segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Primavera, Primavera, és linda como haver morte (Alberto Lacerda)

          
          
Como pássaros chegam junto a mim dois versos já antigos de Alberto de Lacerda: Primavera, Primavera, / és linda como haver morte. Afinal, que quer isto dizer verdadeiramente? Se o visse, perguntava-lhe. | Eduardo Prado Coelho
                    
          
          
Diotima
          
És linda como haver Morte
depois da morte dos dias.
Solene timbre do fundo
de outra idade se liberta
nos teus lábios, nos teus gestos.
          
Quem te criou destruiu
qualquer coisa para sempre,
ó aguda até à luz
sombra do céu sobre a terra,
          
libertadora mulher,
amor pressago e terrível,
          
Primavera, Primavera!
          
          
Alberto Lacerda (1928-2007)
          

Alberto de Lacerda por Arpad         
          
          
Saímos de Paris com um céu límpido e uma serenidade de início de Primavera. Como pássaros chegam junto a mim dois versos já antigos de Alberto de Lacerda: “Primavera, Primavera, / és linda como haver morte”. Afinal, que quer isto dizer verdadeiramente? Se o visse, perguntava-lhe. Tive mesmo a impressão de que passou junto a mim. Mas os funerais estão sempre cheios de poetas, anjos e outras presenças diáfanas.
O pequeno cemitério onde o corpo repousará pertence a um lugar mítico na biografia de Vieira da Silva. Aí tinha o seu grande atelier e a sua casa. A aldeia tem o estranho ar de um cenário de cinema: lindíssima, quase desabitada, varrida pelo vento. Os mais belos funerais a que assisti foram no cinema, e tinham sempre o vento ou a chuva — emblemas do destino. Este não foge à regra.
A marca definitivamente romântica é dada pelas ruínas que se infiltram por estas ruas pensativas. Entramos aqui, não no passado, mas no átrio de outra coisa: uma forma de existir no limite do tempo, num risco litoral, na fronteira do pensamento, do que não pode deixar de ser da ordem do pressentimento (como a pintura de Vieira da Silva). Este local é amável e acolhedor, mas recusa toda a forma de kitsch. Bem pelo contrário: poderíamos imaginar no empedrado tosco destes caminhos, na sombra destas muralhas, no silêncio ainda cintilante desta lareira, a violência, o drama, o inabitável da paixão. Mas tudo isso existe ciciadamente, numa figura da reconciliação, devolvido sob a forma de música, Bach de preferência, de tempo em estado incandescente, de beleza incorruptível.
No atelier, além de Bach, vemos álbuns confundidos sobre Rembrandt, Georges de la Tour (que vai bem com o sítio), Jaspers Johns, Henry Moore, Bracque, Turner, e transpomos a cerimónia digna desta morte serena como quem passa sob o arco em ruínas ao som de Monteverdi — tudo está certo com o lugar e a tarde, a morte pode ser bela como o vento e a Primavera, Alberto de Lacerda passou por aqui e cada um de nós trouxe um fruto trincado da árvore que escolheu. […]
           
Eduardo Prado Coelho, Paris, 10.03.1992
Tudo o que não escrevi. Diário II (1992)
Porto, Edições Asa, Abril de 1994 (1ª edição), pp. 44-45.
          
          

          
          
Acontece também que tinha assistido a um bizarro duelo de amores platónicos pela imaterial Sophia entre o Alberto de Lacerda e o Ruy Cinatti, numa tarde em Londres, poucos meses antes.
Lembro-me de o Ruy Cinatti ter dito, porventura como suprema prova de amor, que escrevia longas cartas à Sophia para se manter em contacto consigo próprio. E de o Alberto ter depois comentado com saboreada malícia, a sós comigo, que não era nada à Sophia que o Cinatti escrevia essas cartas, que era ao próprio Cinatti.
Se assim era, presumo que teria sido um caso extremo de transforma-se o amador na cousa amada.
Mas o Alberto revelou-me então, em prova definitiva do seu inquestionavelmente superior amor pela Sophia, que o poema Diotima tinha sido escrito para ela: “És linda como  haver Morte  /  depois  da morte  dos  dias  [...]  / libertadora mulher, amor pressago e terrível [...]  / primavera, primavera!“.
          
Sophia de Mello Breyner Andresen
          
E deu-me a ler outro seu poema (ao tempo ainda inédito) intitulado O Eterno Retorno de Diotima em que a visionava como uma eternamente inacessível “rosa dos ventos agudos” suspensa na “noite dos tempos”. Não mencionei esses poemas a Sophia, é claro, fui mais discreto do que agora não preciso de ser. São dois dos melhores poemas do Alberto de Lacerda e creio que ele só ganha em saber-se quem os inspirou.
          
Helder Macedo
Colóquio internacional Sophia de Mello Breyner Andresen
Fundação Calouste Gulbenkian, 27 e 28 de Janeiro de 2011
          



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/05/lacerda.aspx]

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