“sem lírios”), a passividade (“sem lagos”) e a inexpressividade (“sem gesto vago”) exigidos pela interdição patriarcal do prazer e se projeta no discurso pela sua dimensão animal (“fêmea”), instintiva. Livre de condicionamentos, sua identidade inclui o reconhecimento de seu poder de sedução (“como as sereias”) e o erotismo é requerido pela amante, para além do sonho (3º e 4º versos) e com a força das marés (a sua metade é agora “mar” e não mais serena como os lagos).
A referência poética ao existir “suspensa de mundos cintilantes pelas veias”, numa leitura possível, parece-nos conduzir para o estado pletórico dos órgãos, no momento da conexão erótica.
Na dicção nataliana, todo esse conjunto metafórico constrói a imagem de um “erotismo ardente” (BATAILLE, 1980, p. 36) a ser buscado pela mulher, como um dos modos de desopressão ecológica da subjetividade.
     

Já em “Cosmocópula”, Natália Correia cria um universo erotizado, pelo poder genesíaco de sucessivamente exceder-se, tal qual acontece ao corpo na cópula. Sua carga imaginal propicia-nos a perceção da unicidade cósmica, do todo interconectado. Assim:


Bizarre and vulgar illustrations from illuminated medieval manuscripts
The Flying Green Penis Monster,
from Decretum Gratiani with commentary
 of Bartolomeo de Brescia, Italy, 1340-1345
       

     


      
COSMOCÓPULA
         
I
        
Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras
      
II
   
O corpo é praia
a boca é a
nascente
e é na vulva que
a areia é mais sedenta
poro a poro vou
sendo o curso de 
água
da tua língua 
demasiada e 
lenta
dentes e unhas 
rebentam como 
pinhas
de carnívoras plantas 
te é meu ventre
abro-te as coxas e 
deixo-te crescer
duro e cheiroso como o 
aloendro
     
         

Ancient roman gold ring with a depiction of phallus
 (symbol of fertility and good fortune).



Ora pelo recurso das metáforas, ora pelo dos símiles, vai-se espraiando a sexualidade, em sua analogia com a força e os elementos naturais – espraiamento que, opondo-se à fixação do relacionamento sexual naquelas partes do corpo ligadas à reprodução, promove a reavaliação poética do que, historicamente, tem dado significado à expressão corporal, territorializando-se existencialmente suas pontuações eróticas. Valoriza-se o prazer, pondo-se em alerta todos os sentidos imbuídos da Natureza e, assim, questiona-se o já cristalizado socioculturalmente, em favor de uma realização mais plena da comunhão dos corpos sem barreiras ao gozo feminino.Esse processo reavaliador aponta para uma nova economia libidinal, onde a figura da mulher é construída através da consciência da seletividade e da ultrapassagem do domínio genital masculino, incluindo cada “poro” “dentes e unhas”, o excesso e o prolongamento (“...vou sendo o curso de água/ da tua língua demasiada e lenta”) do “mergulho” ecologicamente preparado pelos amantes.
       
        

   
          
    
   Poderá ainda gostar de ler:


► A espacialidade erótica/ecológica em poetisas portuguesas contemporâneas”, Angélica Soares, TERCEIRA MARGEM: Revista da Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano VI, nº 7, 2002.




                                        
Ilustração de Cruzeiro Seixas na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica

        
NATÁLIA CORREIA TEVE PARTICIPAÇÃO ACTIVA NA HISTÓRIA DAS EDIÇÕES AFRODITE. Foi a responsável pela composição da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, edição pela qual respondeu em Tribunal. Escolheu os autores e poemas, escrevendo ainda o prefácio e as notas bibliográficas. Posteriormente, "avalizou" a edição pirata da Antologia, após o "desbaste" que as forças policiais do Estado Novo deram a alguns exemplares da edição original. Na editora de Fernando Ribeiro de Mello publicou três livros: um de poesia, intitulado O Vinho e a Lira (também alvo da censura), e duas peças de teatro: O Encoberto e Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, esta numa luxuosa edição, da qual existem mil e quinhentos exemplares numerados e autografados pela autora. Escreveu ainda um dos comentários à Arte de Furtar. Da edição original da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, há uma tiragem especial de 500 exemplares numerados e autografados pela escritora nascida nos Açores. Nesta Antologia, Natália Correia apresenta-se assim:
Natália de Oliveira Correia, nasceu em 1923 na ilha de S. Miguel (Açores) vindo, criança para Lisboa, onde fez os seus estudos liceais.
Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comodidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia. Trata-se de um equívoco em que facilmente resvalam quantos não discernem a poesia senão através de esquemas. A verdade apresenta um aspecto totalmente inverso desta interpretação. Entendendo a poesia como substância mágica desorbitada da sua funcionalidade primitiva, que o poeta desespera por restituir à sua natureza orgânica primordial, afim de a tornar eficaz na recriação do mundo, por esta linha, «ante» e «post» surrealista, se presta a poesia de Natália Correia a ser integrada num movimento que não inventou mas apenas focou esta intrínseca constante do fenómeno poético.
Publicou teatro, ensaio e os seguintes livros de poesia: «Poemas» (1954); «Dimensão Encontrada» (1957); «Passaporte» (1958); «Comunicação»(1960) e «Cântico do País Emerso» (1961).
O erotismo, como ressumbração de uma vivência amorosa individual está longe de caracterizar a obra desta poetisa. Todavia, no sentido lato de um universo erotizado, animado pela impaciência genesíaca de sucessivamente se exceder, é-lhe gradual o desenvolvimento da perspectiva erótica que se afirma, sobretudo, em «Cântico do País Emerso». Esta evolução corresponde a um aprofundamento do mistério telúrico da mulher, que é a própria jornada da sua poesia, resultado no comprazimento de se observar como força genesíaca, deslumbradamente actuante na cópula primordial que a terrena espelha.

► "EDITOR CONTRA: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite"


"EDITOR CONTRA: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite"
http://www.montag.com.pt/editorcontra.html

LIVRO DO ANO EM 2015 no OBSERVADOR e no EXPRESSO

Pré-publicação no OBSERVADOR: http://observador.pt/espec…/sade-salazar-e-o-dali-de-lisboa/

"Uma aprofundada investigação sobre uma figura incontornável da cena cultural portuguesa, resgatando-a do enxovalho da memória"
DIOGO VAZ PINTO / JORNAL i / http://goo.gl/EIhMSQ

"Livro exemplar"
JOSÉ MÁRIO SILVA / EXPRESSO / http://goo.gl/SPx3o8

"A homenagem que aqui se lhe presta não podia ser mais justa"
SARA FIGUEIREDO COSTA / BLIMUNDA /http://www.josesaramago.org/blimunda-44-janeiro-de-2016/

"Inegável bom gosto gráfico e paginação elegante"
JOÃO MORALES / TIME OUT

"Magnífico trabalho"
LER, Primavera 2016

"Trabalho pioneiro, mas complexo e rigoroso, com investigação extensa"
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO / JORNAL DE LETRAS

Exibido no programa LITERATURA AQUI
RTP2, 05.04.2016 / http://www.rtp.pt/play/p1990/e230687/literatura-aqui



        


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/05/14/cosmocopula.aspx]

quarta-feira, 8 de maio de 2013

VAIS A CASA DA NATÁLIA?


    
    
Em maio de 1960, um velho americano toca à porta do 5.º andar do 52 da Rodrigues Sampaio, rua paralela à Avenida da Liberdade, perto do Marquês. “Natália Correia?”, certifica-se quando lhe abrem a porta. “Henry MilIer?!”, responde a anfitriã, surpreendida.
Miller, o escandaloso autor de Trópico de Câncer, vai parar ao serão mais famoso da cidade por indicação do crítico literário João Gaspar Simões, que terá encontrado numa livraria da Avenida de Roma. “A Natália ficou ufana. Era uma grande honra”. recorda o jornalista Fernando Dacosta, testemunha dessa noite. Estão também presentes o poeta David Mourão-Ferreira e o crítico Delfim Santos, que há-de escrever sobre isso em O Jornal. Discute-se o Amor. E Miller junta-se à conversa. A dada altura, comenta que já tinha estado na Grécia, mas que fora “preciso vir a Lisboa para conhecer uma deusa grega”, lembra Dacosta.
A poetisa açoriana tinha-se mudado para aquela casa em 1953. Os serões foram ganhando fama e no final da década de 50 são já um marco incontornável da vida intelectual lisboeta. Sem dia nem hora marcados — às vezes uma vez por semana, outras mais: quase sempre depois do jantar —reúnem-se ali cinco, 10, 20 amigos. É uma honra fazer parte do grupo. Declama-se poesia, discute-se política, conspira-se contra Salazar. “Sempre de forma exaltada, porque a Natália era exaltada e exaltava tudo à volta dela”, lembra a poetisa Maria Teresa Horta. O escritor Urbano Tavares Rodrigues há-de recordar “experiências de magnetismo” com Almada Negreiros. Também há apresentações de livros e outras ocasiões semipúblicas, incluindo a primeira representação de uma peça de Sartre em Portugal: Entre Quatro Paredes/ Huis Clos.“Conheci-a num serão sobre poesia do século XVIII”, conta o encenador Carlos Avilez. “Ela eslava deitada numa chaise-longue como uma deusa. Achei-lhe piada, ela achou-me piada.” Tornam-se grandes amigos.
Onde quer que Natália esteja, é Natália quem manda. Em casa, de permanente boquilha, senta se num trono, uma poltrona de costas muito altas ao fundo do salão principal — há outros dois, contíguos —, rodeada pela magnífica biblioteca, um busto de si própria, várias pinturas e outras representações suas oferecidas por artistas que a admiram. “Era uma mulher lindíssima. Tinha sido a paixão de metade dos intelectuais de Lisboa”, assegura Maria Teresa Horta.
Os artistas plásticos Almada Negreiros e Nikias Skapinakis são presenças frequentes. Mourão-Ferreira também. O editor Ribeiro de Mello consegue penetrar no círculo. E Ary dos Santos torna-se indissociável daquelas noites. “Eram uma referência no Portugal culto, o que mais se aproximava dos salões do século XIX em Paris. Tudo muito exuberante, muito divertido. Não tinha nada a ver comigo”, explica Horta. “Depois arrependi-me de não ter ido mais vezes.” Dacosta acrescenta: “Era uma feira popular, um misto de intelectuais e de bisbilhotice. Muito bem servido. A Natália tinha a mania do champanhe francês.” “Às quatro da manhã, mandava vir o seu bife”, lembra Avilez. A ceia, que também inclui marisco, chega do Hotel Império, na mesma rua, dirigido pelo marido, Alfredo Machado. Os serões, bem regados, bem vividos, com música em fundo, duram até o sol raiar.
“A Natália”, interpreta Dacosta, “não sabia estar sozinha. Tinha de estar sempre com a sua corte.” Estas reuniões prolongam -se até 1971, altura em que não acabam, mas mudam de casa. Vão para o Largo da Graça, onde Natália acaba de abrir um bar, O Botequim.
           
In Lisboa, anos 60
Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowoski,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012, p. 24.
   
             
 
               
             
RETRATO DE NATÁLIA

Hierática     cromática     socrática
passas branca de neve pela sala
nebulosa da pele     via láctea
do único percurso que nos falta.

No teu andar há ventres há tecidos
de leve lã      circuitos do brocado
duma seda tecida na manhã
dos raios dos teus olhos deslumbrados.

Nos teus quadris há cisnes há pescoços
de virgens degoladas     há indícios
do alabastro quente dos teus ossos
iluminando claros precipícios.

É isso. Uma vestal iluminada
uma deusa rangendo uma secreta
porta barroca aberta para o nada
que é o docel da cama do poeta

Ali deitas crianças      animais
gemidos e maçãs      vagidos e atletas
pois que amas as coisas naturais
com a tua carne impúbere e erecta.

Porém tu acalentas      tu alentas
nossa senhora lenta      mãe do escândalo
ave de carne      lírio de placenta
com aroma de nardos e de sândalo.

Desinfectante e amante eis que transformas
em teus olhos de cânfora as orgias
e o teu corpo ânfora é a forma
em que a lira da noite vaza o dia.

               
                   José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias, 1970
                   
                  
    Poderá ainda gostar de ler:

             

                          O BOTEQUIM DA LIBERDADE. Como Natália Correia marcou, a partir de um pequeno bar de Lisboa, o Século XX Português. Por  FERNANDO DACOSTA

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/05/08/natalia.aspx]